U N IV E R SIDADE DOS A ÇO R E S S IC U T AU RO RA SCIENTIA LU C E T Tradução comentada da obra The Giggler Treatment, de Roddy Doyle Dissertação de Mestrado Ana Rita Garcia Canto Tradução e Assessoria Linguística Mestrado em Ponta Delgada 2017 1 Tradução comentada da obra The Giggler Treatment, de Roddy Doyle Dissertação de Mestrado Ana Rita Garcia Canto Orientadora Professora Doutora Dominique Faria Dissertação de Mestrado submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Tradução e Assessoria Linguística 1 Ao meu avô José Canto, o meu segundo pai, o meu padrinho, o meu amigo. 2 Agradecimentos Sei que é, de certa forma, habitual agradecer aos orientadores, mas, no meu caso, não posso começar sem fazer referência à ajuda incansável da minha orientadora, a Professora Doutora Dominique Faria. Sem a sua orientação, provavelmente, não só não conseguia terminar a dissertação a tempo, como também não o faria de uma forma tão alegre e empolgante. Além de desempenhar na perfeição o seu papel de orientadora, desempenhou também com grande mestria o papel de psicóloga e coach, procurando motivar-me e manter-me calma durante todo o processo, lembrando-me sempre que íamos conseguir. Em segundo lugar, quero agradecer à minha família e amigos que contribuíram para manter a minha sanidade mental no sítio ao longo deste ano de trabalho: -aos meus avós Maria e José, que são as pessoas que mais orgulho têm em mim e que sempre me apoiaram. Sinto sempre o vosso carinho. -aos meus pais, por me mostrarem os exemplos a seguir e a não seguir. -aos meus tios Ana, Nélia e Roberto que fazem sempre questão de me lembrar o meu potencial e de que consigo alcançar todos os desafios que me proponho. -à minha irmã Tânia e à minha prima Júlia por darem um bocadinho de loucura à minha vida e me lembrarem que ser diferente, às vezes, também é bom. -ao André, à Cátia, ao Hugo e à Sofia, as pessoas a quem mais recorro sempre que preciso ou quando não preciso, para conversar ou divagar, para resmungar ou para me confortar. Espero ter-vos sempre ao meu lado. -e, finalmente, ao João por, durante o emprego, nas horas vagas, me deixar desenvolver este trabalho. Muito obrigada, a todos! 3 Resumo Nesta dissertação de mestrado elaborou-se uma tradução, de inglês para português, da obra de literatura infantil The Giggler Treatment, de Roddy Doyle, assim como um comentário à tradução. O objetivo deste último foi o de identificar os principais obstáculos enfrentados ao longo do processo de tradução e as soluções encontradas para os ultrapassar, refletindo sobre as consequências que as opções efetuadas tiveram sobre o texto e a experiência de leitura. Para tal, partiu-se de uma reflexão sobre as especificidades da tradução de literatura infantil e os desafios que a mesma coloca ao tradutor, assim como de uma identificação dos traços distintivos do estilo literário do autor, com particular atenção para a importância de que se revestem as referências culturais (sobretudo à cultura irlandesa) nas suas obras. Estas duas componentes sustentaram a tomada de decisão durante o processo de tradução. Palavras-chave: 1-Estudos de Tradução; 2-Literatura Infantil; 3-Tradução de literatura Infantil; 4- Roddy Doyle; 5-Estratégias de Tradução. 4 Abstract In this dissertation a translation was made, from English into Portuguese, of the book of children’s literature The Giggler Treatment, by Roddy Doyle, as well as an explanatory comment on the given translation. The aim of this comment was to identify the main obstacles faced during the translation process and the solutions found to overcome them, reflecting on the consequences that the choices made had on the text and the reading experience. In order to do so, we started off with a reflection on the specificities of the translation of children’s literature and the challenges that it poses to the translator, as well as an identification of the distinctive features of the author’s literary style, with particular attention to the importance of cultural references (mainly to Irish culture) in his works. These two components supported the decision-making during the translation process. Keywords: 1-Translation Studies; 2-Children’s Literature; 3-Translation of Children’s Literature; 4- Roddy Doyle; 5-Translation Strategies 5 Índice Lista de Quadros………………………………………………………………… 6 Introdução……………………………………………………………………… 7 1. Literatura Infantil e Tradução ………………………………………………..12 1.1. Como definir a Literatura Infantil? ………………………………………...12 1.2. Posição da Literatura Infantil no Polissistema Literário…………………....16 1.3. Tradução de Literatura Infantil ………………………………………….....18 2. Proposta de Tradução de The Giggler Treatment …………………………….25 3. Comentário à Proposta de Tradução ………………………………………....56 3.1. GRUPO I – Recursos Típicos da Literatura Infantil………………………..56 3.1.1. Criatividade Linguística……………………………………………...56 3.1.2. Repetições e Paralelismos …………………………………………...58 3.1.3. Onomatopeias e Interjeições ………………………………………...63 3.1.4. Humor por Transformação de Estruturas Pré-existentes …………....66 3.1.5. Grafismo……………………………………………………………..69 3.2. GRUPO II – Referências Culturais ………………………………………...71 3.2.1. Referências à Cultura Irlandesa e Norte-americana………………....71 3.2.2. Marcas da Oralidade ………………………………………………...75 3.2.3. Expressões Idiomáticas ……………………………………………...79 3.2.4. Unidades de Medida/Moeda ………………………………………...80 3.2.5. Regiões Geográficas ………………………………………………...81 3.2.6. Registos de Língua ………………………………………………….82 Conclusão ………………………………………………………………………84 Bibliografia …………………………………………………………………….90 Webgrafia……………………………………………………………………... 91 6 Lista de Quadros Quadro 1 - Repetições e paralelismo……………………………………………....59 Quadro 2 – Onomatopeias/Interjeições………………………………………….....64 Quadro 3 – Humor por Transformação de Estruturas Pré-existentes………………66 Quadro 4 – Grafismo……………………………………………………………….69 Quadro 5 – Referências Culturais………………………………………………......71 Quadro 6 – Marcas da Oralidade/Regionalismos………………………………......75 Quadro 7 – Marcas da Oralidade…………………………………………………...77 Quadro 8 – Expressões Idiomáticas………………………………………………...79 Quadro 9 – Unidades de Medida/Moeda…………………………………………....80 Quadro 10 – Regiões Geográficas……………………………………………..........81 Quadro 11 – Registos de Língua …………………………………………………...82 7 Introdução Esta dissertação consiste na tradução da obra The Giggler Treatment, de Roddy Doyle, e numa reflexão sobre as estratégias de tradução adotadas, a natureza do ato de tradução e as principais questões que esta levanta. Para a elaboração deste trabalho optou- se pela tradução na íntegra da obra de Doyle, tendo em conta que a obra de partida impressa possui apenas 112 páginas, com algumas ilustrações. Segundo, Eugene Nida: [S]ince no two languages are identical, either in the meanings given to corresponding symbols or in the ways in which symbols are arranged in phrases and sentences, it stands to reason that there can be no absolute correspondence between languages. Hence there can be no fully exact translations. The total impact of a translation may be reasonably close to the original, but there can be no identity in detail (Nida, 2000:126). Partindo deste pressuposto, de que toda a tradução é necessariamente imperfeita, neste trabalho apresenta-se uma proposta de tradução para a obra de Doyle, justificando- se as decisões tomadas nos casos que mereceram maior reflexão. George Steiner, tal como Nida, também reforça a ideia da imperfeição de todos os atos de tradução e acrescenta ainda que: Recusar a validade da tradução pelo facto de ela nem sempre ser possível ou de ser sempre imperfeita é absurdo. O que se torna necessário esclarecer (…) é o grau de fidelidade a visar em cada caso, a margem de tolerância que deve ser estabelecida segundo as diferentes tarefas. (Steiner, 2002:289) O autor sublinha que mais importante do que a sua perfeição é o nível de fidelidade da tradução para com o texto de partida. Após a tradução, realiza-se uma recolha de casos e uma comparação entre o texto de partida e o de chegada, com o objetivo de analisar as eventuais divergências entre as duas versões do texto e verificar se se manteve o mesmo sentido/essência do livro na tradução. Com efeito, Jirí Levý (2000:147) mostra como uma tradução é um processo de decisão: uma série de situações que impõem ao tradutor a necessidade de escolher entre várias alternativas. O tradutor é um recriador e, por isso, tem de estar constantemente a tomar decisões. Assim sendo, para uma frase podem-se apresentar diferentes propostas de tradução, de entre as quais terá de escolher. Por vezes, essa tomada de decisão implica diferenças importantes relativamente ao texto de partida. “Quais as características de uma boa tradução?”, “Deverá um texto mostrar que é uma tradução de um outro texto que não foi escrito na língua de chegada?” e “Quais as 8 decisões certas a tomar?” são algumas das questões debatidas pelos teóricos da tradução e que também estiveram presentes ao longo deste trabalho de tradução e de reflexão sobre a tradução. Segundo Eugene Nida, em Principles of Correspondence (2000:126) uma boa tradução tem de fazer sentido, tem de ter o mesmo estilo de escrita que o texto de partida, ter o mesmo efeito no leitor e parecer que foi escrito na língua de chegada. Nida faz ainda referência, na sua obra, a Leonard Foster que define uma boa tradução como “one which fulfills the same purpose in the new language as the original did in the language in which it was written” (2000:131). Já Norman Sapiro, citado por Lawrence Venuti (Venuti, 1995:1), diz que a tradução é “the attempt to produce a text so transparent that it does not seem to be translated”, referindo que “a good translation is like a pane of glass” em que “you only notice that it’s there when there are little imperfections”. Venuti, em The Translator’s invisibility, (1995:1) introduz o termo “invisibilidade”, dizendo que um texto traduzido tem tendência a ser fluente e transparente, minimizando a estranheza no texto de partida, tornando o trabalho do tradutor invisível, algo que contesta. Segundo Venuti, o texto traduzido deve mostrar o seu estatuto propositadamente. Estes exemplos permitem-nos compreender que os próprios teóricos não estão de acordo sobre qual a melhor forma de traduzir. No entanto, desde os anos oitenta, os estudos de tradução têm defendido que, mais do que afirmar como se deve traduzir, devemos concentrar-nos em verificar quais os processos de tradução a que recorreram os tradutores e de que forma estes alteraram o texto: “The purpose of translation theory, then, is to reach an understanding of the processes undertaken in the act of translation and, not, as is so commonly misunderstood, to provide a set of norms for effecting the perfect translation.” (Bassnet, 2004:43) Daí que o objetivo desta dissertação seja traduzir e refletir sobre como se traduziu, quais as perdas e os ganhos que resultaram dessa transformação do texto. Qualquer texto encontra-se sempre inserido num contexto e esse contexto irá influenciar a tradução, um critério que também teremos em consideração. André Lefevere afirma, em Translation, history, culture, que a tradução “has to do with authority and legitimacy and, ultimately, with power, which is precisely why it has been and continues to be subject of so many acrimonious debates.” (Lefevere, 2003:2) Fatores como a língua, o poder económico do país de partida, o público de chegada e o próprio país de chegada irão influenciar a tradução e publicação de um determinado texto. Gisèle Sapiro em Translatio. Le marche de la traduction en France faz uma análise sobre o poder de várias línguas e afirma que no sistema de tradução, algumas 9 línguas ocupam uma posição de maior prestígio em relação a outras. De acordo com Sapiro, o sistema mundial de traduções pode ser descrito como um conjunto de relações fortemente hierarquizadas (Sapiro, 2000:29). Os dados estatísticos sobre o mercado geral referente a 1990 de livros traduzidos apresentados na obra de Gisèle Sapiro também permitem identificar a estrutura de comércio na tradução. Estes dados revelam que a maioria dos livros traduzidos mundialmente são, sem surpresa, os da língua inglesa, ocupando uma posição “hiper- central” no sistema. A seguir ao inglês temos como línguas centrais o francês e o alemão, representando 20% e 10%, respetivamente, das traduções no mercado internacional. Línguas como o espanhol e italiano representam entre 1 a 3%, ocupando uma posição “semi-periférica”. As línguas com menos de 1% são consideradas línguas periféricas. Sapiro fala também em línguas com muitos falantes e constata que, apesar de estas terem muitos falantes a nível mundial, este não é um fator determinante de hierarquização. Línguas como o chinês, o árabe e o japonês – com muitos falantes – ocupam uma posição periférica no sistema (Sapiro, 2000:29). A autora, na obra acima referida, refere que geralmente os países cuja língua ocupa uma posição central no sistema de traduções, traduzem menos para a sua língua, ou seja, «exportam» mais os seus produtos culturais do que «importam» os produtos culturais de outros países. Os países dominados, por sua vez, «exportam» pouco e «importam» muitos livros estrangeiros. (Sapiro, 2000:30) Na obra são ainda revelados números que sustentam as afirmações da autora. A socióloga italiana mostra um estudo realizado em 1990 e apresentado na obra de Valérie Ganne et Marc Minon, Traduire l’Europe, que mostra a proporção de livros traduzidos. Nos EUA e Inglaterra as obras traduzidas representavam menos de 4% da literatura do país; em França e Alemanha, a proporção variava entre 14% e 18%; em Itália e Espanha equivalia a cerca de 24%; nos Países Baixos e na Suécia, um quarto dos livros publicados eram traduções; em Portugal ou Grécia, a percentagem atingiu os 35% ou até mesmo os 45%. Este estudo revela que Portugal é um país onde quase metade da literatura consumida são traduções. A língua portuguesa é, portanto, considerada uma língua periférica e não é muito traduzida noutros países. A presente proposta de tradução confirma esta tendência, pois The Giggler Treatment, de Roddy Doyle, é uma obra de uma língua central – o inglês - e está a ser traduzido para uma língua periférica – português -, num país que traduz muitas obras estrangeiras - Portugal. 10 Ainda no âmbito de uma contextualização inicial sobre o texto de partida, sublinhamos outros três elementos importantes a ter em conta aquando da reflexão sobre a tradução: o autor, a editora e o ilustrador. Roddy Doyle, nascido em Dublin, em 1958, é um romancista, dramaturgo e guionista irlandês. Doyle já recebeu vários prémios pelo seu trabalho, sendo o de maior destaque o Prémio Booker pela sua obra Paddy Clarke Ha Ha Ha. O autor tem obras publicadas em diversos géneros literários como romances para adultos, romances infantis, peças de teatro e televisão e ainda dúzias de contos. Apesar de ser um autor com muitas obras e prémios, com muitos leitores e boas vendas, não se encontram estudos feitos sobre as suas obras. Dos romances que escreveu para crianças destaca-se a coleção "The Rover Aventures", na qual o cão Rover tem papel de destaque. O primeiro volume desta coleção corresponde à obra aqui traduzida, The Giggler Treatment. Este primeiro livro conta a história de criaturas do tamanho de bebés – as Gigglers – que olham pelas crianças e castigam os adultos que são desonestos, mal-educados ou maus para as crianças. Os castigos surgem sob a forma de partidas, tornando o humor um dos elementos mais presentes durante toda a obra. Rover tem neste livro uma missão importante: salvar o seu vizinho – o Senhor Mack – do Tratamento das Gigglers. O jornal norte-americano New York Times (New York Times, 17-09-2000), num dos seus artigos, faz referência ao livro de Doyle e afirma que a obra “has as many surprises as an encyclopedia (…) the plot is as contrived as possible and proves that, in the right hands, digression is an art form.” O livro foi concebido para a “read- aloud family fun, no matter how young the audience”, e fará o leitor “laugh out loud” e “laugh to [him]self.”, conclui o New York Times. As obras de Doyle têm como cenário principal o seu país natal e uma escrita marcada pela grande utilização sistemática de diálogos com o uso de registos de língua diferentes e termos do dialeto hiberno-irlandês e The Giggler Treatment não é exceção. Esta marca da escrita de Doyle faz com que a obra em análise tenha duas versões em inglês, tendo sido na edição americana, inserido um glossário no final do livro onde são explicados alguns termos do dialeto hiberno-irlandês e, por conseguinte, da cultura irlandesa. Esta publicação da obra com duas versões em inglês mostra que as referências culturais são um elemento importante da obra. A escolha deste texto deveu-se sobretudo às três características mencionadas, que o tornam um desafio interessante para o tradutor: trata-se de uma obra de literatura infantil, de um texto onde o humor e a criatividade linguística têm um papel determinante 11 e onde as referências culturais são essenciais ao projeto do autor, três elementos que pedem uma reflexão e um esforço redobrado por parte do tradutor. O livro de Doyle é ilustrado por Brian Ajahr, um premiado ilustrador americano. Brian Ajhar é “a Pennsylvanian whose black-and-white vision is askew enough to more than do the words justice”, descreve o New York Times, no já referido artigo. Ao longo dos seus trinta anos de carreira, os seus trabalhos já foram publicados em revistas, livros de crianças e trabalhos publicitários. O ilustrador tem o seu trabalho publicado um pouco por todo o mundo. Para além de The Giggler Treatment, Ajar ilustrou também os restantes livros da coleção de "The Rover Adventures", Rover Saves Christmas e The Meanwhile Adventures. Nesta edição do texto de partida, as ilustrações são feitas a preto e branco. Se mencionamos o ilustrador e as ilustrações desta obra é porque, na literatura infantil, ao contrário do que acontece noutro tipo de obras, a ilustração é um fator importante para a leitura e compreensão do texto pelo público a quem ele se destina. O ilustrador é uma figura que ocupa uma posição de destaque neste género, porque através da ilustração, o leitor consegue complementar e obter informação a que de outra forma não teria acesso. As ilustrações de uma obra também fazem parte do texto, portanto um tradutor quando traduz tem de ter em consideração o texto no seu diálogo com a ilustração: se reforça a mensagem do texto, a contradiz ou a complementa, de modo a que a versão traduzida funcione do mesmo modo. No que diz respeito à editora, quer a versão norte-americana quer a do Reino Unido de The Giggler Treatment, foram editadas em 2000 pela editora norte-americana Scholastic Press. Esta editora é uma multinacional conhecida pela publicação, venda e distribuição de livros e materiais educativos. Fundada em 1920 por Maurice R. Robinson nos Estados Unidos, a Scholastic Press é a maior editora e distribuidora de livros para crianças. A editora é ainda a responsável pela publicação de obras mundialmente conhecidas como a série de Harry Potter, The Hunger Games e Captain Underpants. Sendo a maior distribuidora de livros para crianças e tendo em conta as obras best-seller publicadas, esta tem claramente um objetivo económico. Destinada a um público de massas, a editora tem como principal objetivo lucrar com o número de vendas de livros e não apenas dá-los a conhecer a um pequeno público. Em Portugal, é a Editorial Presença que assume este papel. Com efeito, algumas das obras de Doyle já se encontram traduzidas para português. Da coleção “The Rover Adventures” temos traduzida a obra O Pai Natal Chegará a Tempo?, uma tradução de 2009, da Editorial Presença. Após ter terminado a tradução da obra de Doyle, descobri 12 ainda que The Giggler Treatment também já estava traduzido em Portugal. A tradução encontrada é da autoria da tradutora Maria das Mercês Peixoto e foi publicada pela Editora Presença, em 2001, tendo como título Os Brincalhões. A grande diferença no conteúdo deste título poderá explicar o facto de não se ter detetado esta tradução aquando da preparação do projeto de dissertação. Dado que apenas a identifiquei e tive acesso a ela após ter terminado o processo de tradução e revisão da minha própria tradução, optei por incluir na minha reflexão sobre a tradução um contraponto entre a minha própria versão deste texto e a versão publicada em Portugal, pois “[e]ach individual translation is always unique—with its own constellation of time, action, and reception. Even if similar elements exist, the end result always reflects the humanity of translation and interpretation. In the sense of “sameness” translations are never equivalent to their originals.”, confirma Riitta Oittinen. (Oittinen, 2002: 162) O capítulo 1 será dedicado à problemática da tradução de literatura infantil. Nele abordarei as principais questões que os teóricos apontam como sendo cruciais quando se pretende refletir sobre a tradução deste tipo de literatura. No capítulo seguinte, apresentarei a minha proposta de tradução integral da obra de Roddy Doyle, a que se seguirá o capítulo 3, onde farei um levantamento dos casos, seguido de um comentário, que mais reflexão mereceram da minha parte, assim como uma comparação entre a tradução apresentada neste trabalho e a de Os Brincalhões. O propósito deste capítulo é assinalar perdas e ganhos que se deram com a tradução e refletir sobre o modo como isso modifica o texto, sobretudo se pensarmos na experiência de leitura de um leitor anglófono comparada com a de um leitor lusófono. 1. Literatura Infantil e Tradução 1.1 Como definir a Literatura Infantil? Para falarmos em tradução de literatura infantil há que, em primeiro lugar, definir o que se entende por literatura infantil, como também perceber algumas das particularidades que a fazem distinguir dos restantes tipos de literatura: as suas características textuais como estilo e vocabulário, as suas funções e as suas problemáticas. Comecemos então pela definição de literatura infantil. A literatura infantil, ao contrário do que se possa pensar, não é fácil de definir. Kimberly Reynolds, em Children's 13 Literature: A Very Short Introduction, refere que embora a literatura infantil seja um tipo de literatura que, para o público em geral é facilmente definida, para os académicos é um assunto difícil e complexo. Para o público em geral, a literatura em questão consiste em “material written to be read by children or young people, published by children’s publishers and stocked and shelved in the children’s and/or young adult sections of libraries or bookshops” (Reynolds, 2011:1). No entanto, para aqueles que estudam a literatura infantil a definição não é assim tão simples e clara. As definições variam e muitas delas são vagas ou não abrangem todos os tipos de livros infantis. “For those who research and teach children’s literature, by contrast, the term is fraught with complications” (Reynolds, 2011:2). Riitta Oittinen vê a literatura infantil “as literature read silently by children and aloud to children. Since I deal mainly with the translation of illustrated stories for children (e.g., picture books), I am referring to children under school age (seven in Finland).” (Oittinen, 2000:4) A autora explica ainda que “childhood” é um conceito “fluído” e que muitas das suas observações feitas acerca da tradução para crianças abaixo da idade escolar se aplicam também a traduções para crianças já na idade escolar. Outra definição apresentada em Translating for children é que a literatura infantil pode ser vista “either as literature produced and intended for children or as literature read by children.” (Oittinen, 2000:61) Uma das críticas apontadas por Peter Hunt, citado por Oittinen, a esta definição é que esta é muito vaga e não define bem os limites da literatura infantil. O autor afirma ainda que “all of this suggests a species of literature defined in terms of the reader rather than the author’s intentions or the texts themselves.” (Oittinen, 2000:61) Para Hunt, a literatura infantil tende a ser mais direcionada para os seus leitores do que a literatura escrita para adultos e este facto é a chave para a definição da tradução da literatura infantil: uma literatura que é definida em termos dos leitores. No que diz respeito às suas particularidades, como já foi referido neste trabalho, a literatura infantil apresenta características singulares, que trazem novos problemas à sua tradução. Uma grande particularidade é que, ao contrário da literatura em geral, a literatura infantil se distingue pelo tipo de público a quem se destina e é esta a sua principal diferença. Este público irá influenciar a forma como os adultos (autores) irão escrever para as crianças e este fator, segundo Riitta Oittinen, é muito importante quando se está a traduzir para crianças. Segundo a autora, a tradução “should rather be defined in terms of the readers of the translations.” (Oittinen, 2000: 61). O tradutor terá de ter sempre em mente o tipo de público-alvo da sua tradução e adequá-la a este mesmo público. 14 Outra particularidade desta literatura é o riso e aquilo a que Oittinen chama de “pantagruelism”. Estas características presentes na literatura para crianças representam a habilidade para ser feliz e benevolente. Nestes livros, os enredos reportam ao riso, podendo ainda estender-se a uma “foolishness, even madness. Like Plato, Bakhtin underlines the importance of madness, abnormality, drunkenness, and deviation from ordinary language.” (Oittinen, 2000:57) Esta particularidade ocorre na cultura infantil e transpõe-se em termos linguísticos através de um discurso “free (…) from abstract structures and rules” (Oittinen, 2000:57). Em The Giggler Treatment esta característica revela-se tão importante que, na análise de casos, é apresentada uma categoria destinada apenas ao humor. A literatura infantil também se diferencia dos restantes tipos de literatura pela sua função. Vários autores debruçam-se sobre as funções da literatura infantil e sobre os princípios que devem nortear este tipo de literatura. Bo Møhl e May Shack são dois dos autores que analisaram as várias funções da literatura infantil. Para os autores esta literatura deve ser escrita com o propósito de entreter, ser didática, informativa e terapêutica, devendo ajudar o desenvolvimento e crescimento da criança. (Oittinen, 2000:65). Já Reinbert Tabbert, também na obra de Oittinen, faz uma divisão das funções da literatura infantil em duas categorias: didática e criativa. A literatura infantil, ao contrário dos outros tipos de literatura, também se distingue, portanto, pela sua função didática. Na obra analisada neste trabalho a criatividade linguística do autor é uma das suas principais características e ocupa uma posição de destaque no terceiro capítulo. Através da criatividade linguística o autor “brinca” com a língua e com as suas estruturas, o que, para além do efeito lúdico, faz com que o leitor seja capaz de interpretar recorrendo aos seus conhecimentos da língua e adquirindo outros. Ao longo da obra encontramos também referências culturais e geográficas que procuram dar mais informação ao jovem leitor, alargando o seu conhecimento sobre o mundo. Além das funções apontadas por Møhl e Shack e Tabbert, a literatura infantil tem como objetivo ajudar as crianças no fortalecimento dos sentimentos de empatia e identificação. Segundo Riitta Oittinen, a emoção é também uma característica muito importante na literatura infantil. Para a autora, as emoções provocadas pelas histórias podem ser ainda mais importantes que o próprio enredo da história. Ao ler uma história, a criança está a experienciar várias emoções que irão ensiná-la a lidar com os seus próprios sentimentos e a resolver problemas na sua vida: We undervalue the role of imagination in learning. Another important issue here is 15 that children learn many other important things from books, not only the names of flowers and capital cities: children need to be emotionally involved so that they learn to understand other people’s feelings in different situations. Stepping into someone else’s shoes is easier in a book than in real life. (Oittinen, 2000:90) O carácter pedagógico deste tipo de literatura fez com que a literatura infantil nem sempre fosse vista como um tipo de ficção, mas sim uma forma de escrita com um objetivo, como uma “ferramenta pedagógica”. (Oittinen, 2000: 66) Essencialmente destinada a crianças, a literatura infantil tem, por vezes, uma escrita simples e transparente que se adequa ao seu público. Esta é uma característica relacionada com o facto de as crianças terem vivido menos tempo do que os adultos e, por isso, não têm desenvolvido um leque de conhecimento tão alargado. Este fator faz com que nas histórias para os mais jovens se crie a tendência de explicar mais o conteúdo para as crianças do que para os adultos. Esta escrita coloca, uma vez mais, “the expectations of our future readers into consideration” (Oittinen, 2000:34). Contudo, esta escrita simples e transparente não está presente durante todo o texto no livro de Doyle. O seu texto é, por vezes, um texto complexo onde se “brinca” com a língua e com a sua estrutura, tendo conteúdo que necessita de uma leitura acompanhada para esclarecimento. Esta particularidade referida no parágrafo anterior, assim como a barreira entre o “bem” e o “mal” claramente definida (Oiittinen, 2000:86) e os “finais felizes” próprios da literatura infantil fazem com que se tenha criado um preconceito em relação a este tipo de literatura. Alguns leitores e críticos literários e universitários afirmam que a literatura infantil não tem complexidade suficiente para ser considerada literatura de qualidade, fazendo com que seja uma literatura “hardly worthy of analysis” (Mickenberg e Vallone, 2011:4). Uma prova clara da falta de prestígio da literatura infantil é que, tal como evidencia Riitta Oitinnen, até à data da publicação do seu livro, nenhum Prémio Nobel tinha sido atribuído a um autor de literatura infantil. Para além disso, a verdade é que muito poucas universidades têm departamentos especificamente ligados à literatura infantil. O estudo deste tipo de literatura acaba por ser feito noutros departamentos que se relacionam com as “crianças” como o da psicologia ou educação. A literatura escrita para crianças acaba assim por se encontrar, muitas vezes, na mesma posição que a literatura escrita para e por mulheres, consideradas por muitos não tão importantes ou complexas como a “adult literature” (Oittinen, 2000:68). Para além da aparente simplicidade dos textos, uma outra razão que poderá contribuir para a falta de valorização 16 da literatura infantil é a predominância feminina neste campo literário. Tal como a literatura escrita por mulheres é colocada numa posição inferior à da literatura para adultos, uma literatura que é maioritariamente escrita por mulheres passa a ser, também, colocada numa posição inferior. Porém, de acordo com Julia Mickenberg e Lynne Vallone, em The Oxford Handbook of Children's Literature, se um académico for capaz de ultrapassar esses preconceitos e preconceções acerca da complexidade e do valor literário da literatura infantil, ao ler e estudar um livro infantil é muito provável que encontre uma inesperada riqueza na literatura infantil (Mickenberg e Vallone, 2011: 4). O académico russo Yuri Lotman (Oittinen, 2000:64) chega até a afirmar que textos com uma estrutura simples e de informação mais geral podem ser mais exigentes do que um texto aparentemente mais complexo. O autor explica que um texto mais simples faz com que o leitor generalize e compare a literatura que anteriormente foi lida com a que está a ler no momento. O leitor precisa assim de ler mais ativamente, tendo de considerar questões de intertextualidade e género. No entanto, atualmente, apesar dos esforços de vários teóricos da área da literatura infantil, continua a existir o preconceito de que esta é uma literatura pouco exigente e simples, de menor qualidade. A literatura infantil é um tema complexo, que suscita opiniões divergentes entre teóricos e muito mais poderia ser aqui referido acerca da mesma, contudo o presente trabalho não é sobre a literatura infantil, mas sim sobre a tradução de uma obra infantil. Assim sendo, não irei desenvolver mais neste assunto e passarei agora, então, para as questões relativas à tradução de literatura infantil. 1.2 Posição da Literatura Infantil no Polissistema Literário Como já aqui foi referido, um texto encontra-se sempre inserido num determinado contexto que irá influenciar o seu processo de tradução. Se o texto ou partes dele são separados do seu contexto, a perspetiva do público poderá alterar-se. (Oittinen, 2000: 98) Os tradutores, que também fazem parte deste público, irão assim ler de forma diferente consoante as situações em que se encontram. Por essa razão, toda a tradução é um produto do tempo, lugar, cultura e até mesmo do género literário em que se encontra inserida. Para além do prestígio, que já referimos, de que gozam as línguas e os países envolvidos na tradução, também a posição mais ou menos central do autor e do texto a traduzir influencia o processo de tradução. Itamar Even-Zohar, na sua obra The position 17 of translated literature within the literary polysystem, reflete sobre a influência da posição da literatura no polissistema literário e a sua relação com a tradução, e formula a Teoria dos Polissistemas. Para Even-Zohar, um texto nunca é apenas um texto, mas sim um texto que se encontra inserido num polissistema que se relaciona com outros co-sistemas numa dada cultura. Os princípios de seleção para os trabalhos traduzidos variam consoante o polissistema em estudo, os textos são escolhidos de acordo com a sua compatibilidade com as novas abordagens e o seu suposto papel inovador na literatura de chegada. (Even- Zohar, 2000: 193). Segundo o autor, quanto mais prestigiado for um autor, um género literário, ou uma obra numa determinada época e numa cultura, mais central será a posição que ocupa no sistema literário de uma determinada cultura. Quanto menor prestígio tiver, mais periférica será a sua posição. A Teoria dos Polissistemas mostra que não existe uma literatura mais importante do que a outra, mas que são os intervenientes (leitores, editores, críticos literários, etc.) da época em que está inserida a obra/literatura que “decidem” o seu prestígio. O que pode estar no centro do polissistema numa dada época poderá estar na periferia na noutra. O autor considera que, em termos de comportamento literário, a distância entre um “original” e uma obra traduzida depende da posição assumida pela literatura traduzida num determinado momento histórico, pois “não só o estatuto socio-literário da tradução depende da sua posição dentro do polissistema, como a prática da tradução é também fortemente subordinada por esta posição.” (Even-Zohar, 2000:197) O caso da literatura infantil é um caso interessante de estudo. A literatura infantil, como tem como público-alvo as crianças, tem sido, ao longo dos tempos, tendencialmente considerada uma literatura secundária, de menor qualidade e mais simples, ocupando um lugar na periferia. O facto de a literatura infantil ser vista como tendo menor qualidade literária pelos críticos, como a teoria dos polissistemas vem demonstrar, fará com que esta seja traduzida com menor cuidado e menor “respeito”. Outro facto interessante é que, apesar de serem os leitores a “decidirem” que determinado tipo de literatura se encontra no centro numa determinada época, no caso da literatura infantil isto não acontece e apesar de a literatura infantil ser uma literatura que se destina às crianças, elas não têm poder de decisão: Children themselves do not decide on how their literature is defined; neither do they decide on what is translated, published, or purchased for them. Children’s literature 18 as a whole is based on adult decisions, adult points of view, adult likes and dislikes. (Oittinen, 2000:69). Atualmente, parece-nos que a obra de Roddy Doyle, apesar de ser um livro da literatura inglesa – escrito numa língua central, e proveniente de uma cultura prestigiada – não se encontra totalmente no centro do sistema português. De facto, a obra não é muito conhecida nem muito estudada. Para isso também contribuirá certamente o facto de se tratar de literatura infantil que, ela própria, tende a ocupar uma posição periférica no polissistema literário português. Contudo, Roddy Doyle dispõe de uma posição de realce entre os autores de literatura infantil no mundo ocidental, como testemunham o grande número de traduções e de prémios que recebeu. 1.3 Tradução de literatura infantil Antes de nos debruçarmos sobre algumas problemáticas específicas da tradução de literatura infantil, que a distingue da de outros tipos de texto, começaremos por refletir sobre as tendências gerais relativamente à tradução deste tipo de obras. Em qualquer tradução, um tradutor ao traduzir compromete-se sempre com o texto de partida, mas também com o contexto do texto de chegada, ficando desta forma responsável por ambos os textos. Este processo de tradução entre os dois textos não é um processo linear, mas sim um processo progressivo que parte de um texto de partida para um texto de chegada. O tradutor primeiro lê o texto de partida, depois analisa-o e só de seguida procede à sua tradução. Ainda assim é possível que, por vezes, se aconselhe a que se volte à fase inicial para uma segunda análise. Esta segunda análise acontece porque o tradutor é também um leitor que ao traduzir é "influenced by the previous words and passages – the whole reading and viewing situation – which in their turn influence the words and passages to come, and the other way around."(Oittinen, 2000:16) Durante a tradução de The Giggler Treatment, como tradutora, também a minha tradução se viu influenciada. Após uma primeira leitura da obra onde analisei as suas principais características – como a escrita do autor e o papel que nela desempenham o humor, a criatividade e as referências culturais –, de seguida, iniciei a tradução com uma noção dos atributos que podiam influenciar os meus processos de decisão, de forma a tornar o texto de partida o mais próximo do texto de partida. Feita uma primeira análise, voltei atrás no texto retraduzindo alguns termos que considerei mais adequados para o tipo de texto. 19 O tradutor é também responsável por tentar reproduzir o que se encontra no texto de partida para o texto de chegada, sendo este o seu grande objetivo. Segundo Walter Benjamin, em The Task of the Translator, “The task of the translator consists in finding that intended effect [Intention] upon the language into which he is translating which produces in it the echo of the original” (Benjamim, 2000:19) Contudo, isto nem sempre se revela possível, pois uma tradução é sempre escrita num determinado tempo, local, língua, país e cultura e isso irá influenciar a tradução. Desta forma, estes fatores têm de ser tidos em consideração pelo tradutor, que tem de fazer um esforço para que possa haver uma certa lealdade entre o texto de partida e o texto de chegada. O texto de partida foi publicado na Irlanda, no ano 2000, enquanto o texto de chegada é uma tradução feita em Portugal, em 2017, e essa distância temporal e cultural causou alguns desafios à tradução. Um dos principais obstáculos da tradução, apresentados mais à frente, foi precisamente o da cultura e do país de partida. Durante a tradução da obra alguns dos termos faziam referência à cultura de partida como as marcas da oralidade, expressões idiomáticas, unidades de medida/moeda e registos de língua que não são passíveis de uma tradução exata. No entanto, houve um esforço para reproduzi- los no texto de chegada. As referências à cultura de partida são diferentes das da cultura de chegada e, em alguns casos, chegam até a causar estranheza no texto. Para nos ajudar a refletir sobre esta questão, recorreremos aos dois conceitos sobre os quais Lawrence Venuti trabalhou de forma sistemática: o estranhamento (foreignization) e a domesticação (domestication). De acordo com Venuti, o estranhamento normalmente refere-se a um método ou estratégia de tradução onde são deixados traços do texto de partida e as referências à cultura estrangeira são mantidas. A domesticação, por sua vez, assimila um texto e a tradução refere valores culturais e linguísticos da cultura de chegada. (Venuti, 1995). Para o autor, este último tipo de equivalência encontra-se ligado a países com uma cultura dominante e etnocêntrica e deve-se, portanto, dar preferência ao estranhamento em vez da domesticação. Contudo, e segundo o autor, as equivalências mais utilizadas irão variar de texto para texto, pois este é um fenómeno de tempo, sociedade, normas e poder. Na tradução de literatura infantil é frequente tender-se a optar pela domesticação, como afirma Oittinen: “I admit that Puurtinen has a point when asserting that foreignness and strangeness may be more expected in literary translations for adults than for children.” (Oittinen, 2002: 33) Partindo-se do pressuposto de que numa tradução o principal objetivo é que o texto traduzido tenha um efeito semelhante no público-alvo ao 20 que o texto de partida tinha nos seus leitores, com um público-alvo com um conhecimento menos alargado e com menor conhecimento sobre as culturas estrangeiras a equivalência que prevalece é a domesticação. Na tradução de The Giggler Treatment apresentada mais à frente neste trabalho, apesar de por vezes se ter optado pelo estranhamento também teve de se recorrer à domesticação. O estranhamento funciona em casos em que o leitor percebe que a obra é de origem estrangeira, contendo termos e referências estrangeiras. No que toca a referências culturais como as expressões idiomáticas ou as marcas da oralidade, ou seja, características da obra em geral, optou-se pela domesticação, de forma a manter a essência da obra e o efeito do texto. Para além disso, em alguns casos, como nas unidades de medida, converteram-se os valores apresentados de “inches” para “centímetros”. Como na cultura do texto de chegada são utilizados centímetros, através da conversão, o leitor poderá, mais facilmente, formar mentalmente uma imagem mais próxima da realidade e compreender a situação descrita, já que tem um melhor conhecimento e melhor noção desta unidade de medida. Perde-se, no entanto, a informação relativa à unidade de media usada no país de partida. Nos casos em que não se punha em causa essa essência optou-se pelo estranhamento de forma a dar a conhecer alguns aspetos da cultura de partida ao leitor. Para além da tradução, nas obras escritas para crianças vemos também feitas muitas adaptações. Aqui o termo adaptação refere-se a: adaptations prompted by different views as to the nature of translating, resulting in additions, deletions, harmonizations, added explanations, corrections, and embellishments. Cultural reinterpretations involve transferring the cultural setting from one language-culture context to another. (Oittinen, 2000:78) Segundo Oittinen, a adaptação é tipicamente definida relativamente ao desvio do original, ao contrário da tradução, que pretende ser o mesmo ou equivalente ao original (Oittinen, 2000:6). Outro inconveniente da adaptação é a sua “visibilidade”. Ao traduzir, o tradutor tende a ser invisível porque está a tentar reproduzir o trabalho do autor do texto de partida para o texto de chegada e numa adaptação isto não se verifica, já que as suas modificações são bem visíveis: The reflection of the author’s personality in the language of his works is called his individual style, and is peculiar to him alone. This is why I say that when we distort his style we also distort his face. If in translation we foist our own style on him, we 21 turn his self-portrait into a self-portrait of a translator (...) only a “poor” translator “distorts” the original author’s face, but a good translator is an “invisible man. (Oittinen, 2000: 82) Assim sendo, por que razão se continuam a fazer adaptações de obras infantis? As adaptações são feitas por várias razões e uma delas é para que as crianças consigam perceber melhor a história. Outras são feitas para tornar o texto de chegada mais atrativo para o público nacional e internacional, de forma a impulsionar as vendas das obras. No caso da literatura infantil, e como toda a tradução é sempre influenciada por “for whom, and when, where, and why" (Oittinen, 2000:12) para além de ter as condicionantes acima apontadas, o tradutor terá de ter um especial cuidado com a escrita utilizada na tradução. Os tradutores agem de formas diferentes consoante o tipo de público para quem traduzem. Gideon Toury em, The Nature and Role of Norms in Translation, afirma que “at any rate, translators performing under different (e.g. translating texts of different kinds, and/or for different audiences) often adopt different strategies, and ultimately come up with markedly different products.” (Toury, 2000:199) Como “[a] child, after all, is not a miniature grown-up but a human being in a magical world of talking animals.” (Oittinen, 2000:49), este público peculiar requer outro tipo de trabalho, pouco usual na literatura para adultos, e um exemplo disso, que não encontramos normalmente nas obras para adultos, são as ilustrações. Relativamente às problemáticas específicas da tradução de literatura infantil, remetemos para Tabbert (2002: 317), que, a partir da sua leitura dos estudos relativos à tradução de literatura infantil, identifica 5 categorias que merecem especial atenção do tradutor, aquando da tradução de literatura infantil: “: (1) interplay of picture and words in picture books, (2) cultural references, (3) playful use of language, (4) dialect, register, names, (5) the possibility of double address (of child and adult).” Comecemos pelo primeiro, referindo o papel das ilustrações e da sua relação com o texto, isto no caso das obras que, como The Giggler Treatment, as incluem. Uma obra infantil, na sua grande maioria, é marcada por texto e por imagem e entre estes dois elementos tem de haver concordância. Assim, quando um tradutor traduz um texto de uma língua A para uma língua B tem de ter em conta tanto o texto como as imagens que se seguem: Translators of picture books translate whole situations including the words, the illustrations, and the whole (imagined) reading-aloud situation. Illustration is a 22 many-faceted phenomenon in translation: on the one hand, illustrations go along with translations and their originals; on the other hand, illustration can be understood as a form of translation as such. (Oittinen, 2000:76). As ilustrações na literatura infantil ocupam, portanto, um lugar de grande importância, chegando a ser, por vezes, mais importantes do que o próprio texto, visto que muitas destas ilustrações estão presentes em obras que se destinam a crianças iletradas e é através das imagens que as crianças retêm informação. Como a ilustração faz parte de um conjunto de condições e é parte de um diálogo de interação, o tradutor numa obra infantil não pode excluir a ilustração e tem, portanto, de interpretar tanto o texto verbal como visual. Torna-se por isso necessário combinar várias histórias (a do autor e a do ilustrador) para recrear a história na língua de chegada. Nesta tradução da obra de Doyle, também senti a necessidade de cruzar a informação das ilustrações com o texto. As ilustrações continham informação adicional que teve de ser tida em consideração para uma tradução abrangente e coerente do texto de partida. Veremos em pormenor o exemplo dado no capítulo dedicado à análise de casos, mais à frente. A segunda categoria assinalada por Tabbert são as referências culturais. Como mostra Umberto Eco, esta é uma questão essencial em qualquer tipo de tradução, pois, como afirma: Já se disse, e é ideia atualmente aceite, que uma tradução não diz respeito só a uma passagem entre duas línguas, mas sim entre duas culturas, ou duas enciclopédias. Um tradutor não deve ter apenas em conta as regras estreitamente linguísticas, mas também elementos culturais, no sentido mais amplo do termo. (Eco, 2005:167) No caso da literatura infantil, as referências culturais têm um papel essencial, pois, como já mostrámos, esta tem uma função didática, permitindo ao jovem leitor aprender sobre o mundo que o rodeia e a cultura estrangeira, de partida, caso as referências sejam mantidas. Outra característica da literatura infantil que também se revela uma dificuldade para o tradutor é a terceira referida por Tabbert, a criatividade linguística. Esta é uma fonte de divertimento e prazer de leitura para os jovens leitores, como mostraremos mais à frente, daí que seja uma característica essencial do texto, que merece a atenção e esforços do tradutor para a transpor para o texto de chegada. Associamos a esta 23 característica a musicalidade do texto, pois este destina-se muitas vezes a uma leitura em voz alta, algo que Riita Oittinen refere com frequência. Como as obras para crianças muitas vezes têm como destino um público iletrado e “listening to books being read aloud is the only way for an illiterate child to enter the world of literature” (Oittinen, 2000:32), o autor tem o cuidado de escrever para uma leitura acompanhada por um adulto. Desta maneira, o escritor ao compor uma obra que se destina a uma leitura em voz alta tentará através da sua escrita – com pontuação, onomatopeias e grafia - dar algum ritmo/entoação ao texto de forma a facilitar e fomentar esta leitura. O tradutor, de acordo com Riitta Oittinen, deverá também tentar transpor essas características para o texto de chegada: “The translator translating for children should pay attention to this usage of children’s literature and remember that a child under school age listens to texts read aloud, which means that the text should live, roll, taste good on the reading adult’s tongue.” (Oittinen, 2000:33) Características como as onomatopeias e interjeições, repetições e paralelismos e o grafismo são fatores que contribuem para a musicalidade do texto e estão presentes na obra de Doyle. O autor optou por inserir no seu texto características que contribuíssem para uma musicalidade própria de leitura em voz alta e, nestes casos, houve, na tradução, também, um especial cuidado para tentar manter estes mesmos atributos. Ainda no âmbito das dificuldades de tradução demos, na nossa tradução, uma atenção especial aos diferentes registos de língua existentes no texto de partida, o que corresponde à quarta característica referida do Tabbert. Esta variedade e coexistência de registos de língua diferentes são essenciais para a dinâmica do texto e contribuem até, como mostraremos na secção relativa ao comentário da tradução, para caracterizar as personagens. Esta coexistência funciona também para o jovem leitor, como uma caracterização da sociedade, em que indivíduos diferentes, em contextos diferentes, utilizam a língua de formas também elas diferentes. Quanto ao último tipo de traços referidos por Tabbert, o facto de o texto se poder dirigir simultaneamente à criança e ao adulto que a acompanha, nomeadamente através da leitura oral, essa também foi uma característica que tivemos em consideração aquando da nossa tradução da obra de Doyle. Parece-nos que a importância desta categoria se torna mais clara se a relacionarmos com o conceito a que Riitta Oittinen chamou de “child image”. Isto porque, quando os tradutores traduzem, eles têm a sua própria “child image” a quem direcionam o seu trabalho: The child image of the translator for children (and her/his time and society) could be 24 described as this kind of a “superaddressee”: she/he is directing her/his words, her/his translation, to some kind of a child: naive or understanding, innocent or experienced; this influences her/his way of addressing the child, her/his choice of words. (Oittinen, 2000:24) Os tradutores da literatura para crianças são, portanto, leitores que trazem dimensões da sua infância para as suas experiências de leitura. Apesar de “child image” ser um conceito próprio de cada tradutor, isto é, diferente consoante o tradutor enquanto individuo, também existe uma dimensão coletiva desta noção: “Child image is a very complex issue: on the one hand, it is something unique, based on each individual’s personal history; on the other hand, it is something collectivized in all society.” (Oittinen, 2000:41) Isto, juntamente com o facto de que todos os tradutores, em especial os tradutores de obras para crianças, traduzem para um público em especial - que Riitta Oittinen designa de “superaddressees,” – mostra-nos que por de trás de todo o ato de tradução são feitas suposições acerca dos futuros leitores da tradução que irão influenciar as traduções. Assim, como temos vindo a sublinhar, uma tradução de um texto A feita por um tradutor será sempre diferente de uma tradução do mesmo texto A feita por outro tradutor. Em suma: [i]n a dialogic situation, a translator reads and writes her/his reading in another language for her/his future audience in another culture. Translation is always based on the translator’s reading experience, on the dialogic transaction between the reader and (the author of the) book. (Oittinen, 2000:25), refere Riitta Oittinen. A tradução aqui apresentada também ela se destina a um determinado público- leitor que regulou as decisões de tradução tomadas. O texto de chegada tinha como público-alvo um jovem leitor português, dos três anos ao ensino básico, que usufrua de uma leitura acompanhada ou de uma leitura autónoma. Esperava-se deste público um conhecimento pouco alargado da cultura de partida. Posto isto, optou-se algumas vezes, por aquilo que Venuti chama de domesticação de forma a obter o mesmo efeito no publico de chegada e, em alguns casos, pelo estranhamento de forma a dar a conhecer a cultura de partida ao leitor, respeitando assim a função didática da literatura infantil. 25 2.Proposta de Tradução de The Giggler Treatment O Tratamento das Risinhos CAPÍTULO UM O Senhor Mack ia a pé para a estação de comboio. Estava uma agradável manhã solarenga. Os pássaros nas árvores cantavam as suas canções preferidas. E a brisa que soprava estava cheia de cheiros de pequeno-almoço, bacon, ovos, pernas de rã e repolho. "Nham" – disse o Senhor Mack para consigo. O Senhor Mack sentia-se feliz. O Senhor Mack sentia-se muito feliz. Tinha um bom almoço na sua lancheira - e uma surpresa no seu cantil térmico – e os beijos de despedida dos filhos ainda faziam cócegas nas suas bochechas. Estava a ir para o trabalho e gostava do seu emprego. Na verdade, o Senhor Mack adorava o seu emprego. Era um provador de bolachas numa fábrica de bolachas. Era responsável por certificar-se de que as bolachas tinham a quantidade certa de chocolate, caso levassem chocolate. E media-as para se certificar de que elas eram exatamente quadradas, caso fossem quadradas, ou exatamente redondas, caso fossem redondas. Mas melhor que tudo, ele provava-as. Não todas. Provava três de manhã e quatro à tarde para se certificar de que estavam no ponto. Estava desejoso de ir para o trabalho, porque hoje iria testar as suas bolachas preferidas de todo o sempre, rolos de figo. A fábrica fazia 365 tipos de bolachas, uma bolacha diferente para cada dia do ano. O Senhor Mack gostava da maior parte destas bolachas e adorava algumas delas. Mas os rolos de figo sempre estiveram em primeiro lugar na sua lista. Adorava a forma delas. Adorava o cheiro. Adorava a inteligência. Eram bolachas tão espertas. Eram deliciosas sem que precisassem da ajuda do chocolate. E hoje era o "Dia de provar os rolos de figo". Por isso, o Senhor Mack era um homem muito feliz. Mas a caminho da estação, logo depois de ter virado a esquina, viu uma gaivota sentada num ramo de uma árvore. "Sabe que mais, Senhor?", disse a gaivota. "Eu odeio peixe." "Não sabia que as gaivotas conseguiam empoleirar-se nas árvores.", disse o Senhor Mack. Continuou a caminhar, mas olhou para trás para ver, uma vez mais, a gaivota. 26 E foi uma pena, porque ele não viu o cocó de cão que estava mesmo à sua frente, no seu trajeto. Pobre Senhor Mack. O seu sapato estava a dirigir-se diretamente para aquele cocó. CAPÍTULO DOIS E depois? E depois? Sim. E depois? As pessoas pisam cocó de cão a toda a hora. Até os cães pisam cocó de cão de vez em quando. Mas era gigante. Era um grande monte de cocó de cão, húmido e fresco. Era provavelmente o maior monte de cocó do mundo. Cão grande, cocó grande. E depois? Estou aborrecido. Vou saltar algumas páginas e ver se há mais alguma coisa sobre bolachas. Espera. Espera! A história não é sobre bolachas. E não é sobre o cocó. A história é sobre as pessoas que puseram o cocó no caminho para que o Senhor Mack o pisasse. As pessoas que o puseram lá? Era cocó de cão, por isso veio de um cão. Certo? Certo. Então, um cão parou no caminho do lado de fora da estação de comboios. Ficou lá um bocadinho e deixou o cocó antes de fugir. Certo? Errado. Era cocó de cão, mas não foi um cão que o pôs lá. E esta história é sobre as pequenas pessoas que o puseram lá, dez segundos antes de o Senhor Mack virar a esquina. CAPÍTULO TRÊS Quatro passos, três passos, dois passos. O Senhor Mack já tinha visto suficientemente a gaivota. Ele ia virar-se a tempo de ver o cocó, mas a gaivota falou outra vez. "Peixe", disse a gaivota. "Nem me falem de peixe." Quatro passos, três passos, dois passos, um. O pé esquerdo do Senhor Mack estava mesmo por cima do produto de cão. A sola do seu sapato estava exatamente a quarenta e um centímetros e meio do pico do cocó. E, ao Senhor Mack, pareceu-lhe ouvir risadinhas. E estava certo. Tinha ouvido risadinhas. 27 Como estas: "Risadinha, risadinha, risadinha." O cocó estava no meio do caminho. O caminho estava ao lado do muro de um jardim. E as Risinhos estavam do outro lado do muro, escondidas atrás dele. Eram três. Estavam em cima da barra transversal de uma bicicleta velha e enferrujada que estava encostada ao muro há mais de vinte anos. A bicicleta era tão velha que quase se tinha tornado parte do muro. As Risinhos observaram o Senhor Mack à medida que ele se aproximava do cocó. Tinham contado os passos. "Quantos faltam?" "Quatro." "E agora, quantos faltam?" "Três." "E agora, quantos faltam?" "Dois." Ouviram a gaivota a falar com o Senhor Mack. E baixaram-se por trás do muro à medida que o Senhor Mack se aproximava do cocó. "E agora, quantos faltam?" "Um." Elas esperaram. UM CAPÍTULO QUE NA VERDADE NÃO É UM CAPÍTULO PORQUE NA VERDADE NÃO ACONTECE NADA NELE MAS VAMOS CHAMÁ-LO CAPÍTULO QUATRO Não acontece nada neste capítulo. Mas responde-se a algumas das questões que estão provavelmente aos pulos nas vossas cabeças. Como esta: Porquê? Porquê o quê? Porque é que as Risinhos colocaram o cocó no caminho? Boa pergunta. Fizeram-no por causa de algo que o Senhor Mack tinha feito na noite anterior ao dia em que se dirigia para a estação de comboios. Mas eu vou contar- vos tudo mais à frente porque estes capítulos onde nada acontece tornam-se chatos num instante. 28 Agora, de volta à história. CAPÍTULO CINCO QUE PROVAVELMENTE DEVERIA CHAMAR-SE CAPÍTULO QUATRO MAS VAMOS CHAMÁ-LO CAPÍTULO CINCO De volta à estação de comboio, as Risinhos esperaram. Elas esperaram pela pancada – o Senhor Mack a acertar no cocó. Elas esperaram pelo esborrachar – o Senhor Mack a pisar o cocó. Elas esperaram pelo suspiro – o Senhor Mack a ver o cocó pela primeira vez. Elas esperaram pelo lamento – o Senhor Mack a ver que grande parte do cocó estava agora no seu sapato. O seu sapato estava agora muito, muito perto do tu-sabes-o-quê. "Quão perto?" disse a Risinho mais pequena. "Trinta e cinco centímetros e mais um quarto." disse a maior das Risinhos. "Isso é muito perto", disse a de tamanho médio. E ela enfiou o punho na boca para entalar as suas risadinhas. E elas esperaram. CAPÍTULO SEIS QUE PROVAVELMENTE DEVERIA SER CHAMADO CAPÍTULO CINCO É MAIS UM DESSES CAPÍTULOS ONDE NÃO ACONTECE NADA DE MAIS À EXCEÇÃO DE UMA COISA MUITO EMOCIONANTE NO FINAL Mais perguntas. Como esta: Quem são as Risinhos? Boa pergunta. As Risinhos olham pelas crianças. E elas fazem-no muito bem. Mas elas fazem-no de uma forma tão discreta que quase nunca ninguém as viu. Como é que elas olham pelas crianças? Boa pergunta. Elas seguem-nas para todo o lado. Para a escola, para as lojas, para o parque, para casa novamente, para o andar de cima, para a casa de banho, para todo o 29 sítio. Para onde quer que as crianças vão, as Risinhos estão sempre por perto, sempre a olhar por elas. Com o que é que elas se parecem? Boa pergunta. Apenas algumas pessoas já viram as Risinhos e elas nunca falam delas a ninguém. Por isso, é difícil dizer com o que é que as Risinhos se parecem. Elas são criaturas do tamanho de bebés e peludas. O seu pelo muda de cor consoante elas se movem. Como um camaleão? Sim, como um camaleão. Se elas estão perto de uma parede branca, elas tornam- se brancas. Se elas estão perto de uma árvore, elas tornam-se verdes e castanhas. Se elas estão perto de um carro – bem, depende da cor do carro, mas elas não são muito boas com o roxo, por isso elas tentam não aproximar-se muito de carros roxos. Porque é que elas seguem as crianças? Outra boa pergunta. Elas seguem as crianças para se certificarem de que os adultos estão a ser justos com elas. Pais, professores, tias, donos de lojas. Todos os adultos. Se eles são maus para as crianças, recebem o Tratamento das Risinhos. Se mandam uma criança para a cama sem o seu jantar ou se assustam uma criança, recebem o Tratamento das Risinhos. Se são desonestos com uma criança, se, digamos, dão peixe a uma criança e dizem que é galinha ou se dão um pum e depois culpam as crianças por isso, recebem o Tratamento das Risinhos. Se alguma vez eles forem brutos com uma criança ou as obrigarem a usar roupas que elas odeiam, recebem o Tratamento das Risinhos. O que é o Tratamento das Risinhos? Cocó no sapato. E o que acontece depois? Os adultos continuam a receber o Tratamento todos os dias, às vezes duas ou três vezes por dia, até pararem de ser maus para a criança. As Risinhos sempre fizeram isso? Sim, desde o início dos tempos. As Risinhos estiveram sempre presentes. Desde que o primeiro cão fez o seu primeiro cocó. Desde que o primeiro homem das cavernas grunhiu para o seu primeiro filho das cavernas. Ele foi aos tropeções para fora da sua caverna e foi, diretamente, em direção a um grande pedaço de cocó pré-histórico. O Imperador Romano, Nero, odiava crianças. Ele ordenou aos seus guardas que apanhassem todas as crianças e que as dessem de comer aos leões. De seguida, ele pisou um montão de cocó de leão. (Havia mais leões do que cães na Roma Antiga.) Muitos anos 30 mais tarde, um santo chamado Patrício estava ocupado a levar todas as serpentes para fora da Irlanda. Um pequeno menino chamado Elvis Óg O'Leary, que adorava serpentes, pediu ao Patrício que parasse, mas o Patrício empurrou-o para fora do seu caminho – e foi, diretamente, em direção a uma pequena montanha de cocó quente que, apenas segundos antes, havia estado dentro de um lébrel irlandês, chamado Bran. O São Patrício livrou-se das serpentes, mas nunca se livrou do cheiro. Dois minutos após o Titanic bater no icebergue, uma mulher no convés gritou "Depressa, depressa! As crianças vão afogar-se!" "Ainda bem"- disse um homem. "Assim haverá mais espaço nos botes salva- vidas." E ele pisou uma montanha do mais pegajoso e verde cocó de cão e deslizou para fora do convés, diretamente para o mar. "Oh mãezinha!", rugiu ele. "Esqueci-me das nhas braçadeiras!" Então, como vês, as Risinhos têm estado a fazer esse trabalho há milhares de anos. Todo este tempo, elas têm dado o Tratamento aos homens e mulheres que são maus para as crianças. Como é que o Senhor Mack foi mau para os seus filhos? Boa pergunta e a resposta está a chegar em breve. Mas agora vamos para o próximo capítulo. Então, e a coisa muito emocionante que vem no final deste capítulo? Ah, sim. Quase que me esquecia. Enquanto eu te falava sobre as Risinhos, uma mulher que estava a caminhar num parque em Bombaim quase pisou um caracol. Isso não foi emocionante. Bem, o caracol achou que foi. CAPÍTULO SETE QUE PROVAVELMENTE DEVERIA SER CHAMADO CAPÍTULO CINCO ...PENSO EU... MAS VAMOS LÁ CHAMÁ-LO DE... EU NÃO SEI QUE CAPÍTULO É SUPOSTO SER As Risinhos esperaram. O sapato estava agora exatamente, exatamente, exatamente a trinta centímetros e um bocadinho do "cocó-que-tu-sabes". 31 "A qualquer momento agora", - sussurrou ela para a Risinho maior. Elas esperaram pelo tóc tóc tóc – o Senhor Mack a saltar num pé só, tentando não cair no chão. Elas esperaram pela pequena batida – o Senhor Mack a apoiar-se contra a parede, apenas sete centímetros de tijolo e cimento das Risinhos. A Risinho maior olhou por cima da parede e baixou-se outra vez. "Vinte e cinco centímetros.", disse ela. "Bacalhau?" disse a gaivota. "Bierk." A Risinho de tamanho médio entulhou a boca com a outra mão e um pé para impedir que as risadinhas escapassem. Ela caiu da bicicleta mas não fez barulho, porque aterrou na relva suave e comprida. "Sai de cima", disse a relva. Não, não disse. Estou só a brincar. Mas chegou a altura de explicar porque é que as Risinhos estavam a fazer isto ao Senhor Mack. CAPÍTULO OITO QUE PROVAVELMENTE DEVERIA SER CHAMADO DE CAPÍTULO... ESPERA AÍ. UM, DOIS, TRÊS, QUATRO... AH, PÁRA DE BRINCAR E CONTINUA A HISTÓRIA No dia antes de o pé do Senhor Mack se dirigir diretamente ao cocó, mesmo antes de estar demasiado escuro para brincar lá fora, os irmãos Mack, Jimmy e Robbie, partiram a janela da cozinha. Estavam a jogar futebol com uma bola rota quando isso aconteceu. Robbie Mack deu uma pancada na bola com o seu dedo grande. A bola bateu na cabeça do Jimmy Mack e saltou, voou contra a janela e quebrou o vidro. “Ai!” disse o Robbie. “O mê dedo!” “Ai!” disse o Jimmy. “A nha cabeça!” “Ahhh!” disse o Senhor Mack. “A nha janela!” Ele estava lá em cima quando ouviu o barulho. Estava na casa de banho a por um penso rápido no dedo. Tinha cortado o dedo ao meter o vidro novo na janela da cozinha, apenas cinco minutos antes de a bola a ter quebrado. 32 Correu lá para baixo até à cozinha e viu a janela partida. Portanto, continuou a correr até ao jardim. “Quem é que fez isto?”, gritou ele. “Não fomos nós”, disse o Robbie. “Foi a bola.” “Acabei de a consertar!”, disse o Senhor Mack. “Não é justo.” O Senhor Mack tinha tido um dia muito difícil. “É a sétima vez que tive de consertar esta janela,” disse ele, “em sete dias!” Olhou para o Robbie e para o Jimmy. “Meninos, meninos, meninos”, disse ele. “Quantas vezes é que eu vou ter de a consertar?” “Oito”, disse o Robbie. O Robbie não estava a tentar armar-se em esperto ou ser malcriado quando deu esta resposta. Estava a dar ao Senhor Mack a resposta correta. A janela tinha-se partido sete vezes e agora ele iria ter de consertá-la uma vez mais. Sete e um fazia oito. Por isso, o Robbie estava certo. Mas o pobre Senhor Mack tinha tido um dia muito difícil. Tinha passado o dia todo a provar cream crackers, que eram bolachas muito aborrecidas. Na verdade, o Senhor Mack nem sequer achava que elas eram verdadeiramente bolachas. Eram sempre aborrecidamente quadradas e sabiam a nada, exceto àquilo que sabiam, às velhas e aborrecidas creack crackers. E o pobre Senhor Mack passou o dia a medi-las e a comê-las. Estava cheio até às pontas dos cabelos de cream crackers. Sabia que iria sonhar com cream crackers esta noite. Tinha sempre o mesmo sonho com cream crackers depois de passar o dia a medi-las e a comê-las. Não era um sonho com cream crackers assassinas ninja ou com bonitas cream crackers de olhos castanhos ou nada assim tão interessante como isso. Nem pensar. Neste sonho, o Senhor Mack estava sempre rodeado de centenas de cream crackers falantes, todas a dizer as coisas mais chatas de todo o sempre. “Os bebés são mais pequenos que os adultos. Não é interessante?” “O papel higiénico é normalmente branco, mas nem sempre. Não é interessante?” “Um carro tem quatro rodas, mas uma bicicleta tem apenas duas. Não é interessante?” Toda a noite, as cream crackers falantes ficavam a tagarelar para o Senhor Mack. (Esta era mais uma razão pela qual o Senhor Mack adorava rolos de figo. Eles nunca falavam quando o Senhor Mack ia dormir). Ele não estava ansioso para que chegasse a hora de dormir, apesar de estar muito cansado. Já conseguia ouvir no seu cérebro as cream crackers a para ali balbuciar. 33 “Alguns pijamas têm riscas e alguns não tem riscas de todo. Não é interessante?” Mas esta não era a parte pior do dia. Algo estranho acontecera ao Senhor Mack na hora de almoço. Um abutre tinha-se lançado da árvore abaixo e roubara-lhe as sanduíches. E, antes que ele tivesse tido tempo para recuperar do choque, o abutre voltou e roubou- lhe o cantil térmico. Depois disso, teve de arranjar a janela da cozinha pela sétima vez em sete dias e cortou o dedo ao fazê-lo. Estava com fome e cansado e com o dedo dorido e as cream crackers já estavam a tagarelar. “Se tu meteres os teus pés na água, eles ficam molhados. Não é interessante?” O abutre meteu-lhe a língua de fora enquanto voava para longe com o seu cantil térmico. O cantil térmico estava cheio de caldo de galinha, a sopa preferida do Senhor Mack, de todo o sempre. E agora, pensou ele, os seus filhos estavam a ser malcriados. O Senhor Mack estava farto. “Subam para o vosso quarto,” disse ele ao Robbie e ao Jimmy. “Mas eu estou com fome,” disse o Jimmy. “Não quero saber,” disse o Senhor Mack. “Subam para o vosso quarto.” E foi por isso que, na manhã seguinte, o cocó estava à espera do Senhor Mack. O que o Senhor Mack não sabia – e o que mais ninguém sabia – é que as Risinhos estavam a ouvi-lo. Estavam no armário debaixo das escadas. Olharam umas para as outras e acenaram com a cabeça. “O Tratamento?” disse a mais pequena, muito baixinho. “O Tratamento,” disse a maior. “Cocó?” disse a mais pequena. “Cocó,” disse a maior. CAPÍTULO QUALQUER COISA De volta à estação, a Risinho maior baixou-se novamente. “Quanto falta agora?” “Vinte centímetros.” E a Risinho de tamanho médio caiu novamente da bicicleta. OUTRO CAPÍTULO O Senhor Mack voltou para a cozinha. A mãe dos rapazes, Billie Jean Fleetwood-Mack, estava lá com a bebé, Kayla. A Kayla estava a comer uma bolacha sem açúcar. “A-bá,” disse ela. 34 “Não,” disse a Billie Jean. “Não podes ter uma com açúcar. Fazem-te mal aos dentes.” “A-bá,” disse a Kayla. “Eu sei que não tens dentes”, disse a Billie Jean. “Mas em breve terás.” “A-bá.” “Sim, eu sei que o teu pai come bolachas. É o emprego dele. É um trabalho perigoso,” disse Billie Jean orgulhosa. “Mas alguém tem de o fazer.” Ela agora falava com o Senhor Mack. “Os rapazes não podem ir para a cama sem o jantar,” disse ela. “Eu sei”, disse o Senhor Mack. “Vou mandá-los descer dentro de minutos.” “Eles não fizeram de propósito”, disse a Billie Jean. “Eu sei”, disse o Senhor Mack. “A-bá”, disse a Kayla. “Eu sei”, disse o Senhor Mack. “A-bá” era a única palavra que a Kayla conseguia dizer até agora, mas como todos os Macks a amavam imenso, conseguiam perceber exatamente o que ela queria dizer. O Senhor Mack acariciou a bochecha da Kayla. “Só que foi um dia difícil. Deviam ter visto o abutre.” “A-bá?”, disse a Kayla. “Ainda maior”, disse o Senhor Mack. Depois foi para o corredor e chamou-os das escadas. “Rapazes! Desçam para o jantar!” “O que é?” gritou o Robbie. “O que tu quiseres”, disse o Senhor Mack. Mas as Risinhos não o ouviram dessa vez. Era demasiado tarde. Já tinham ido. Já tinham ido procurar o pedaço de cocó certo para o sapato do Senhor Mack. O CAPÍTULO A SEGUIR AO ÚLTIMO Elas esperaram pelo desliza desliza desliza – o Senhor a esfregar o sapato em alguma relva. E pelo tchu tchu tchu – o comboio a ir embora, ah ah. E do pum pum ai – o Senhor Mack batendo com a cabeça no muro. Vinte centímetros. Dezassete. 35 Quinze. Doze. Elas esperaram pela primeira grande batida – o pé do Senhor Mack a cair de chapa no cocó-que-tu-sabes. “Douradinhos de bacalhau?”, disse a gaivota. “Bierk!” A Risinho de tamanho médio enfiou o outro pé na boca. Porque é que estava a demorar tanto tempo para que o pé do Senhor Mack acertasse no cocó? Boa pergunta. O Senhor Mack estava a usar umas calças novinhas em folha e eram muito duras. Eram tão duras que ele mal conseguia dobrar e esticar as pernas. Agora vamos descobrir onde as Risinhos arranjaram o o-que-tu-cocó-sabes. O CAPÍTULO ANTES DO PRÓXIMO Os cães não gostam de ir à casa de banho na rua. Mas os donos obrigam-nos a fazê-lo. “Vamos lá, Rover. Vamos dar um passeio,” diz o dono do Rover enquanto o arrasta para a porta de entrada. “Vamos fazer cocó, é mais isso”, diz o Rover para consigo. “Tu não me enganas.” Pobre Rover tem de se por na rua, normalmente a altas horas da noite, à chuva e à neve, com trovoada e relâmpagos, sob o clarão das luzes dos carros que passam e ir à casa de banho enquanto o dono fica especado a olhar para ele. “Lindo menino, Rover. Despacha-te,” diz o dono. “Deixa-me em paz”, diz o Rover para consigo. “O meu rabo está frio.” Mas o Rover faz o seu cocó porque sabe que não volta para casa se não o fizer. E depois chegam as Risinhos. Na noite em que o Senhor Mack mandou os rapazes para o quarto, o Rover tinha feito um monstruoso. “Uau!” disseram as Risinhos, esfregando as mãos e dando risadinhas. “O bom velho Rover. Nunca nos desilude.” Estavam lá quatro Risinhos naquela noite. A maior, a de tamanho médio, a mais pequena e aquela que era ainda mais pequena do que a mais pequena. Esta era a primeira vez que a ainda mais pequena do que a mais pequena tinha vindo numa missão de “encontrar cocó”, por isso estava muito entusiasmada. “Estamos prontas?” disse a maior. “Prontas.” 36 “Luvas de borracha?” “Luvas de borracha.” “Saco plástico?” “Saco plástico.” “Pinça de cocó?” “Pinça de cocó.” A Risinho mais pequena levantou o cocó do chão com a pinça de cocó. Era uma pinça de plástico como a de um caranguejo que abre e fecha quando se puxa a alavanca na pega. A Risinho de tamanho médio manteve o saco plástico aberto para o cocó. “Solta o cocó,” disse a Risinho maior. “Soltando o cocó,” disse a Risinho mais pequena. E soltou o cocó para dentro do saco plástico. “Apanhando o cocó,” disse o Risinho de tamanho médio. E fechou o saco. “Muito bem,” disse a Risinho maior. “Vinte cêntimos.” disse a Risinho ainda mais pequena do que a mais pequena. Isto foi um grande momento. Ela tirou o dinheiro da bolsa que cobria a sua barriguinha verde. A sua barriguinha era verde porque o Rover tinha deixado o cocó mesmo ao lado de um carro verde. Segurou-o bem lá no ar. “Vinte cêntimos!” “Boa,” disse a maior delas. “Vamos embora.” O dinheiro era para o Rover. As Risinhos pagavam sempre pelo cocó delas. “Rover! Rover!” A Risinho mais pequena mantinha a caixa de correio aberta enquanto a maior delas sussurrava gritando para o corredor da casa do Rover. O Rover estava lá em cima sentado na sanita. Fazia sempre isso quando o dono tinha ido para a cama. O dono dele nunca conseguia perceber como é que o pelo de cão ia parar ao acento da sanita ou como as pegadas da pata iam parar ao papel higiénico. Todos os cães fazem isto e nunca, nunca são apanhados. “O que foi agora?” disse o Rover. “Um cão já não pode ter paz?” Limpou o rabo e puxou o autoclismo. Lavou as patas e secou-as e foi lá para baixo para o corredor. (O Rover, já agora, era o bis bis bis – continua a dizer “bis” durante vinte minutos – neto do Bran, o lébrel irlandês.) 37 O Rover viu uma mão de uma Risinho a sair através da caixa do correio, segurando uma moeda de vinte cêntimos. A porta era vermelha, a mão era vermelha. Pegou na moeda. “Obrigada, Rover,” disse a Risinho mais pequena do que a mais pequena. “Aquilo foi um clássico.” “D’nada,” disse o Rover, porque é difícil dizer “De nada” quando estás a segurar uma moeda de vinte cêntimos entre os dentes. O Rover voltou para a cozinha. Encontrou o grande osso que o seu dono lhe tinha dado naquele dia. (O dono do Rover, já agora, era o bis bis – continua a dizer “bis” por duas horas e trinta e sete minutos – neto do primeiro homem das cavernas.) O osso estava no tapete. O Rover segurou o osso entre as patas e puxou a moeda de vinte cêntimos para a parte oca, onde a medula costumava estar. O dono do Rover adorava-o. Adorava a maneira como ele se sacudia quando estava molhado. Adorava a maneira como puxava as cartas pela caixa de correio quando o carteiro as entregava e não se importava nem um bocadinho quando as cartas ficavam ensopadas. Era um cão muito esperto. Conseguia implorar. Conseguia apanhar paus. O que o seu dono não sabia – e o que mais ninguém sabia é que o Rover era um milionário. O Rover tinha enterrado mais de um milhão de euros, tudo em moedas de vinte cêntimos e todas dentro de ossos ocos, no jardim das traseiras do seu dono. Todo aquele dinheiro lhe tinha sido dado pelas Risinhos. “Oh, olha para o Rover a enterrar o osso. Não é esperto?” “Ah ah ah,” disse o Rover para consigo. “Tu nunca saberás quão esperto.” O Rover odiava ossos. ESTE CAPÍTULO TEM O NOME DA MINHA MÃE PORQUE ELA DISSE QUE PODERIA FICAR ACORDADO ATÉ TARDE SE EU DESSE O NOME DELA CAPÍTULO MAMÃ DOYLE A Risinho maior olhou por cima do muro. “Doze centímetros,” disse ela. “Chicharro?” disse a gaivota. “Bierk!” 38 ESTE CAPÍTULO TEM O NOME DO MEU FRIGORÍFICO PORQUE ELE MANTÉM TODA A MINHA COMIDA FRESCA CAPÍTULO FRIGORÍFICO No exato momento em que o Senhor Mack se dirigia para o cocó, o Jimmy Mack caiu de um banco na cozinha enquanto se inclinava para encher a sua boca de papa de aveia. A tigela de papa de aveia virou e aterrou na cabeça do Robbie. “Ai!” disse o Jimmy. “O mê rabiosque!” “Ai!” disse o Robbie. “A nha cabeça!” A Billie Jean entrou na cozinha. Estava a usar botas grandes e óculos de neve. Tinha uma corda comprida amarrada à volta da cintura. Carregava a Kayla às costas e estava a transpirar. A Billie Jean era uma alpinista. Praticava escalada todos os dias subindo as escadas a correr com a Kayla às costas. Fazia-o durante três horas todas as manhãs e descansava, apenas uma vez, durante cinco minutos, numa tenda que tinha montado no corredor. A Billie Jean queria escalar a montanha mais alta de cada um dos países do mundo. Já tinha escalado muitas delas, na Argentina, Quénia, Austrália e muitos outros países. A primeira montanha que ela tinha escalado tinha sido na Holanda. A Holanda é um país muito plano e a sua montanha mais alta tem apenas três metros de altura. É tão pequena que nunca ninguém lhe tinha dado um nome. Mas quando a Billie Jean chegou ao topo, chamou-a de Montanha do Senhor Mack, em honra do seu marido favorito, de todos os tempos. (Billie Jean, já agora, era a bis, bis – continua a dizer “bis” por vinte minutos – neta do Élvis Óg O’Leary, o menino que tentou manter as serpentes na Irlanda.) A próxima montanha que a Billie Jean ia escalar era o Pico Blue Mountain na Jamaica. Ela estava a deixar a maior, o Monte Evereste, no Nepal, para último. Queria esperar que a Kayla fosse mais velha e poderiam escalá-la juntas. A Kayla mal podia esperar. Toda aquela correria pelas escadas acima às costas da mamã tinha-lhe despertado um gosto pelas alturas e pelas aventuras. “O que foi que se passou?” disse a Billie Jean quando viu o Jimmy no chão. “Eu parti mê rabo,” disse o Jimmy. 39 Ela riu-se. “Falta meia hora para a escola,” disse ela. “Porque é que não vais lá para fora brincar.” O Jimmy esqueceu-se do rabo dorido e correu pela porta de trás fora. “Leva a Kayla contigo,” disse a Billie Jean. “OK,” disse o Robbie enquanto tirava alguma papa de aveia do seu cabelo com um pano. “Vamos lá, Kayla.” Pôs a Kayla aos ombros. “Segura-te ao meu cabelo,” disse ele. “A-bá?” disse Kayla. “Não tem problema,” disse-lhe o Robbie. “É só papa de aveia.” Eles correram para a frente da casa e jogaram com a bola rota. A Kayla sentou-se em cima do muro e fingiu que estava no topo do Monte Evereste. Ela era uma equilibrista, mas pelo seguro, os rapazes colaram uma pastilha encharcada e mastigada no muro e meteram-na mesmo em cima. Ela estava muito feliz lá em cima, vendo as folhas fazerem cócegas umas às outras na árvore acima dela e os loucos dos seus irmãos a brincar lá em baixo. O Robbie era o guarda-redes e o Jimmy chutava-lhe a bola. As mãos do Robbie falharam a bola, mas ele apanhou-a com a cara. A bola saltou do nariz dele e bateu no cotovelo do Jimmy e saltou novamente, para baixo de um velho barril de óleo. “Ai!” disse o Jimmy. “O mê cotovelo!” “Ai!” disse o Robbie. “O mê dariz!” O barril estava virado ao contrário e era pesado, demasiado pesado para os rapazes o levantarem. Estava ali há anos, muito anos antes dos Macks viveram lá. O Senhor Mack dizia que tinha caído do céu e que a Bruxa Má do Este estava por baixo dele, mas os irmãos Mack não tinham a certeza disso. De qualquer maneira, a bola estava agora debaixo do barril. “E agora o que vamos nós fazer?” disse o Robbie. “A-bá”, disse a Kayla. “Boa ideia, Kayla” disse o Robbie. Os rapazes foram a correr e tiraram do barracão uma das cordas de escalada da Billie Jean. Voltaram e ataram uma ponta da corda à volta do barril de óleo. Depois atiraram a outra ponta para cima de um ramo da árvore. “E agora?”, disse o Jimmy. “A-bá.” 40 “Brilhante ideia.” Levantaram a Kayla até que ela segurasse a outra ponta da corda. Ela pendurou- se feliz, mas não era suficientemente pesada para mover a lata. “A-bá”, disse ela. “Ideia mega brilhante.” Os rapazes juntaram algumas pedras e meteram-nas na fralda da Kayla. Ela ficou cada vez mais pesada. À medida que ela descia, devagar devagarinho, para o chão, a pipa ficava devagar devagarinho, levantada. Haveria em breve espaço suficiente para o Jimmy e ele rastejou para debaixo do barril. “Consegues ver a bola?”, gritou o Robbie. “Não!”, gritou de volta o Jimmy. “Bem, o que é que consegues ver?” “Um monstro!” CAPÍTULO DOIS MILHÕES E SETE “Eu não sou um monstro”, disse o monstro ao Jimmy. “O que és tu, então?” disse o Jimmy. “Uma Risinho”, disse a Risinho ainda mais pequena do que a mais pequena. O Robbie agarrou as pernas do Jimmy e puxou-o para fora, de baixo do barril. E a Risinho seguiu o Jimmy. “Olá,” disse ela, e esfregou as mãos e deu uma risadinha. “A qualquer momento.” “A qualquer momento o quê?” disse o Robbie. “O sapato do teu pai vai acertar no cocó.” “A-bá?” disse a Kayla. “O do Rover,” disse a Risinho. E saiu debaixo do barril e levantou-se. Espera ai. Como é que eles conseguiam vê-la? Não é suposto as Risinhos serem como os camaleões? Capazes de mudar de cor? Boas perguntas. Sim, elas são capazes de mudar de cor, mas uns dias antes de eles conhecerem a Risinho ainda mais pequena do que a mais pequena, os rapazes tinham pintado de roxo o barril de óleo, e as Risinhos, lembras-te, não são muito boas a ficarem roxas. Por isso eles podiam vê-la nitidamente. Ela era azul brilhante contra o barril roxo. 41 “A-bá?” disse a Kayla. “Nós pusemo-lo lá” disse a Risinho, “para que o teu pai o pisasse.” “Porquê?” disse o Robbie. “Porque ele vos mandou para o vosso quarto na noite passada,” disse a Risinho. “Mas ele mandou-nos lá para cima apenas por um minuto,” disse o Robbie. “Oh oh,” disse a Risinho mais pequena do que a mais pequena. “A-bá”, disse Kayla. E a Risinho concordou com ela. “Sim,” disse ela. “É um enorme desperdício de cocó.” Na casa ao lado, o Rover estava a enterrar o osso no canteiro de flores. “Bem, não vais ter o teu dinheiro de volta,” pensou para consigo enquanto sacudia a terra para cima do osso. “E também não é justo”, disse o Jimmy. “Temos de avisá-lo.” “A-bá,” disse a Kayla. “Boa ideia,” disse o Jimmy, e correu para ir buscar a mãe, que era a corredora mais rápida da casa. “Eu tenho uma ideia,” disse a Risinho. “Rover!” “Oh oh”, disse o Rover, no jardim do lado. Tentou comportar-se mais como um cão. Perseguiu uma mosca, coçou-se, fez “ão- ão” e rosnou para o par de cuecas que estava pendurado no estendal. “Rover!” Ouviu a voz da Risinho. “Rover!” Era um chamamento especial, como um assobio de cão. Apenas os cães conseguiam ouvir os chamamentos das Risinhos. E todos os cães tinham de obedecer aos chamamentos das Risinhos, até os cães espertos e animados como o Rover. Mas o Rover não ia desistir. “Rover!” “Não te consigo ouvir!” gritou ele. “Tenho uma constipação.” “Rover!” disse a Risinho. “Salta o muro.” “Estou mal das costas.” “Pago-te cinquenta cêntimos,” disse a Risinho. E o Rover saltou o muro sem incómodo nenhum e aterrou mesmo em frente da Risinho. “Aceito todos os principais cartões de crédito,” disse ele. Depois viu a Kayla e o Robbie a olharem para ele. 42 “Então, consigo falar”, disse ele. “Têm alguma coisa a dizer sobre isso?” “Não,” disse o Robbie. “Não?” disse o Rover. “Não estão surpreendidos? Sou um cão e sei falar.” “Nós sabemos que sabes falar,” disse o Robbie. “Nós já te ouvimos. Estás sempre a resmungar e a rabujar quando estás a escavar no teu jardim. “Estou?” disse o Rover. “Sim,” disse o Robbie. “Há quanto tempo é que sabem?” disse o Rover. “A-bá,” disse a Kayla. “Esse tempo todo?” disse o Rover. “Tenho de ser mais cuidadoso. Os adultos podem ouvir-me.” “Não te preocupes,” disse o Robbie. “Os adultos não ouvem. Eles acham que estás apenas a ladrar.” Ele virou-se para a Risinho. “Então, qual é a história, Ris?” “O pé do Senhor Mack está a dirigir-se para o teu cocó. Temos de impedi-lo.” “O meu cocó!” disse o Rover. “Se ele aterra nele, nunca mais consegue escapar. É o melhor cocó do ramo. É um super cocó.” Correu para o muro. “Salta para aqui, miúda.” E a Kayla desceu, para as costas dele. “Segura-te às minhas orelhas,” disse o Rover, e correu portão fora e dirigiu-se para a estação de comboio. A Risinho saltou para as costas do Robbie. “Segue aquela bebé,” disse ela. E o Robbie correu. A Billie Jean correu para fora de casa, com o Jimmy às costas. “Segue aquela Risinho”, disse o Jimmy. E a Billie Jean continuou a correr. CAPÍTULO DEZASSEIS (ESTE CAPÍTULO, JÁ AGORA, É O BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS BIS NETO DO CAPÍTULO UM) 43 De volta à estação, o Senhor Mack afastou-se finalmente da gaivota. “Peixinho-dourado?” disse a Gaivota. “Bierk.” Mas o Senhor Mack não estava interessado. Virou a cabeça. A tempo de ver o cocó? Não. O pé dele estava agora mesmo por cima do cocó E o cocó estava moldado exatamente como um sapato. Para que o Senhor Mack não o conseguisse ver. Cocó moldado-em-forma-de-sapato. Parecia-se mesmo com a sombra do sapato. Era um truque que o Rover tinha praticado ao longo dos anos e foi necessária muita dedicação e comida de cão para o fazer bem feito. NÃO TENTEM FAZER ISTO EM CASA, MIÚDOS, A NÃO SER QUE ESTEJA UM ADULTO CONVOSCO. “Quanto tempo falta agora?” disse a Risinho de tamanho médio. “Sete centímetros.” “Minha nossa,” disse o Senhor Mack. “Estas são as calças mais duras que já usei, de todos os tempos.” E pareceu-lhe ouvir um cão ladrar. ESTE CAPÍTULO TEM O NOME DE ELVIS PRESLEY PORQUE ELE VIVE DEBAIXO DO BARRACÃO NO NOSSO JARDIM O Senhor Mack ouviu mesmo um cão. Mas não era o Rover. Era apenas um cão. O Rover não era propriamente o tipo de cão que ladra. As ações falam mais alto do que ãos, era o lema do Rover. E, agora, o Rover era provavelmente o cão mais ativo no mundo. Corria como o irmão mais velho do vento, com a Kayla, a sua cavaleira bebé, às costas. Galopou tão rápido que as suas patas mal tocavam no chão. “Isto é fixe,” disse a sua pata esquerda, a da frente. “O bom velho Rover,” disse a pata direita. “Ele é um voador.” “A-bá?” disse Kayla. “Yap,” disse o Rover. “Sou o único cão no mundo com patas falantes. Segura-te bem.” 44 E galopou pelas lojas – pela loja de pão, pela loja de doces, pela loja de massa- com-queijo-que-é-muito-boa de cor turva. O Rover era veloz. E o Robbie também. Mesmo com a Risinho às costas, era mais veloz que o Rover, estava a alcançá-lo. Passou pela loja de pão, pela loja de doces. E a Billie Jean era ainda mais veloz. Até mesmo com o Jimmy às costas e com pesadas botas de montanha nos pés, ela estava a aproximar-se da rua e a alcançar o Robbie. Passou pela loja da massa-com-queijo-que-é-muito-boa de cor turva. O Rover, o Robbie e a Billie Jean – eram as coisas mais rápidas nos dois metros e meio em redor. Mas seriam rápidos o suficiente? UM CAPÍTULO MUITO CURTO PARA DIZER-VOS A QUANTOS CENTÍMETROS O PÉ DO SENHOR MACK ESTAVA DO COCÓ Cinco. HÁ MAIS DO QUE UMA VERSÃO PARA CADA HISTÓRIA, E ESTA HISTÓRIA TEM MUITAS VERSÕES: AS CREAM CRACKERS CONTAM A SUA VERSÃO DA HISTÓRIA Nós não estávamos lá. Não vimos nada. Não é interessante? UM VERDADEIRO CAPÍTULO O Rover correu. A loja de roupas, a loja de brinquedos, a loja de lápis de cor. Enquanto passava a correr pela loja de animais, olhou para os cãezinhos na janela. “Adeusinho, otários!” gritou ele. 45 A loja de sapatos, a loja das peúgas, a loja de relógios de avôzinho. O Robbie e a Billie Jean alcançaram-no. “Conheces bons atalhos, Rover?” disse o Robbie. “Ão,” disse o Rover. Não ia falar à frente de um adulto, não queria saber quão simpática ela era. O ROVER CONTA A SUA VERSÃO DA HISTÓRIA Pchiuuu. Tenho de ser muito silencioso. Se o meu dono acorda e me apanha a escrever no computador dele, terei muito que explicar. Já estou mesmo a ouvi-lo: “Como é que o Rover o ligou?” “Mas o que é que estava o Rover a fazer aqui dentro?” “Como é que o Rover sabe escrever o seu nome?” Ele quase me apanhou na semana passada. Estava a mandar um e-mail para a minha namorada que vive em Galway. A família dela mudou-se para lá há alguns meses e tenho um pressentimento que sinto mais falta dela do que ela de mim. De qualquer maneira, ali estava eu, escrevendo-lhe um poema de amor, tentando encontrar uma boa palavra para rimar com “Lassie” - este é o nome dela, já agora – quando ouço o dono a ligar a luz da mesa-de-cabeceira. Bazei daqui e fui lá para baixo, para o meu tapete, antes que os seus pés pisassem o chão. Depois, ele deve ter notado que o computador estava ligado. E sabem o que ele disse? “Quem meteu marcas de patas no rato?” Acreditam nisto? Quem é que vive aqui, pelo amor de Cão? O dono, a sua mulher, quatro filhos grandes e um cão. O dono, a sua mulher e os quatro filhos grandes têm mãos e pés e o único cão tem patas. “Quem meteu marcas de patas no rato?” pergunta o homem. De qualquer maneira, ainda tenho de ser muito cuidadoso, mesmo que o meu dono não seja o melhor dos detetives. Há apenas uma coisa que quero dizer. Se soubesse que as Risinhos iam usar o meu cocó no sapato do tipo Mack nunca o teria vendido. Juro por Cão, nunca o teria feito. Tenho que ganhar a vida e gosto do que as Risinhos fazem – gosto do estilo delas. Mas já vi o tipo Mack a brincar com os miúdos. Ele é um bom pai, um marido dedicado e todas 46 essas coisas lamechas. Ele traz bolachas do trabalho para casa e costuma atirar alguns por cima do muro para o bom velho Rover. Tudo bem, eles não estão exatamente frescos, mas o que conta é a intenção. Gosto do tipo. E vou dizer isto: se o Rover gosta de um tipo, ele não anda por ai a fazer cocó no seu sapato. De qualquer maneira, é tudo o que queria dizer. É melhor sair daqui. O dono está a balbuciar durante o sono. Isso significa que se vai levantar para fazer chichi ou para ir buscar uma sanduíche. Vou bazar daqui. Duplo clique. E AGORA QUANTOS CENTÍMETROS? Dois. Só dois centímetros. A sola do sapato do Senhor Mack estava a dois centímetros – menos de dois centímetros da ponta do cocó. Onde estava o Rover e a Kayla? Onde estava o Robbie e a Risinho ainda mais pequena que a mais pequena? Onde estava a Billie Jean e o Jimmy? Dois terços de dois centímetros. Metade de dois centímetros. Menos de metade de dois centímetros. Onde estavam eles? BEM, ONDE ESTAVAM ELES? O Rover conhecia um atalho. O Rover conhecia todos os atalhos da cidade. O Rover conhecia todos os atalhos do mundo. O Rover correu e os outros seguiram-no. Correu pela ruela abaixo ao lado da loja de bolos. No final da ruela, um muro – o Rover saltou – e do outro lado, um pequeno rio - “Segura-te, miúda.” O Rover saltou. As suas patas traseiras tocaram na água, as suas unhas rasparam a margem do rio, lama e pedras caíram para dentro do rio. Mas o Rover conseguiu atravessá-lo. “A-bá,” disse Kayla. “Obrigado, dama,”, disse o Rover. Continuou a correr. 47 O Robbie saltou, mas ia cair dentro do rio – não saltou o suficiente. Tapou o nariz e preparou-se para o banho, quando a Billie Jean, a meio do ar, agarrou as costas da camisa do Robbie e continuou o seu salto sobre o rio. Todos eles aterraram numa grande pilha na outra margem. “Não é uma grande diversão?” disse a Billie Jean. “Não te esqueças do cocó, Mãe,” disse o Jimmy. “Oh, sim,” disse a Billie Jean. E partiram outra vez, atrás do Rover e da Kayla. QUANTO FALTA AGORA? Menos do que menos de um centímetro. As Risinhos atrás do muro tinham os ouvidos preparados. Oh, adoravam aquele doce som. Aquele glorioso som do pé de um adulto a afundar-se no melhor cocó que o dinheiro podia comprar. Era música para os seus ouvidos peludos. O Senhor Mack estava a ouvir o comboio a chegar. A KAYLA CONTA A SUA VERSÃO DA HISTÓRIA A-bá. A-bá, A-bá. A-bá, a-bá, a-bá. A-bá. A-bá, a-bá, a-bá, a-bá. A-bá. A-bá, a-bá, a-bá - A-bá. O JIMMY E O ROBBIE CONTAM A SUA VERSÃO DA HISTÓRIA JIMMY: Nós achamos que é uma brilhante ideia. ROBBIE: Sim, achamos. JIMMY: Dar aos adultos o Tratamento das Risinhos. 48 ROBBIE: Obrigá-los a pisar cocó. JIMMY: É justo e é divertido. ROBBIE: É muito divertido. JIMMY: Mas se nós soubéssemos que as Risinhos iam dar o Tratamento ao nosso papá - ROBBIE: Se nós soubéssemos - JIMMY: Acho que nós teríamos tentado impedi-las mais cedo. ROBBIE: Provavelmente teríamos. JIMMY: Apesar de ser engraçado. ROBBIE: Apesar de ser brilhante. JIMMY: É a coisa mais engraçada de sempre. ROBBIE: Mais engraçado do que fazer bolhas com puns no banho. ROBBIE: Nós provavelmente tê-lo-íamos avisado. JIMMY: Provavelmente. ROBBIE: Apesar de ter sido a bola a partir a janela, não nós. JIMMY: E apesar de ele não me ter deixado pôr uma das fraldas da Kayla na torradeira para ver o que acontecia. ROBBIE: E apesar de ele não me ter deixado fazer das cuecas da avó um papagaio e ela nem sequer estava a usá-las. JIMMY: E apesar de ele não me deixar mexer no nariz, e apesar de estar um lindo pedaço de ranho lá dentro e de eu querer atirá-lo ao avô, porque ele estava a dormir de boca aberta. ROBBIE: E apesar de ele não me deixar escorregar do telhado com a Kayla na cabeça. JIMMY: Nós provavelmente teríamos tentado impedir as Risinhos mais cedo. ROBBIE: Apesar de ser muito engraçado. JIMMY: Muito, muito engraçado. O QUE ESTÁ A ATRASAR O ROVER? O Rover correu pelo campo. Correu pela estrada. Correu pelo Deserto do Saara. “A-bá?” disse a Kayla. “Sim, miúda,” disse o Rover. “É o Saara. Confia em mim.” A Billie Jean apanhou o Rover. “Tens a certeza que é este o caminho?” “Ão,” disse o Rover. 49 O Robbie apanhou-os. “Nós nunca fomos por este caminho para a estação,” disse ele. “Ão,” disse o Rover. Treparam uma enorme duna de areia e, ali, à frente deles, estava um enorme rio. “Oh, minha nossa,” disse a Billie Jean. “É o rio Nilo.” “Fixe,” disse o Jimmy. “Levanta as pernas, miúda,” sussurrou o Rover para a Kayla. E correu para a água, e nadou quando ficou demasiado fundo para as suas pernas. O Robbie seguiu o Rover. Era um excelente nadador, mesmo com a Risinho às costas. E a Billie Jean seguiu o Robbie. Ela não sabia nadar mas o Jimmy sabia por isso ela segurou- se às calças dele. O Rover nadou pelo rio. “Vês aquele barrote, miúda? disse ele. “A-bá.” “Bem, é um crocodilo,” disse o Rover. Era um crocodilo. Era um crocodilo vegetariano, o único crocodilo vegetariano no rio, naquele dia. “Aposto que querias que eu fosse uma cenoura,” disse o Rover ao crocodilo enquanto passavam por ele a nadar. Nadaram para o lado mais afastado do rio e treparam o banco de areia. “Já não é muito longe, miúda,” disse o Rover. NÃO MUITO LONGE!! Mede a pestana de um rato. Não para baixo. De lado a lado. Era a essa a distância a que o sapato do Senhor Mack estava do cocó. E os seus salvadores estavam no Egito! No Norte de África! Nunca chegariam a tempo. EM QUE PARTE DO MUNDO ESTÁ O ROVER? O Rover trepou o íngreme banco de areia do rio Nilo – e viu, mesmo à frente dele, a Torre Eiffel. “Sim!” disse o Rover. “Ah, ah. Mesmo como eu esperava. Pôs-se a correr. 50 A GAIVOTA CONTA A SUA VERSÃO DA HISTÓRIA Peixe? Peixe? Nem me fales de peixe. Odeio peixe. Bacalhau? Bierk! Salmão? Bierk. Água viva? Bierk. Arenque, hadoque, halibute? Bierk, bierk, bierk. Douradinhos? Bierk. Pés de peixe? Pescoços de peixe, cotovelos, joelhos, olhos, dentes de peixe, cabelo de peixe, óculos de peixe? Bierk, bierk, bierk durante milhões de anos. Peixe? Se eu mandasse, juntava-os todos e atirava-os ao mar. EM QUE PARTE DO MUNDO ESTÁ O ROVER? (II) O Rover correu para a Torre Eiffel, por entre os turistas e vendedores de gelado. Um homem com uma camisa florida e uma câmara de filmar estava no seu caminho. “O que se passa, amiguinho?” disse o Rover à medida que corria por entre as pernas do homem. “Nunca viste um bebé às costas de um cão?” O homem ficou de boca 51 aberta. “Aquele cão acabou de falar?”, perguntou ele à mulher, cuja boca também estava aberta. “Eu … acho … que… sim?”, disse ela. “Porque é que não falou francês?”, disse o homem. “Talvez esteja de férias, também” disse a mulher. “Ah,” disse o homem. “Isso explica tudo.” Debaixo da Torre Eiffel, ao lado de uma das gigantescas pernas de metal que levantavam a torre para o céu, o Rover encontrou aquilo que estava à procura. Era uma toca de coelho, escondida debaixo de um arbusto e o Rover mergulhou lá para dentro. Correu pela escuridão do túnel. Conseguiam ouvir os outros atrás deles. Correram e correram. Depois, viram-no – um pequeno ponto de luz à frente deles. Correram e correram, e o ponto ficou maior e maior, mas ainda era muito pequeno, ainda estavam longe. Correram e correram e agora o ponto estava a ficar maior e muito mais brilhante. O Rover estava a ficar cansado. Estava ofegante e com sede. Inspirou uma última vez e correu – e saltou para a luz brilhante brilhante – e aterrou no jardim, mesmo atrás das Risinhos na bicicleta. “Cuidado com o cóco!” gritou ele. A Kayla voou para fora das costas do Rover, por cima da bicicleta e das cabeças das Risinhos, mesmo por cima do muro e aterrou nos braços do pai. “A-bá!” O Senhor Mack olhou para baixo- Demasiado tarde. O pé dele estava no cocó. A perna esquerda das suas calças novinhas em folha estavam até ao joelho no - “Pára imediatamente.” Sim, Rover? “Estás a dizer que cheguei demasiado tarde?! Sim, Rover. “Estás mesmo a dizer que cheguei demasiado tarde? Depois disto tudo? O pé do tipo Mack acaba por se afundar?” Sim, Rover. Repara, é mais divertido se o sapato do Senhor Mack - 52 “Esquece o mais divertido, amiguinho. E ouve. Vês estes dentes?” Sim, Rover. “Eles, sim, são divertidos. Vês o teu tornozelo?” Sim, Rover. “Os meus dentes conhecerem o teu tornozelo. A isto é que eu chamo divertido. Ah, ah, ah. Estás a perceber-me, amiguinho?” Sim, Rover. “Bem, então. O Rover chegou demasiado tarde?” Não, Rover. “Boa. Vamos começar de novo.” Sim, Rover. O ROVER SALVA O DIA O Rover estava a ficar cansado. Estava ofegante e com sede. Mas o corajoso Rover continuou a correr. Inspirou uma última vez – e o corajoso, e bonito Rover saltou para a luz brilhante brilhante – e aterrou no jardim, mesmo atrás das Risinhos na bicicleta. “Cuidado com o cocó!” gritou ele. A Kayla voou para fora das costas do Rover, por cima da bicicleta e das cabeças das Risinhos, mesmo por cima do muro e aterrou nos braços do pai. “A-bá!” O Senhor Mack olhou para baixo. Mesmo a tempo. O sapato dele estava ali, em golpe certeiro, mesmo por cima do cocó. Quão próximo? Quão perto? O sapato estava a beijar o cocó. O Senhor levantou o seu pé e passou mesmo por cima do cocó. E então, o Rover saltou por cima do muro. Seguido pelo Robbie e pela Risinho ainda mais pequena do que a mais pequena, Seguido pelo Jimmy e pela Billie Jean. Seguido pelas outras três Risinhos, a maior, a de tamanho médio e a mais pequena. Espera ai. Como é que eles podiam ver as Risinhos? Quando elas querem ser vistas, as Risinhos podem ser vistas. Elas deixaram de ser cinzentas, da cor do muro, e tornaram-se azul claro em três segundos, exatamente. 53 A Billie Jean olhou para o cocó e para o sapato do Senhor Mack. “Oh graças a Deus, estás a salvo,” disse ela. “Sim,” disse o Senhor Mack. “Mas se não fosse pelo… Espera ai,” disse o Senhor Mack. “Tu disseste mesmo, ‘Cuidado com o cocó.’” “A-bá”, disse a Kayla. “Tu, Kayla?” disse o Senhor Mack. “As tuas primeiras palavras! ‘Cuidado com o cocó!’ Este é o dia mais feliz da minha vida. Diz outra vez, Kayla. Diz, ‘Cuidado com o cocó.’ ” “A-bá,” disse a Kayla. “Ela disse outra vez!” disse o Senhor Mack. Beijou-lhe a testa. Segurou-a por cima da cabeça. Riu-se. “Por um minuto pensei que tivesse sido o cão que o tivesse dito.” “Ão,” disse o Rover. “Os cães não falam, pai,” disse o Jimmy. “Ão,” disse o Rover. “Quem é que já ouviu um cão falar?” disse o Robbie. “Vê se te acalmas, amiguinho,” sussurrou o Rover. “Estás a exagerar.” A Risinho maior veio ter com o Senhor Mack. “Desculpa lá o cocó,” disse ela. “O que tem o cocó?” disse o Senhor Mack. Ela explicou-lhe sobre os adultos que são maus para as crianças, e sobre o cocó de cão, e sobre o Rover, e sobre os sacos de plástico e os sapatos. “Mas nós cometemos um erro contigo,” disse ela. “Não tem problema,” disse o Senhor Mack. “Continuem com o bom trabalho. O abutre não trabalha para vocês, pois não?” “Não,” disse a Risinho mais pequena. “Mas nós conhecemo-lo. Ele na verdade não gosta de ser um abutre. Ele prefere muito mais sanduíches a cadáveres.” “Vou partilhar a minha com ele.” disse o Senhor Mack. “Mas hoje não.” O Senhor Mack tinha um truque na manga. Bem, na verdade, não era na sua manga. Era no seu cantil térmico. Tinha enchido o cantil térmico com sumo de laranja, com “pedaços”. E, como toda a gente sabe, os abutres não gostam de “pedaços”. Estava desejoso para que chegasse a hora de almoço, mas não disse nada às Risinhos. “Gostariam de vir connosco para casa para tomarem o pequeno-almoço?” disse a Billie Jean. 54 “Adoraríamos,” disse a Risinho maior. “Mas há uma mulher à espera do Tratamento das Risinhos. Ela não deixou que os filhos vissem TV porque não acabaram as pastinacas.” “Oh, que malvada.” disse a Billie Jean. “Ela vai para a estação de comboio a pé daqui a alguns minutos,” disse a Risinho maior. “Nós precisamos de produto fresco. Rover?” A Risinho de tamanho médio entregou uma moeda de vinte cêntimos ao Rover. “Põe o dinheiro de volta na tua bolsa, amiguinha,” disse o Rover, muito baixinho. “Esta é por minha conta.” Ele passou pela Kayla. “É uma vida de cão,” sussurrou ele. “Adeusinho, miúda.” E foi para trás de um arbusto, cantarolando uma canção chamada “Quanto custa aquele humano na Janela?” A Risinha de tamanho médio seguiu-o com um saco plástico. A Risinha mais pequena seguiu com a pinça do cocó. E a Risinha ainda mais pequena do que a mais pequena seguiu-as e, à medida que iam embora, tornaram-se verdes como o arbusto, e desapareceram. Depois, o Senhor Mack ouviu o comboio a sair da estação. “Oh não,” disse ele. “Vou chegar atrasado ao trabalho. Os rolos de figo vão-se todos embora. Vou ficar a provar cream crackers outra vez. O dia todo.” Ele já conseguia ouvi-las. “Quando a erva fica grande, corta-se com um corta-relva. Não é interessante?” “Se fechares os olhos, não podes ver. Não é interessante?” Mas a Kayla salvou o dia outra vez. “A-bá,” disse ela. “Cream crackers com cobertura de chocolate!” disse o Senhor Mack. “Mas que ideia brilhante! Obrigado, Kayla.” “Cream crackers com cobertura de peixe?” disse a gaivota. Voou ramo fora. “Vou voltar para o mar,” disse ela. “Bem para longe de peixe.” Mas o Senhor Mack não a ouviu. Estava a correr para a estação de comboio. Já conseguia saborear as novas, excitantes, cream crackers de chocolate. Já conseguia ouvi- las. “Em 1984, um homem comeu treze ovos crus num segundo. Não é interessante?” “Uma vez um homem puxou duas carruagens com os seus dentes. Não é 55 interessante?” O Senhor Mack era um homem feliz. UM CAPÍTULO QUE NÃO É BEM UM CAPÍTULO PORQUE A HISTÓRIA ACABOU NO FINAL DO ÚLTIMO CAPÍTULO Todas as boas histórias têm mensagens e esta história tem uma carrada delas. Aqui estão algumas delas: 1. Se um abutre rouba a tua sanduíche, lembra-te, ele só está a fazê-lo porque não te quer comer. (O abutre, já agora, era o bis, bis – continua a dizer bis durante duas horas e vinte e sete minutos – neto do pterodáctilo que fez cocó na cabeça do primeiro homem das cavernas no dia a seguir a ter pisado no primeiro cocó de cão pré-histórico.) 2. Mais uma coisa. 3. O teu cão pode não falar contigo, mas isso não quer dizer que ele ou ela não consiga falar. Além disso, nem todos os cães são milionários, só os que fazem muito cocó. 4. A gaivota – inventa tu uma. 5. Se tens um bebé como a Kayla Mack na tua casa, ouve sempre os conselhos dela, especialmente se tiver alguma coisa a ver com chocolate e cream crackers. 6. E, por último, se és um adulto e se alguma vez pisares cocó de cão, pergunta a ti próprio, “Porque é que as Risinhos me estão a dar o Tratamento das Risinhos?”. Mas lembra-te, pode não ser o Tratamento das Risinhos. Pode ser apenas cocó. O FIM “Eh, amiguinho.” Ah, sim. Desculpa, Rover. Quase que me esquecia. 7. Se te chamas Lassie e vives em Galway, o Rover diz olá. O FIM 56 3.Comentário à Proposta de Tradução Na análise de uma tradução é necessário proceder-se primeiro a um levantamento dos casos que mais merecem reflexão quer no texto de partida, quer no texto de chegada. Após esse levantamento podemos detetar em que medida o texto de chegada difere do de partida, algo que acontece sempre que se passa um texto de uma língua e de uma cultura para outras. Irei analisar diferentes casos recolhidos que foram agrupados e categorizados em dois grandes grupos: Grupo I – Recursos típicos da literatura infantil e Grupo II – Referências Culturais. No primeiro grupo, os casos foram organizados em várias subcategorias, por forma a tornar a análise mais consistente: criatividade linguística; repetições e paralelismos; onomatopeias/interjeições; humor por transformação de estruturas pré-existentes e, por último, grafismo. No segundo grupo, o das referências culturais, os casos foram organizados por referências culturais – onde se incluíram referências à gastronomia, literatura, cinema, música, tanto à cultura irlandesa como à cultura norte americana -, marcas da oralidade; expressões idiomáticas, unidades de medida/moeda e regiões geográficas e registos de língua. 3.1 GRUPO I – Recursos Típicos da Literatura Infantil 3.1.1 Criatividade Linguística A criatividade linguística é uma qualidade importante da literatura infantil e desta obra, como já referi. Ela é uma fonte importante de aprendizagem e de prazer para a criança, pelo que tive bastante cuidado ao traduzir os casos desta natureza. Para exemplificar, debruçar-me-ei sobre a tradução do título da obra. Com efeito, alguns dos problemas de tradução do texto de partida acima referidos começam a surgir logo no título, tratando-se de um título complicado de traduzir. No título The Giggler Treatment que traduzi por O Tratamento das Risinhos surge a palavra “giggler” que não encontramos nos dicionários de Inglês e que parece portanto não existir. Este novo termo é o resultado da criatividade do autor, que “brinca” com a língua e as suas estruturas para criar novas palavras. Este recurso é recorrente ao longo da obra e é uma característica importante da obra tratada e do estilo literário do autor em geral e da 57 literatura infantil, por isso considerou-se importante já no título reproduzir este mesmo efeito no texto de chegada. Os Professores da Universidade de Coimbra Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, no Dicionário de Narratologia, falam sobre os títulos e as suas características, comprovando que este é um elemento fundamental de identificação da narrativa. Segundo os autores, há entre o título e a narrativa uma relação que se estabelece “muitas vezes, em função da possibilidade que ele possui de realçar, pela dominação atribuída ao relato, uma certa categoria narrativa, assim colocada desde logo em destaque.” (M.Lopes e Reis, 1998:416). As personagens são uma dessas categorias que é convocada no título, podendo ainda este remeter para a ação, acrescentam os autores. Em The Giggler Treatment, verifica-se esta relação entre o título e a narrativa que remete para a personagem e a história. Assim sendo, houve um esforço para tentar manter na tradução do título do texto de chegada esta relação que encontramos no texto de partida, incluindo-se assim não só o nome das personagens – as Risinhos – como também aquilo que as caracteriza, a ação fundamental da narrativa – o “tratamento”. O autor cria o termo "giggler" para identificar uma nova criatura também criada por ele. As Gigglers são criaturas de tamanho de bebés que fazem partidas aos adultos. Embora o termo “Gigglers” não exista em inglês, existe “giggles”. A palavra “Giggles”, de acordo com o Dicionário de Oxford, significa “noun 3 [pl.] (informal) continuous giggling that you cannot control or stop.” e “giggle”, por sua vez, neste mesmo dicionário, é definida por “to laugh in a silly way because you are amused, embarrassed or nervous.”. A partir do termo giggle - que é também uma característica da personalidade dessas pequenas criaturas que estão sempre a dar “risadinhas” - o autor criou, portanto, o termo “Gigglers” Assim sendo, em português, decidi traduzir os termos por outros da língua de chegada suscetíveis de produzir o mesmo efeito nos leitores do texto de chegada e que, simultaneamente, reproduzissem a relação que existe em inglês entre “giggle” e “giggler”. O termo “Gigglers” traduzi por “Risinhos” e “giggles” por “risadinhas”. O primeiro - “Risinhos” - é o diminutivo de riso e permite manter uma relação com “risadinhas”, que também tem a mesma raiz etimológica e um sentido semelhante. Outro fator importante para a tradução deste termo foi o género das “Risinhos”. O autor usa o pronome “she” para se referir a estas criaturas, que apresenta como sendo do sexo feminino. As ilustrações da obra transmitem também esta informação, atribuindo- 58 lhes traços femininos, como olhos rasgados e cabelo comprido e, portanto, não podia deixar de dar importância a este facto. A palavra "risinho" em português é um nome masculino. Como as “Gigglers” são do sexo feminino faria mais sentido, em termos linguísticos, traduzir por "As Risadinhas", que dariam "risinhos" (giggles). Contudo, tendo em conta que o autor “brincou” com a língua e criou uma nova palavra, optou-se pela tradução "As Risinhos". Nesta tradução ao utilizar o artigo definido no feminino para um nome masculino, cria-se um efeito de estranheza, e de algum modo lúdico, na língua de chegada, o que permite reproduzir melhor o efeito de estranheza que o autor criou ao inventar uma nova palavra na língua de partida. Novamente, pretende-se recriar o mesmo efeito no leitor de chegada e transpor o estilo do autor do texto de partida para o texto de chegada. Devido ao público-alvo do texto de chegada, optei pela tradução do nome e não por manter a palavra em inglês, “Giggler”. As crianças a quem se destina a obra não estão provavelmente familiarizadas com o termo e a sua conotação, pelo que o efeito no público do texto de partida não seria o mesmo do público do texto de chegada. Quanto ao resto do título, optou-se por manter a mesma informação dada no texto de partida. O título The Giggler Treatment introduz o termo Giggler mas também adianta um pouco mais sobre estas criaturas e sobre a ação da história. Assim sendo, para manter a mesma informação adiantada pelo texto de partida, optou-se pela tradução “O Tratamento das Risinhos” e não apenas “As Risadinhas” ou Os Brincalhões (título dado à versão portuguesa publicada). Neste último título perde-se a ideia do riso, perde-se a criatividade linguística, a informação de que a temática do texto não são “os Brincalhões”, mas também o tratamento que estas criaturas dão (aos adultos), para além de se alterar o género destas personagens, algo que contradiz as indicações fornecidas pelas ilustrações. 3.1.2. Repetições e Paralelismos As repetições e paralelismos desempenham um papel essencial na literatura infantil e a obra aqui traduzida não é exceção. No quadro 1 reuniram-se exemplos de algumas repetições de estruturas sintáticas e palavras e paralelismos (quando houve repetição, mas com pequenas modificações feitas ao longo da obra), na versão de partida e de chegada. 59 Quadro 1-Repetições e Paralelismos Texto de Partida Texto de Chegada "...to make sure that they were exactly square, if they were supposed to be square, or exactly round, if they were supposed to be round." p.2 "…para se certificar de que elas eram exatamente quadradas, caso fossem quadradas, ou exatamente redondas, caso fossem redondas." p.25 “(Rover, by the way, was the great, great, great – keep on saying “great” for twenty minutes – grandson of Bran, the Irish wolfhound)” p.40 “O Rover, já agora, era o bis bis bis – continua a dizer “bis” durante vinte minutos – neto do Bran, o lébrel irlandês.)” p.36 "They waited for the wallop - Mr. Mack hitting the poo. They waited for the squelch - Mr. Mack stepping down on the poo. They waited for the gasp - Mr. Mack seeing the poo for the first time. They waited for the groan - Mister Mack seeing that most of the poo was now on his shoe."p.12 “Elas esperaram pelo esborrachar – o Senhor Mack a pisar o cocó. "Elas esperaram pela pancada – o Senhor Mack a acertar no cocó. Elas esperaram pelo suspiro – o Senhor Mack a ver o cocó pela primeira vez. Elas esperaram pelo lamento – o Senhor Mack a ver que grande parte do cocó estava agora no seu sapato." p.28 "Good question. The Gigglers look after children. And they do it very well. But they do it so quietly that hardly anybody has ever seen them. How do they look after the children? Good question. They follow them everywhere. To school, to the shops, to the park, and back home again, upstairs, into the toilet, all over the place. Everywhere the children go, the Gigglers are always near, looking after them. What do they look like? Good question.” p.14 “Boa pergunta. As Risinhos olham pelas crianças. E elas fazem-no muito bem. Mas elas fazem-no de uma forma tão discreta que quase nunca ninguém as viu.” Como é que elas olham pelas crianças? Boa pergunta. Elas seguem-nas para todo o lado. Para a escola, para as lojas, para o parque, para casa novamente, para o andar de cima, para a casa de banho, para todo o sítio. Para onde quer que as crianças vão, as Risinhos estão sempre por perto, sempre a olhar por elas. Com o que é que elas se parecem? Boa pergunta.” p.28 "exactly, exactly, exactly twelve inches" p.20 "exatamente, exatamente, exatamente a trinta centímetros" p.30 "Babies are smaller than adults. Isn't that interesting?" "Toilet paper is usually white but not always. Isn't that interesting?" "A car has four wheels but a bike has only two. Isn't that interesting?" p.26 "Some pajamas have stripes and some don't have any stripes at all. Isn't that interesting?" p.26 If you put your feet in water, they got wet. Isn't that interesting?" p.27 “Os bebés são mais pequenos que os adultos. Não é interessante?” “O papel higiénico é normalmente branco, mas nem sempre. Não é interessante?” “Um carro tem quatro rodas, mas uma bicicleta tem apenas duas. Não é interessante?” p. 32 “Alguns pijamas têm riscas e alguns não tem riscas de todo. Não é interessante?” p.32 Se tu meteres os teus pés na água, eles ficam molhados. Não é interessante?” p.32 60 “Let’s go for a walk. (… )Let’s go for a poo…” p.35 “Vamos dar um passeio (…) Vamos fazer cocó, é mais isso” p.35 "As she dropped slowly, slowly to the ground, the bin was slowly, slowly lifted.” p.49 "À medida que ela descia, devagar devagarinho, para o chão, a pipa ficava devagar devagarinho, levantada.” p.40 “And he galloped past the shops – the bread shop, the sweet shop, the twirly colored pasta-that's-very-nice-with- cheese-shop. (...) Past the bread shop, the sweetshop. (...) Past the twirly coloured pasta- that's-very- nice-with-cheese shop." p.61 "The clothes shop, the toy shop, the colouring pencil shop. (...) The shoe shop, the sock shop, the grandfather clock shop." p.66 "E galopou pelas lojas - pela loja de pão, pela loja de doces, pela loja de massa- com-queijo-que-é-muito-boa de cor turva. (...) Passou pela loja de pão, pela loja de doces. (...) Pela loja da massa-com- queijo-que-é- muito-boa de cor turva." p.44 "A loja de roupas, a loja de brinquedos, a loja de lápis de cor. (...) A loja de sapatos, a loja das peúgas, a loja de relógios de avôzinho" p.45 “If they are near a white wall they become white. If they are near a tree they become green and brown. If they are near a car…” p.15 “If they are mean to the children, they get The Giggler Treatment. If they send a child to bed without their supper, or if they frighten a child, they get The Giggler Treatment. If they are dishonest to a child, if, say, they give a child fish and say it’s chicken, or if they ever fart and then blame the child for it, they get The Giggler Treatment. If they are rude to a child or make them wear clothes that they hate, they get The Giggler Treatment.” p.16 “Se elas estão perto de uma parede branca, elas tornam-se brancas. Se elas estão perto de uma árvore, elas tornam-se verdes e castanhas. Se elas estão perto de um carro…” p.29 “Se eles são maus para as crianças, recebem o Tratamento das Risinhos. Se mandam uma criança para a cama sem o seu jantar ou se assustam uma criança, recebem o Tratamento das Risinhos. Se são desonestos com uma criança, se, digamos, dão peixe a uma criança e dizem que é galinha ou se dão um pum e depois culpam as crianças por isso, recebem o Tratamento das Risinhos. Se alguma vez eles forem brutos com uma criança ou as obrigarem a usar roupas que elas odeiam, recebem o Tratamento das Risinhos.” p.29 “Rover ran across a field. He ran across a road. He ran across the Sahara Desert.” p.80 “O Rover correu pelo campo. Correu pela estrada. Correu pelo Deserto do Saara.” p.48 De acordo com Maria Nikolajeva em Aesthetic Approaches to Children's Literature: An Introduction a repetição verbal na literatura infantil serve um propósito didático, ajudando não só a estruturar o texto em si como também a enriquecer e a treinar o vocabulário dos leitores (crianças) (Nikolajeva, 2005:197). A autora refere ainda que os escritores que estão cientes dos potenciais educacionais da linguagem através da literatura fazem questão de usar a repetição nos seus textos. 61 Noutra passagem do livro, Nikolajeva (2005:204) acrescenta ainda que a repetição, apesar de ser considerada muitas vezes como típica de um estilo pobre, pode ser um meio eficaz, espalhando pelo texto uma palavra-chave e dando-lhe um efeito de eco. Doyle pretende criar este efeito de eco várias vezes ao longo do seu texto. Um dos casos mais bem conseguidos é o da repetição de uma estrutura que surge regularmente e de que fornecemos aqui apenas 3 exemplos, retirados de partes diferentes do texto: 1) «(Rover, by the way, was the great, great, great – keep on saying “great” for twenty minutes – grandson of Bran, the Irish wolfhound)» (Doyle, 2000:40 / «O Rover, já agora, era o bis bis bis – continua a dizer “bis” durante vinte minutos – neto do Bran, o lébrel irlandês.)» p.36 2) «Rover’s owner, by the way, was the great great – keep on saying “great” for two hours and thirty-seven minutes – grandson of the first caveman. » (Doyle, 2000:41) / «O dono do Rover, já agora, era o bis bis – continua a dizer “bis” por duas horas e trinta e sete minutos – neto do primeiro homem das cavernas.)» p.37 3) «(Billie Jean, by the way, was the great, great – keep on saying “great” for twenty minutes – granddaughter of Elvis Óg O’Leary, the little boy who tried to keep the snakes in Ireland.)» (Doyle, 2000.46) / «(Billie Jean, já agora, era a bis, bis – continua a dizer “bis” por vinte minutos – neta do Élvis Óg O’Leary, o menino que tentou manter as serpentes na Irlanda.)» p.38 Este exemplo contribui para a coesão do texto e constitui um elemento lúdico do texto: o leitor, divertido, encontra a mesma estrutura que já viu antes. Para além disso, este exemplo aborda abertamente a questão da repetição: em vez de repetir, o autor fictício pede ao leitor para continuar a repetição oralmente. Na proposta de tradução aqui apresentada procurou-se fazer o mesmo, mantendo a repetição e pedindo ao leitor que a continuasse oralmente. Na versão já publicada, a tradutora também tentou manter a repetição como se pode verificar nos exemplos abaixo apresentados: 1) “ (A propósito, o Rover descendia em primeiro, segundo, terceiro… continuem a contar durante vinte minutos - …grau do Bran, o cão-lobo irlandês.)” (Doyle, 2001:42) 2) “ (A propósito, o dono do Rover descendia em primeiro, segundo… - continuem a contar durante duas horas e trinta e sete minutos - … grau do primeiro homem das cavernas.)” (Doyle, 2001:42) 3) “ (A propósito, a Billie Jean descendia em primeiro, segundo… - continuem a contar durante vinte minutos - … grau do Elvis O’Leary, o rapazinho que tentou evitar que todas as cobras saíssem da Irlanda.)” (Doyle, 2001:46) 62 Contudo, na tradução de 2001, apesar de a tradutora ter tido o cuidado de manter a mesma estrutura nos três exemplos apresentados houve algumas perdas. A primeira perda foi a repetição da mesma palavra “great, great” que traduzi por “bis, bis” e a tradutora por “em primeiro, segundo”. A segunda perda afetou o nome tipicamente irlandês Elvis Óg O’Leary, dado que Maria das Mercês Peixoto suprimiu o nome Óg da sua tradução. E, por último, e talvez de menor relevância foi a estrutura da frase. Na versão do texto de partida primeiro aparece o nome, depois “by the way” e, de seguida, a repetição “ (Rover, by the way, was the great, great, great…”. Na tradução aqui apresentada temos a mesma estrutura “O Rover, já agora, era o bis bis bis”, enquanto na versão de 2001 há uma troca na estrutura, onde o nome da personagem aparece em segundo lugar “ (A propósito, o Rover descendia em primeiro, segundo, terceiro…”) em vez de em primeiro. Esta alteração, que pode parecer de pormenor, tem a particularidade de trocar o tema da frase, sobre a qual a restante frase diz respeito, algo que, como mostra Mona Baker (1992), tem um efeito de alterar o sentido mais profundo da mensagem veiculada. Ainda no exemplo 1) a tradutora traduz o nome da raça do cão Irish Wolfhound por cão-lobo irlandês quando na verdade a tradução mais correta seria apenas lébrel irlandês. Segundo Nikolajeva (2005:204), as repetições têm também a função de enfatizar ações, assim como características das personagens. No exemplo seguinte, o texto reforça a indicação de que as cream crackers são “chatas” e “desinteressantes”, através do grande número de perguntas que colocam, sobre assuntos muito óbvios, e que terminam sempre da mesma forma. Também neste caso encontramos exemplos em locais diferentes do texto: «“Babies are smaller than adults. Isn’t that interesting?” “Toilet paper is usually white but not always. Isn’t that interesting?” “A car has four wheels but a bike has only two. Isn’t that interesting?”» (Doyle, 2000:26) Aparecendo novamente esta repetição ainda na página 26, 65 e 99 da edição britânica. Este primeiro excerto traduziu-se por «“Os bebés são mais pequenos que os adultos. Não é interessante?” “O papel higiénico é normalmente branco, mas nem sempre. Não é interessante?” “Um carro tem quatro rodas, mas uma bicicleta tem apenas duas. Não é interessante?”» p.32, aparecendo novamente mais exemplos desta mesma repetição ainda na página 33, 44 e 54. Na versão portuguesa já publicada a tradutora procurou também manter a mesma repetição «Os bebés são mais pequenos do que os adultos. Não é interessante? – 63 Geralmente o papel higiénico é branco, mas nem sempre. Não é interessante? – Os automóveis têm quatro rodas, mas as bicicletas só têm duas. Não é interessante?» (Doyle, 2001:30). Exemplos desta repetição voltam a aparecer novamente na obra de 2001 ainda na página 30, 64 e 53. Doyle também usa a repetição para enfatizar uma ação, tal como indica Nikolajeva: “Rover ran across a field. He ran across a road. He ran across the Sahara Desert.” (Doyle, 2000:80) que traduzi por “O Rover correu pelo campo. Correu pela estrada. Correu pelo Deserto do Saara.” p.48 Na versão portuguesa publicada em 2001 a tradutora traduziu por “O Rover atravessou um campo a correr. Atravessou a correr uma estrada. Atravessou a correr o Deserto do Sara.” (Doyle, 2001:77), não mantendo, portanto, sempre a mesma estrutura sintática. Neste exemplo, a repetição da estrutura sintática e das palavras “Rover/He ran across” reforça a ideia de movimento e de percorrer longas distâncias, uma ideia importante porque na verdade o Rover apenas está a percorrer uma distância curta. Há aqui neste exemplo também um efeito humorístico porque a personagem não tem de atravessar o deserto e ir aos vários cantos do mundo para chegar à estação de comboios, demorando mais tempo do que realmente deveria ter demorado na narrativa. A repetição é também utilizada para reforçar o trajeto e a longa distância que é percorrida por Rover por sítios que se encontram em diferentes lados do mundo, o que instiga um certo humor para quem está a ler. A musicalidade causada pela repetição de palavras, frases, estruturas e grafismo é um aspeto importante da literatura infantil a que se deu uma especial atenção, tentando- se reproduzir estas mesmas características no texto de chegada. Este atributo contribui para o entretenimento do jovem leitor ao ler a obra, fazendo com que não se distraia como também se mantenha interessado na narrativa. A reprodução desta característica faz também com que o texto de chegada se aproxime do texto de partida, contribuindo para uma lealdade do texto de chegada em relação ao texto de partida. 3.1.3 Onomatopeias/Interjeições As obras literárias escritas para crianças são, na sua maioria, lidas por um adulto para uma criança. Riitta Oittinen, em Translating for Children, afirma que a leitura em voz alta é “characteristic of children’s books and their translation. Listening to books being read aloud is the only way for an illiterate child to enter the world of literature.” 64 (Oittinen, 2002:32). Desta forma, a literatura infantil tem, muitas vezes, uma escrita que tem como finalidade uma leitura em voz alta e Maria Nikolajeva, em Aesthetic Approaches to Children's Literature: An Introduction, (2005:206) afirma que este facto explica o recurso frequente a onomatopeias. Nikolajeva refere que livros que tenham maior probabilidade de serem lidos em voz alta para crianças mais novas utilizam a imitação de som como forma de modular a voz, adicionando ritmo à leitura. A autora acrescenta ainda que mesmo os livros que não são para ser lidos em voz alta utilizam a onomatopeia, fazendo com que o leitor fique mais envolvido na história. O uso de onomatopeias/interjeições é bastante recorrente nesta obra. Não só onomatopeias e interjeições como também palavras que procuram imitar sons. De acordo com Nikolajeva (2005:205) as onomatopeias e imitações de sons são dos recursos estilísticos mais utilizados na literatura infantil, em especial nos livros para crianças mais novas, pois acredita-se que as crianças apreciam os sons que utilizam nas suas próprias brincadeiras. As onomatopeias/interjeições contribuem também, como já foi dito anteriormente, para a musicalidade do texto mantendo o leitor entretido e envolvido na história. Nos exemplos apresentados mais abaixo no quadro 2, apesar de não haver muita bibliografia sobre as onomatopeias ou imitação de sons, procurei sempre que possível fazer um esforço para traduzir a onomatopeia para uma que tivesse a mesma conotação no texto de chegada. Como foi o caso de “Ouch!” (“aí!”), “Bang bang ouch” (“pum pum ai”) e “Yuk” (bierk). Apesar de as onomatopeias imitarem o som e dos sons serem “universais”, o leitor ao ler as onomatopeias que estão presentes no texto de partida não iria conseguir extrair significado se as lesse, daí a sua tradução. Contudo, em alguns casos essa tradução não foi necessária como “Oh!” e “Oh- oh”. Quadro 2 - Onomatopeias/Interjeições Texto de Partida Texto de Chegada Tradução portuguesa de 2001 “Yum” p.1 “Nham” p.25 “Uhm” p.7 “Oh” p.19 “Ah”p.30 “Ah” p.24 “thop thop thop” p.20 “tóc tóc tóc” p.31 “póin! póin! póin!” p.25 “Yeuk” p.21 “Bierk” p.31 “Pff” p.26 “Ouch!” p.23 “Ai!” p.31 “Ai” p.28 “Wah!” p.23 “Ahhh!”p.31 “Ai” p.28 “A-bah” p.30 “A-bá” p.33 “A-ubá” p.34 “chuff chuff chuff” p.33 “tchu tchu tchu” p.34 “uuhú, uuhú, uuhú”p.36 65 “bang bang ouch” p.33 “pum pum ai” p.34 “pum, pum, ai” p.36 “Yuk” p.34 “Bierk” p.35 “Pff” p.37 “Wow!” p.37 “Uau!”p.35 “Uau!”p.39 “Oh” p.42 “Oh” p.37 “Olha só como o Rover…” p.43 “Oh-oh” p.53 “Oh oh” p.41 “Oh!” p.53 “Woof-woof” p.54 “Ão-ão” p.41 “latiu” p.53 “Shhhhh” p.68 “Pchiuuu” P.45 “Chiu” p.19 Verbos que funcionam quase como onomatopeias. Como estes: "Giggle, giggle, giggle" p.8 "Risadinha, risadinha, risadinha." p.27 “hihihi, hihihi” p.15 "They waited for the swipe swipe swipe - Mister Mack rubbing the shoe on some grass." p.33 "Esperaram pelo desliza desliza desliza - o Senhor Mack a esfregar o sapato em alguma relva." p.34 “Ficaram à espera de ouvir o rasp, rasp, rasp – o Senhor Mack a esfregar o sapato nas ervas.” p.36 Maria das Mercês Peixoto na sua tradução procurou traduzir as onomatopeias/interjeições por outros correspondestes na língua de chegada, optando, na maioria das vezes, por onomatopeias/interjeições diferentes das utilizadas na tradução apresentada neste trabalho. No entanto, ainda assim, houve alguns casos em que ambas as versões tiveram a mesma tradução. Em alguns casos, a tradutora optou por eliminar a referência a uma onomatopeia/interjeição, eliminando-a por completo, como em “Olha só como o Rover…” (Doyle, 2001:43) ou substituindo-a pelo seu significado como fez com “latiu” (Doyle, 2001:53). No caso de “Yeuk” e “Yuk”, interjeições que transmitem nojo, Maria das Mercês Peixoto traduziu ambas por “Pff”, uma interjeição que tem a conotação de um sentimento de desdém. Noutros dois, a tradutora traduz duas interjeições diferentes “Ouch” e “Wah” pela mesma interjeição “Ai” em português. Há neste caso, aquilo a que Berman chama de “empobrecimento quantitativo” (Berman, 2000:291) do texto. Dá-se com esse “empobrecimento quantitativo” uma perda lexical e o texto de chegada fica mais homogéneo do que o texto de partida. Palavras como “Giggle” e “Swipe” por terem uma sonoridade que parece imitar o som da ação, no texto de partida, funcionam como onomatopeias. No texto de chegada, as palavras “Risadinha” e “Desliza” não são tão curtas e não têm a mesma sonoridade. No entanto, procurou-se traduzir essas palavras de forma a identificar a ação e a manter uma palavra tal como aparece no texto de partida, em vez de a substituir por uma onomatopeia. Na versão de 2001, a tradutora optou por traduzir por “hihihi, hihihi.”, substituindo as palavras por onomatopeias. 66 3.1.4 Humor por transformação de estruturas pré-existentes Na literatura infantil, como já vimos, o humor é uma característica que se encontra muito presente e na obra de Doyle isso também acontece. Nesta categoria agrupou-se, no quadro 3, um número de casos que reportam ao humor através da transformação de estruturas já existentes na língua. O autor "apodera-se" de expressões utilizadas, na língua do texto de partida, e modifica-as dando-lhe um tom humorístico. Quadro 3-Humor por transformação de estruturas pré-existentes Texto de Partida Texto de Chegada «And he walked behind a bush, humming a song called "How Much Is That Human in the Window?"» p.97 «E foi para trás de um arbusto, cantarolando uma canção chamada “Quanto custa aquele humano na Janela?”» p.54 "It's a dog's life." p.97 "É uma vida de cão." p.54 "I swear to Dog" p.70 "Juro por Cão" p.45 "Who lives here, for Dog's sake" p.69 "Quem é que vive aqui, pelo amor de Cão?" p.45 “It was music to their furry ears” p.75 “Era música para os seus ouvidos peludos.” p.47 “Actions speak louder than woofs” p.60 “As ações falam mais alto do que ãos” p.43 “I’ll take all the major credit cards,” p.55 “Aceito todos os principais cartões de crédito,” p.41 "you-know-what" p.13 "tu-sabes-o-quê" p.28 "you-know-poo" p.20 "cocó-que-tu-sabes" p.30 "you-poo-what" p.34 "o-que-tu-cocó-sabes" p.35 "pasta-that's-very-nice-with-cheese" p.61 "massa-com-queijo-que-é-muito-boa" p.44 Nos casos "I swear to Dog" e "Who lives here, for Dog's sake" o autor utilizou expressões de origem religiosa da língua de partida - “I swear to God” e “For God’s sake”, respetivamente - e adaptou-as à personagem que as utiliza, Rover (um cão). O humor funciona aqui porque não só um cão não utiliza estas expressões como também faz referência a um cão como substituto de Deus. A tradução destas expressões por “Juro por Cão” e “Pelo amor de Cão” na cultura de chegada funcionam bem porque também são utilizadas as expressões religiosas “Juro por Deus” e “Pelo amor de Deus”, respetivamente, nesta mesma cultura. O jovem leitor encontra-se assim familiarizado com estas expressões, obtendo a tradução o mesmo efeito no público-alvo que teve no público do texto de partida. Na tradução intitulada Os Brincalhões, temos as expressões traduzidas por “Juro pelo Deus dos Cães” (Doyle, 2001:69) e “Afinal, quem é que mora aqui?” (Doyle, 2001:68). No primeiro caso, a tradutora opta por acrescentar mais 67 informação de forma a explicar ao público-leitor que é o Deus dos cães. Aumentar o texto, acrescentando informação de forma a explicar o que é apresentado é recorrente nas obras de literatura infantil, como já vimos anteriormente no capítulo sobre a Tradução Infantil. No segundo exemplo, a tradutora opta por eliminar qualquer referência religiosa na sua versão, deixando de haver o jogo de palavras existente no texto de partida. As decisões de tradução de Maria das Mercês Peixoto estão de acordo com o seu próprio conceito de “child image” e a imagem que tem do seu leitor. Ao contrário do autor e da proposta de tradução apresentada neste trabalho, a tradutora achou que o leitor a quem se dirigia não iria conseguir perceber se apenas traduzisse a expressão sem uma explicação. As decisões de tradução de Maria das Mercês Peixoto fizeram com que o humor e a criatividade linguística desaparecessem ao explicitar algo que o autor deixou implícito, de forma a dar um toque humorístico e criativo à narrativa. Nos exemplos “It was music to their furry ears” e “Actions speak louder than woofs”, Doyle faz um jogo de palavras com as expressões idiomáticas existentes na língua inglesa “It was music to my ears” e “Actions speak louder than words”, respetivamente. O autor transforma-as, dando-lhes um tom humorístico. Estas expressões idiomáticas também são utilizadas na língua portuguesa “Era música para os meus ouvidos” e “As ações falam mais alto do que as palavras” o que faz com que, através da sua tradução para “Era música para os seus ouvidos peludos” e “As ações falam mais alto do que ãos”, o público-leitor português tenha a mesma reação que o público-leitor inglês. Na versão de 2001, Maria das Mercês Peixoto traduz os exemplos apresentados por “Era como música para os seus ouvidos peludos.” (Doyle, 2001:73) e “As acções valem mais do que os latidos” (Doyle, 2001:59). No primeiro exemplo a tradutora mantém a expressão, no segundo ela modifica-a um pouco. Em vez de traduzir “woofs” que é o som que o cão faz, utilizou o nome do som que o cão faz. Na versão portuguesa aqui apresentada optou-se pela tradução “ão-ão” que corresponde na língua portuguesa ao som que o cão emite. Desta maneira, o texto de chegada mantém-se mais parecido e fiel ao texto de partida. No caso de “It's a dog's life.", o autor utiliza a expressão que também existe em português, “É uma vida de cão”, e usa-a no sentido literal em vez de no sentido metafórico com que é normalmente empregue entre os falantes da língua. Esta expressão também funciona bem na língua de chegada, pois como já existe em português, com a sua tradução obtém-se o mesmo efeito no público-leitor português que teve no público do texto de partida. Na versão portuguesa já publicada, a tradutora traduz por “É assim a vida de 68 cão!” (Doyle, 2001:92) o que acaba por ser um pouco diferente do original. Maria das Mercês Peixoto não utiliza no seu texto a expressão portuguesa fixa, explicitando-a e, perde-se, por isso, o seu aspeto lúdico. Em «And he walked behind a bush, humming a song called "How Much Is That Human in the Window?"», o autor pretende fazer uma alusão à música de 1952, da cantora Pattie Page “How Much Is That Doggie In The window?”. Aqui, Doyle faz novamente um jogo de palavras substituindo “Doggie” por “Human” o que produz uma vez mais um efeito humorístico, pois quem está a cantarolar a música é o Rover – o cão, e os humanos, ao contrário dos animais, não se encontram em exposição para serem vendidos. Este caso, como esta é uma referência cultural de 1952, mostra, uma vez mais, que a obra foi escrita para uma leitura acompanhada, pois uma criança muito provavelmente não conseguiria captar esta referência. Em português, optou-se pela tradução literal do caso. No entanto, é possível que até mesmo o adulto que acompanha a criança na sua leitura não seja capaz de captar que há aqui uma referência musical da cultura de partida. Na versão portuguesa já publicada em 2001, a tradutora não faz qualquer referência à música, optando por eliminá-la. Nesta versão apenas se lê “E desapareceu atrás de um arbusto, a cantarolar.” (Doyle, 2001:92). Com esta opção perde-se, uma vez mais, o jogo de palavras que o autor tentou fazer no texto de partida, empobrecendo de certa forma o texto de chegada. Parece- me que, comparativamente, a minha proposta de tradução consegue manter algum do humor do texto de partida. Nos casos "you-know-what", "you-know-poo", "you-poo-what" e "pasta-that's- very-nice-with-cheese", o autor irlandês utiliza os travessões como forma de juntar as palavras e formar uma nova palavra. Esta forma de formar novas palavras é mais recorrente no inglês e, por isso, mais familiar para os leitores da língua de partida. Contudo, também funciona na língua de chegada por isso optou-se por manter o uso dos travessões, traduzindo apenas os termos. Verifica-se também nos três primeiros casos, um jogo de palavras onde se utilizam praticamente as mesmas palavras, alterando a ordem em que estas surgem. Na versão portuguesa apresentada traduziu-se por “tu-sabes-o-quê”, “cocó-que-tu-sabes” e “o-que-tu-cocó-sabes”. Com esta tradução procurou-se fazer o mesmo jogo de palavras, alterando por vezes a sua ordem. Em Os Brincalhões, Maria das Mercês Peixoto traduz os primeiros três casos por “daquilo-que-vocês-sabem” (Doyle, 2001:19), “cocó-que-já-conhecemos” (Doyle, 2001:25) e “cocó-que-já-sabemos”(Doyle, 2001:37). Nos primeiros exemplos, procurou manter o mesmo jogo de palavras e utilizar diferentes palavras, já no quarto exemplo, que traduziu por “a loja que vendia massa 69 italiana muito apetitosa” (Doyle, 2001:62), a tradutora elimina uma vez mais o recurso estilístico e apenas mantêm o seu sentido. Maria Nikolajeva afirma que, de facto, os autores de literatura infantil são conhecidos pela utilização de trocadilhos e jogos de palavras mais do que os autores de outros tipos de literatura. A resposta que Nikolajeva apresenta para a grande utilização destes dois elementos é o seu carácter didático. Com a utilização de trocadilhos e de jogos de palavras ensinam-se as crianças a usar a linguagem. Através do jogo de palavras consegue acentuar-se o facto de as mesmas palavras terem diferentes significados, que a linguagem tem certas regras de gramática e sintaxe, entre outros. Como os jovens leitores ainda não são capazes de dominar bem a sua língua, ao acentuar os diferentes significados, os escritores estão, de certa forma, a educar os seus leitores. (Nikolajeva, 2005) Por outro lado, ainda de acordo com a autora, se forem compreendidos pelos jovens leitores, os jogos de palavras são geralmente engraçados. (Nikolajeva, 2005:208) Todas estas razões guiaram as nossas opções de tradução e o esforço que fizemos para criar jogos de palavras na versão traduzida. 3.1.5 Grafismo Como refere Riitta Oittinen (2002:34), a literatura infantil é, muitas vezes, uma leitura acompanhada em que o leitor deverá, em voz alta, ajudar a criança lendo eloquentemente, dramaticamente e de uma forma emocionante, conduzindo a sua leitura. Assim sendo, num livro de literatura infantil iremos ter várias marcas que contribuem para uma pronunciação e entoação enfática desta leitura. No quadro 4, foram categorizados alguns exemplos em que o autor no texto de partida procurou dar alguma acentuação para modular a leitura. Nos primeiros dois casos, a meio do texto, temos uma escrita em letras maiúsculas e, nos dois últimos, uma escrita com letras maiúsculas e a negrito. O autor procura aqui que o leitor durante a sua leitura dê entoação e pronuncie com outro ritmo as palavras destacadas. Quadro 4-Grafismo Texto de Partida Texto de Chegada “His foot was right over the poo now AND the poo was shaped exactly like a shoe.” p.59 “O pé dele estava agora mesmo por cima do cocó E o cocó estava moldado exatamente como um sapato. ” p. 43 "DON'T TRY IT AT HOME, KIDS, UNLESS THERE'S AN ADULT WITH YOU." p.59 "NÃO TENTEM FAZER ISTO EM CASA, MIÚDOS. A NÃO SER QUE 70 ESTEJA UM ADULTO CONVOSCO." p.43 “CHAPTER FIVE WHICH PROBABLY SHOULD BE CALLED CHAPTER FOUR BUT LET’S JUST CALL IT CHAPTER FIVE” p.12 “CAPÍTULO CINCO QUE PROVAVELMENTE DEVERIA CHAMAR-SE CAPÍTULO QUATRO MAS VAMOS CHAMÁ-LO CAPÍTULO CINCO” p.28 “THIS CHAPTER IS NAMED AFTER MY FRIDGE BECAUSE IT KEEPS ALL MY FOOD FRESH CHAPTER FRIDGE” p.44 “ESTE CAPÍTULO TEM O NOME DO MEU FRIGORÍFICO PORQUE ELE MANTÉM TODA A MINHA COMIDA FRESCA CAPÍTULO FRIGORÍFICO” p.38 Maria Nikolajeva, (2005:206) afirma que os “grafic stylistic devices”, como o itálico, o negrito ou letras maiúsculas, são utilizados para dar ênfase a algumas palavras. Roddy Doyle nos dois primeiros casos apresentados, ao escrever em maiúsculas, pretende destacar essas palavras, sendo que o leitor deverá dar a devida entoação a estas palavras. No exemplo: “DON'T TRY IT AT HOME, KIDS, UNLESS THERE'S AN ADULT WITH YOU." / “NÃO TENTEM FAZER ISTO EM CASA, MIÚDOS. A NÃO SER QUE ESTEJA UM ADULTO CONVOSCO.", o autor pretende que o leitor leia quase como se gritasse, funcionando as maiúsculas como chamada de atenção. No texto de chegada procurou-se manter essas características da literatura infantil, pois, novamente de acordo com Oittinen, a voz é uma ferramenta fundamental para a leitura em voz alta e, por isso, “the translator should contribute in every way possible to the aloud-reader’s enjoyment of the story. For instance, the translator should use punctuation to rhythmicize the text for the eye and for the ear.” (Oittinen, 2013:35). Deve- se, portanto, manter no texto de chegada o ritmo do original mantendo a entoação e o ritmo da história que nos é apresentado pelo autor no texto de partida. Na tradução de Maria das Mercês Peixoto, a tradutora tentou respeitar o grafismo do texto de chegada para o texto de partida, mas no caso “His foot was right over the poo now AND the poo was shaped exactly like a shoe.” (Doyle, 2000:59) esta traduziu por “O pé dele estava agora mesmo em cima do cocó. E o cocó tinha precisamente o feitio de um sapato” (Doyle, 2001:58). Aqui a tradutora optou por não manter a mesma estrutura da frase e fazer duas frases diferentes, não dando ênfase ao “e” através das maiúsculas como no texto de partida. 71 3.2. GRUPO II – Referências Culturais 3.2.1. Referências à Cultura Irlandesa e Norte-americana A obra de Doyle apresenta inúmeras referências culturais, elencadas no quadro 5. Muitas delas são referências à cultura norte-americana com as quais o leitor português já está familiarizado, havendo alguns hábitos que diferem da tradição portuguesa. No entanto, o seguinte exemplo refere-se ao pequeno-almoço da cultura irlandesa, de onde é originário o autor do texto: “breakfast smells - bacon, eggs, frog's legs and cabbage" (Doyle, 2000:1) / “cheiros de pequeno-almoço, bacon, ovos, pernas de rã e repolho” p.25 e “…as he leaned over to fill his mouth with porridge” (Doyle, 2000:44) / “…enquanto se inclinava para encher a sua boca de papa de aveia” p.38 Apesar de “bacon”, “ovos”, “repolho” e “pernas de rã”, assim como “papa de aveia” serem utilizados na língua de chegada, eles não são associados ao pequeno- almoço. Não se optou por substituir estes elementos por outros tradicionalmente portugueses, pois a sua presença permite ao leitor ficar a conhecer esse traço da cultura estrangeira. Por outro lado, parece-nos que, ao ter acrescentado as pernas de rã ao pequeno-almoço tipicamente irlandês, o autor criou um efeito humorístico que a tradução mantém. Na versão portuguesa de Maria das Mercês Peixoto, a tradutora manteve também a mesma “estranheza” e humor, traduzindo por “bacon, ovos, coxas de rã e couves” (Doyle, 2001:7). Quadro 5 1-Referências culturais Texto de Partida Texto de Chegada Gastronomia “breakfast smells - bacon, eggs, frog's legs and cabbage" p.1 “cheiros de pequeno-almoço, bacon, ovos, pernas de rã e repolho” p.25 “fig-rolls” p.2 * “rolos de figo” p.25 “cream crackers” p.24 * “cream crackers” p.32 “chicken soup” p.27 “caldo de galinha” p.33 “fish fingers” p.34 * “douradinhos de bacalhau” p.35 “…as he leaned over to fill his mouth with porridge” P.44 “…enquanto se inclinava para encher a sua boca de papa de aveia papa de aveia” p.38 1 Todos os termos assinalados com um * nos quadro 5 e 6 são termos retirados do glossário da versão norte-americana de The Giggler Treatment. 72 “parsnip” p.96 “pastinacas” p.54 Literatura, cinema e música – norte-americano “Two minutes after the Titanic” p.18 “Dois minutos após o Titanic …” p.30 Billie Jean Fleetwood-Mack p.30 Billie Jean Fleetwood-Mack p.33 Wicked Witch of the East p.48 Bruxa Má do Este p.39 Elvis Presley p.60 Elvis Presley p..43 Cultura Irlandesa “an Irish wolfhound” p.18 “um lébrel irlandês, chamado Bran” p.30 Elvis Óg O'Leary p.18 Elvis Óg O'Leary p.30 Saint Patrick p.18 São Patricio p.30 “football” p.23 * “futebol”p.31 Quanto ao termo “parsnip”, este refere-se a um legume que também não é muito conhecido entre os leitores portugueses: “She wouldn’t let her kids watch telly because they didn’t finish their parsnips” (Doyle, 2000:96) / “Ela não deixou que os filhos vissem TV porque não acabaram as pastinacas.” P.54 Optou-se por manter o nome do legume traduzido para português, porque assim não se perde a informação de que é uma comida de que as crianças não gostam e ganha- se um conhecimento sobre a cultura do texto de partida, cumprindo assim a recomendação de Oittinen: "The translator emphasizes the fact that the story is really situated in a foreign country, in a foreign culture, letting the child readers learn new things about new cultures, educating the children about international themes.” (Oittinen, 2000:90) Na versão portuguesa Os Brincalhões, a tradutora opta pela seguinte tradução “Ela não deixa os filhos ver televisão, porque eles não acabaram de comer os legumes.” (Doyle, 2001:92). Nesta tradução, não se especifica o legume em questão, eliminando a referência cultural, não a dando a conhecer ao público-alvo. “Chicken soup”, um termo que traduzi por “caldo de galinha” foi numa primeira fase traduzido por “canja de galinha”, algo tipicamente português. No entanto, devido à ilustração, a tradução teve de ser alterada. No texto é-nos indicado que a “chicken soup” está dentro de um “flask” (que pode ser traduzido por frasco térmico ou cantil). Contudo, ao vermos a ilustração que acompanha o texto na obra, esta mostra um cantil com uma abertura muito fina, pelo que só poderá conter algo líquido. Assim sendo, para que a ilustração estivesse em concordância com o texto de chegada, optei pela tradução “caldo 73 de galinha”, pois, de acordo com Oittinen, “The translation needs to function alongside the illustrations and on the aloud reader’s tongue.” (Oittinen, 2000:5) Na tradução da versão da Editorial Presença, a tradutora optou pela seguinte tradução “O termo estava cheio de canja de galinha, a sopa que o Senhor Mack mais gostava” (Doyle, 2001:31). Nesta versão a autora não relacionou o texto escrito com a ilustração, optando por um termo tipicamente português. No exemplo das bolachas cream crackers manteve-se o mesmo termo no texto de chegada, apresentando-o no texto em itálico. Optou-se por manter o termo em inglês porque na cultura de chegada estas bolachas existem e designam-se por “cream crackers”. Como o leitor do texto de chegada se encontra familiarizado com o termo em inglês e é capaz de reconhecê-lo, ao manter-se o mesmo termo, obtém-se também a mesma reação no público do texto de chegada que se teve no público do texto de partida. As referências à gastronomia são muito recorrentes nas obras de literatura infantil. Alguns teóricos afirmam que durante os seus primeiros dez anos de vida, as crianças têm mais recetores de gosto do que os adulto e sua habilidade para saborear doces depende maioritariamente da quantidade e da função dos seus recetores. Esta particularidade contribui, provavelmente, para que as comidas e bebidas sejam um dos temas mais populares na literatura infantil. “Tastes are part of children’s world of experiences, part of their emotional life.” (Oittinen, 2000:55) Há aqui, uma vez mais, uma relação emocional associada às crianças, como já foi mencionado anteriormente e razão pela qual se prestou uma maior atenção a este aspeto. Na subcategoria “Literatura, cinema e música – norte-americano” reunimos referências intertextuais, uma característica típica, segundo Margaret Meek, da literatura infantil em Inglês: “Intertextuality, the reading of one text in terms of another, is very common in English books for children.” (Meek, 2004: 4). Esta característica também se reflete na tradução portuguesa da obra aqui apresentada. Na lista que preparámos, encontramos referências com as quais nos parece que o leitor português poderá estar familiarizado. Aqui, dada a proximidade entre as duas culturas essas referências são mantidas no texto de chegada. Os termos apresentados já estão de tal maneira enraizados na cultura de chegada que o leitor consegue perceber as referências da cultura de partida, conseguindo-se um mesmo efeito em ambos os públicos. É o caso da referência a Elvis Presley e ao Titanic e até à Bruxa Má do Este, uma referência ao Feiticeiro de Oz. 74 Contudo, o nome da mãe das crianças desta história – “Billie Jean Fleetwood Mack”, tanto para o público-alvo da cultura de partida como para o público-alvo da cultura de chegada – as crianças – coloca alguns entraves à compreensão. Estes termos reportam para referências culturais da música pop/rock. “Billie Jean” é uma música lançada em 1983 pelo cantor norte-americano Michael Jackson, e “Feetwood Mack” remete para Fleetwood Mac, um grupo musical anglo-americano formado em 1967. Apesar de haver referências "estranhas" para as crianças, estes dois nomes da música norte-americana são reconhecidos pelas gerações mais velhas em ambas as culturas. A escolha destes dois termos, reporta-nos, uma vez mais para o fenómeno da leitura em voz alta, próprio da literatura infantil. Assim, o surgimento das referências desta categoria poderão ser explicados ao público mais jovem através de uma leitura acompanhada, dando sentido ao texto e oferecendo novos conhecimentos ao público jovem: «an adult reading aloud may explain, fill in “the missing gaps”» (Oittinen, 2002:36). Na subcategoria “Cultura Irlandesa”, três casos fornecem informação sobre a cultura do texto de partida. A raça de cão escolhida, lébrel irlandês, o nome Elvis Óg O’Leary, tipicamente irlandês, e o São Patrício são elementos que nos revelam a cultura do texto de partida - a cultura irlandesa. São elementos que se consegue manter sem dificuldade no texto de chegada, pois não perturbam a compreensão do texto, o primeiro porque o contexto permite perceber que se trata de um cão, o segundo porque se compreende que é um nome próprio e o terceiro por ser uma celebração já muito conhecida em Portugal. As referências culturais são muito importantes na obra em questão, tão importantes que levou a que Doyle – como já vimos anteriormente - publicasse duas versões em inglês e numa delas inserisse um glossário. Quer a edição norte-americana, quer a edição irlandesa têm a mesma história e os mesmos termos. No entanto, na versão norte-americana é inserido um glossário com termos irlandeses no final – estes termos são apresentados neste trabalho nos quadros 5 e 6 - e um quadro com uma chamada de atenção no primeiro capítulo. Neste primeiro capítulo da versão norte-americana a história é interrompida pelo autor de forma a lembrar ao leitor de que esta é uma história que tem como pano de fundo a Irlanda e, por isso, termos típicos desta cultura. Neste capítulo, o autor apresenta um quadro sombreado com um aviso que, com um tom humorístico, explica alguns termos irlandeses que irão aparecer na história e o que significam em inglês norte-americano. Doyle explica ainda neste quadro de chamada de atenção que no final da obra existe um 75 glossário a que o leitor pode recorrer caso encontre algum termo que não lhe seja familiar. De seguida, o autor entra novamente num tom humorístico e fala ao leitor sobre o que não é o assunto da história e de seguida volta-se novamente à história, retomando-se o primeiro capítulo. Ora no texto de partida utilizado para a tradução apresentada neste trabalho este aviso não se verifica, pois esta é uma versão irlandesa da obra e o seu público-leitor é também ele irlandês, pelo que não me deparei com este problema na minha tradução. Na tradução de Maria Mercês Peixoto, o primeiro capítulo também é interrompido com um aviso apresentado da mesma maneira que é exposto o aviso da versão norte- americana. O texto de partida utilizado para a tradução de Maria das Mercês Peixoto possivelmente foi a versão norte-americana e ao aparecer este quadro a tradutora teve um novo desafio em mãos, pois o aviso faz referência que existem termos diferentes consoante a região em que se encontra na língua de partida o que na língua de chegada não acontece. A tradutora, nesta situação, optou por manter o quadro com um aviso mas de menor dimensão onde fez apenas referência ao apontamento humorístico de Doyle sobre do que não se tratava a história, eliminando qualquer indicação de que na língua de partida houve não só diferenças culturais como também duas versões diferentes do texto de partida. 3.2.2. Marcas da Oralidade A presença de expressões, vocabulário e marcas da oralidade do irlandês são bastante recorrentes ao longo da obra, como podemos verificar nos quadros 6 e 7. Quadro 6 2– Marcas da Oralidade/Regionalismos Texto de Partida Texto de Chegada “I forgot me water wings” p.18 “Esqueci-me das nhas braçadeiras” p.30 "Me window" p.23 “A nha janela!” p.31 “Me toe” p.23 “O mê dedo!” p.31 “Me head” p.23 * “A nha cabeça” p.31 “Me doze!” p.48 “O mê dariz!” p.39 2 Todos os termos assinalados com um * nos quadro 5 e 6, são termos retirados do glossário da versão norte-americana de The Giggler Treatment. 76 «“Ouch! said Jimmy. “Me bum!” “Ouch!” said Robbie. “Me head!”» p.44 “Ai!” disse o Jimmy. “O mê rabiosque!” “Ai!” disse o Robbie. “A nha cabeça!” p.38 «“I broke me bum,” said Jimmy.» p.46 «“Eu parti mê rabo,” disse o Jimmy.» p.38 «“Ouch!” said Jimmy. “Me elbow!” “Ouch!” said Robbie. “Me doze!”» p.48 “Ai!” disse o Jimmy. “O mê cotovelo!” “Ai!” disse o Robbie. “O mê dariz!” p.39 “Ure relcon” p.41 “D’nada,” p.37 “biscuit” p.2 * “bolachas” p.25 “flask” p.2 * “cantil térmico” p.25 “burst ball” (punctured ball) p.23 * “bola rota” p.31 “plaster” p.23 * “penso rápido?” P.31 “cheeky” p.24 * “Malcriado” p.32 “more like” p.35 * “É mais” p.35 “letter box” p.40 * “caixa do correio” p.37 “mad” p.47 * “loucos” p.39 “tea towel” p.47 * “pano” p.39 “sparky” P.54 * “animado” p.41 “giving out (complaining)” p.55 * “rabujar” p.42 “knickers (underwear)” p.54 * “cuecas” p.41 “sweetshop” p.61* “loja de doces” p.44 “Mum” p.74 * “Mãe” p.47 “doing rudies in bath” p.78 * “fazer bolhas com puns no banho” p.48 “Mind the poo” p.94 * “Cuidado com o cocó!” p.52 “telly” p.96 * “TV” p.54 «“bits”» p.96 * «“pedaços”» p.53 “bum” p.36 * “rabo” p.35 “nappies” p.78 * “fraldas”p.48 No primeiro conjunto de exemplos, o caso da utilização de “me” em vez de “my” é recorrentemente utilizado pelas crianças, sobretudo em situações como a do texto, em que se magoam (e portanto são surpreendidas e não controlam tão bem o modo como se exprimem). Para esses casos procurou-se na língua de chegada formas menos corretas e típicas da oralidade para reproduzir os possessivos em questão. Assim, optou-se por “mê” para “meu”; “nha(s)” para “minha(s)”, como se pode ver nos seguintes exemplos: 77 “I forgot me water wings” / “Esqueci-me das nhas braçadeiras” e «“Ouch!” said Jimmy. “Me elbow!” Ouch!” said Robbie. “Me doze!”» / «“Ai!” disse o Jimmy. “O mê cotovelo!” “Ai!” disse o Robbie. “O mê dariz!”» Na versão de Maria das Mercês Peixoto a tradução é a seguinte “Esqueci-me das braçadeiras!” (Doyle, 2001:24) e “-Ai! – queixou-se o Jimmy. – O meu cotovelo! – Ai! - queixou-se o Robbie. O meu nariz!” (Doyle, 2000:48). Neste exemplo, a tradutora não faz qualquer referência a marcas da oralidade, como também não reproduz o efeito criado por Doyle ao colocar “doze” em vez de “nose”, limitando-se a recorrer ao Português- padrão. Quadro 7 – Marcas da Oralidade Texto de Partida Texto de Chegada Tradução Portuguesa de 2001 “I forgot me water wings” p.18 “Esqueci-me das nhas braçadeiras” p.30 Esqueci-me das braçadeiras!” p.24 “Ouch!” said Robbie. “Me toe!” “Ouch!” said Jimmy. “Me head!” “Wah!” said Mister Mack. “Me window” p.23 “Ai!” disse o Robbie. “O mê dedo!” “Ai!” disse o Jimmy. “A nha cabeça!” “Ahhh!” disse o Senhor Mack. “A nha janela!” p.31 “Ai! – exclamou o Robbie. – O meu rico dedo! –Ai! – exclamou o Jimmy. – A minha rica cabeça! – Ai! -Exclamou o Senhor Mack. – A minha rica janela!” p.28 “Ure relcon” p.41 “D’nada,” p.37 “-Ão ães e-êh!” p.42 «“Ouch! said Jimmy. “Me bum!” “Ouch!” said Robbie. “Me head!”» p.44 “Ai!” disse o Jimmy. “O mê rabiosque!” “Ai!” disse o Robbie. “A nha cabeça!” p.38 “-Ai! – queixou-se o Jimmy. O meu rabo! – Ai! – queixou-se o Robbie. – A minha cabeça!” p.45 «“I broke me bum,” said Jimmy.» p.46 «“Eu parti mê rabo,” disse o Jimmy.» p.38 “Parti o rabo, mamã – respondeu o Jimmy.” p.47 «“Ouch!” said Jimmy. “Me elbow!” Ouch!” said Robbie. “Me doze!”» p.48 «“Ai!” disse o Jimmy. “O mê cotovelo!” “Ai!” disse o Robbie. “O mê dariz!”» p.39 “-Ai! – queixou-se o Jimmy. – O meu cotovelo! –Ai! – queixou- se o Robbie. – O meu nariz!” p.48 Como já referido, os termos referentes à cultura irlandesa são tão abundantes que fazem com que na versão norte-americana de The Giggler Treatment, Doyle tenha o cuidado de inserir no final do livro um glossário. Nesse glossário, o autor explica o significado dos termos, apresentando sinónimos e/ou definições para a cultura norte- americana. No quadro 5 e 6 faz-se um levantamento desse vocabulário que foram 78 traduzidos tendo em conta, na sua maioria, uma tradução apenas do significado e o leitor não tem conhecimento, ao ler o texto de chegada, de que existe, no texto de partida, vocabulário irlandês que contrasta com o inglês britânico e norte-americano. Este uso de regionalismos e marcas da oralidade referentes à Irlanda é, como já vimos, uma característica da escrita do autor e, como tal, irá influenciar as decisões que o tradutor irá tomar quando estiver a traduzir. Para além destas ocorrências, encontramos igualmente casos em que se reproduz formas alternativas de pronunciar as palavras. Assim, a expressão “Ure relcon”, que reproduz uma forma incorreta de pronunciar “You’re welcome”, transpôs-se para “D’nada”, num esforço para manter a forma e o sentido do texto. Também no caso de “doze”, a palavra “nose” pronunciada com o nariz tapado (pois a personagem magoou-se no nariz), tentou-se reproduzir esse efeito por “dariz”. Aqui, apesar de haver um esforço de tentar manter a informação relativamente para estes casos e se reproduzir algumas dessas marcas da oralidade na língua do texto de chegada, as marcas da oralidade são difíceis de se manter numa tradução e houve perdas do texto de partida para o alvo, como por exemplo, o leitor do texto de chegada não fica a conhecer as marcas da oralidade da língua de partida. Nos primeiros oito casos, do quadro 6, onde se registam marcas da oralidade, tentei através do processo de adaptação utilizar algumas marcas da oralidade existentes na língua de chegada. Assim, o leitor do texto de chegada pode compreender a sonoridade e o ritmo que o autor tenta dar às palavras e recebe a informação de que as personagens estão a utilizar uma linguagem pouco cuidada. Revela-se importante transpor estas características do texto de partida para o texto de chegada para que o leitor possa usufruir do mesmo efeito de leitura que os leitores do texto de partida e perceba que haviam marcas da oralidade. Berman analisa algumas tendências que os tradutores têm nas suas traduções. Uma delas é a destruição linguística de padrões que torna o texto mais homogéneo. (Berman, 2000:293) Nas marcas da oralidade, por exemplo, torna-se relevante tentar reproduzir essas marcas, ainda que esta transposição não seja feita de forma perfeita no texto de chegada. Desta forma, o texto de chegada fica mais parecido com o texto de partida e, por isso, menos homogéneo e mais “rico”. Quando se opta pela omissão de algumas características do texto de partida no texto de chegada estas podem torná-lo num texto mais “pobre”. A tradutora não reproduziu no seu texto as marcas da oralidade, eliminando por completo qualquer referência às marcas da oralidade que derivam da sonoridade própria 79 de uma determinada região como erros próprios da oralidade ou os sons relacionados com o sotaque nasalado irlandês. No caso de “Ure relcom” onde existe uma marca da oralidade, mas que não deriva de uma referência cultural de uma região, sendo apenas um erro de oralidade, a tradutora também não o reproduziu, substituindo-a por uma onomatopeia/interjeição. Com este método de tradução, o leitor de Os Brincalhões fica a desconhecer que no texto de partida existem marcas da oralidade e que as personagens têm um sotaque associado a uma região. Assim, o efeito provocado no público de chegada não é o mesmo que o efeito provocado no público de partida. Além disso, ao retirarem essas referências culturais/marcas da oralidade dá-se um empobrecimento do texto de chegada, fazendo com que se perca uma das características principais da obra de partida – as referências culturais, neste caso os regionalismos. 3.2.3-Expressões Idiomáticas As expressões idiomáticas existem em todas as línguas e variam não só de país para país, como também de região para região e de cultura para cultura. Aqui, como mostram os casos apresentados no quadro 8, algumas das expressões idiomáticas da língua de partida também são utilizadas na língua de chegada, o que permitiu substituir a expressão idiomática por outra existente na língua de chegada, mantendo assim a presença de uma expressão idiomática no texto (mantendo o aspeto formal do texto) e o sentido da mesma (o seu conteúdo). Quadro 8 – Expressões Idiomáticas Texto de Partida Texto de Chegada Tradução portuguesa 2001 “He was stuffed to the tonsils” p.24 “Estava cheio até às pontas dos cabelos” p.32 “Estava cheio até ao pescoço”p.30 “it’s the thought that counts” p.70 “o que conta é a intenção” p.46 “o que conta é a intenção” p.69 “Mister Mack had a trick up his sleeve.” p.96 “O Senhor Mack tinha um truque na manga.” p.53 “O Senhor Mack tinha um truque na manga.” p.91 Contudo, no primeiro exemplo “He was stuffed to the tonsils” registam-se diferenças entre as expressões idiomáticas usadas nas duas línguas. Ainda assim, a expressão mantém o mesmo sentido da mensagem pretendida pelo autor, mostrando ainda que o texto de partida tem expressões idiomáticas. Com a utilização de um equivalente 80 em português mantem-se o sentido e não há um obstáculo à compreensão para o público- alvo, o que acontecia com a tradução literal da expressão. Antoine Berman, em Translation and the trials of the foreign, afirma que (Berman, 2000:295) “brincar com a equivalência é atacar o discurso do estrangeiro”, referindo ainda que “um provérbio pode ter os seus equivalentes noutras línguas mas esses equivalentes não os traduzem”. No entanto, optei pela utilização de um equivalente da língua de chegada, pois assim permite ao leitor perceber que no texto de chegada havia uma expressão idiomática. Na versão portuguesa de 2001, a tradutora procurou também encontrar expressões idiomáticas portuguesas que tivessem a mesma conotação das expressões idiomáticas do texto de partida. 3.2.4-Unidades de Medida/Moeda Nesta categoria recorre-se, como se pode verificar no quadro 9, à adaptação com a conversão das medidas e da moeda para as utilizadas na cultura do texto de chegada. Esta decisão advém do facto de esta tradução se dirigir a um público jovem – as crianças – com pouco conhecimento de medidas e que, portanto, não iria conseguir ter a mesma noção do comprimento/valor que o público de partida consegue ter. Assim, optou-se pela conversão, tornando-se mais fácil a compreensão do texto. Quadro 9 - Unidades de Medida/Moeda Texto de Partida Texto de Chegada Tradução portuguesa 2001 “sixteen and a half inches” p.7 “quarenta e um centímetros e meio” p.26 “quarenta e dois centímetros”p.14 “Eight inches. Seven. Six. Five.” p.33 “Vinte centímetros. Dezassete. Quinze. Doze.” p.34 “Vinte centímetros. Dezassete centímetros e meio. Quinze centímetros. Doze centímetros e meio” p.36 “Twenty pence” p.38 “Vinte cêntimos” p.36 “Cinquenta cêntimos”p.38 “I’ll pay you fifty pence,” p.55 “Pago-te cinquenta cêntimos,” p.41 “um euro e vinte e cinco cêntimos”p.54 Uma consequência negativa da adaptação é que o leitor, neste caso a criança, perde a informação de que na cultura de partida existem outras medidas/moedas diferentes das da sua cultura e que é um texto traduzido e não criado na cultura de chegada. Porém, “all 81 translation involves adaptation, and the very act of translation always involves change and domestication. The change of language always brings the story closer to the target- language audience” (Oittinen, 2002:6) Considera-se, assim, mais importante criar a mesma imagem no público de chegada do que revelar traços da cultura de partida. Um fator importante para a escolha de adaptação das medidas para centímetros foi a distância a que o pé do Senhor Mack se encontra do cocó. Ao longo da obra, o autor vai apresentando várias distâncias, por ordem decrescente, que indicam a proximidade do pé do Senhor Mack do cocó, sendo, por isso, necessário a criança compreender as medidas apresentadas para ter uma noção dessa proximidade. Na versão portuguesa de 2001, a tradutora também converteu as unidades de medida e moeda. Contudo, os valores monetários apresentados na tradução de 2001 são diferentes dos valores apresentados na tradução elaborada neste trabalho. A tradutora traduziu da seguinte maneira: 1) “Twenty pence” (Doyle, 2000:38) / “cinquenta cêntimos” (Doyle, 2001:38) 2) “fifty pence” (Doyle, 2000:65) / “um euro e cinco cêntimos” (Doyle, 2001:54) Estes valores são diferentes dos vinte cêntimos e cinquenta cêntimos, respetivamente, apresentados nesta tradução de 2017. Uma possível explicação para a diferença destes valores é o facto de as duas traduções terem uma diferença de dezasseis anos entre elas e, provavelmente, o valor da taxa de câmbio ter-se-á alterado durante este período de tempo. Como um texto é sempre ele escrito e inserido num contexto, também ele será fruto deste mesmo contexto e, consequentemente, por ele influenciado. 3.2.5-Regiões Geográficas Na presença de referências geográficas optou-se pela tradução das regiões com designações existentes na língua do texto de chegada. Contudo, nem todos os nomes apresentam tradução, como é o caso de Galway e Blue Mountain. Neste caso optou-se pelo empréstimo do texto de partida. Na versão portuguesa impressa em 2001, a tradutora optou pelo mesmo método. Quadro 10 – Regiões Geográficas Texto de Partida Texto de Chegada Bombay p.19 Bombaim p.30 Mount Everest p.47 Monte Evereste p.38 82 Blue Mountain Peak p.47 Pico Blue Mountain p.38 Argentina p.47 Argentina p.38 Kenya p.47 Quénia p.38 Australia p.47 Austrália p.38 Holland p.47 Holanda p.38 Ireland p.18 Irlanda p.30 Nepal p.47 Nepal p.38 Galway p. 60 Galway p.45 Sahara p.80 Saara p.48 river Nile p.81 rio Nilo p.49 3.2.6. Registos de Língua Como afirma João Barrento, todos os textos literários podem conter todos os tipos de texto e todos os registos e níveis de língua e a tradução deve também reproduzir essa variedade: Assim sendo, estão implicados no processo de tradução do texto dito literário todos os níveis da língua, numa interacção que visa produzir efeitos de sentido e de linguagem que fazem apelo à reconstituição, não apenas do nível de superfície do texto, mas também das ausências significantes, dos brancos, dos ritmos, da alusão, da denotação – em suma, de tudo aquilo a que chamarei os invisíveis do texto. Na tradução do texto literário, a “fidelidade” refere-se, assim, sobretudo ao respeito destas instâncias instáveis e ocultas. (Barrento, 2002:16-17) Doyle, para além de ser conhecido pelo recurso a termos do dialeto hiberno-inglês, também é conhecido pelo uso de termos de um registo de língua mais familiar ou mesmo calão, registados no quadro 11, que encontramos em de The Giggler Treatment, lado a lado com alguns regionalismos. Quadro 11 – Registos de Língua Texto de Partida Texto de Chegada Tradução portuguesa de 2001 “Yeah” p.56 “Sim” p.42 “Estás” p.55 “Hop on, kid” P.56 “Salta para aqui, miúda” P.42 “Salta para as minhas costas, miúda”P.56 83 «“Yep,” said Rover. “I’m the only dog in the world with talking paws.” p.61 “Yap,” disse o Rover. “Sou o único cão no mundo com patas falantes.”p.43 “Falam, pois - sou o único cão no mundo com patas faladoras.” p.62 “Out of here” p.69 “Bazei daqui” p.45 “Saltei daqui” p.68 “Thanks, toots,” p.74 “Obrigado, dama” p.46 “Obrigado! Aqui vamos nós!” p.72 Neste primeiro livro da coleção “The Rover Adventures” o autor apresenta-nos Rover: um cão que fala. Na maioria das falas de Rover, podemos ver o uso de um registo de língua que se afasta mais do Inglês-padrão. O uso deste tipo de vocabulário pretende caracterizar a personagem, dando-lhe um ar mais cool. Assim sendo, revela-se necessário também a tradução destes termos por outros da língua de chegada que pertençam a um registo de língua semelhante, com conotações similares, para que as características da personagem possam ser transmitidas ao leitor no texto de partida. A maioria dos termos em questão estão presentes nas falas de Rover. Contudo, ao longo da obra, podemos verificar ainda outros termos como próprios de uma linguagem mais familiar, presentes nas falas de outras personagens, como “Yeah” dito por Robbie. Por vezes, os tradutores optam por um enobrecimento do texto, não transpondo para as suas traduções marcas de registos de língua considerados menos eruditos, traduzindo não pelo termo equivalente mas por outro termo mais claro e elegante que altera a natureza do texto. Na tradução apresentada neste trabalho optou-se por manter termos pertencentes a um registo linguístico semelhante ao do texto de partida, pois são atributos que remetem para a personalidade da personagem, o Rover e para a escrita do autor da obra, Doyle. Nas traduções de Maria das Mercês Peixoto não se verifica um recurso a termos de um registo de língua mais popular, sendo que por vezes a tradutora chega até a incorrer a uma das tendências que Berman refere, a “expansão” como é o caso de “yep”, que traduz por “falam, pois”. Com a expansão, as traduções aumentam o texto de chegada, mas não acrescentam nada de novo e, neste caso, omite ainda o facto de ser um termo de um registo de língua específico. Há aqui, neste caso apresentado, uma segunda tendência referida por Berman, o enobrecimento (Berman, 2000: 290). Esta falta de marcas de uma linguagem mais popular e familiar na obra portuguesa de 2001 leva a que o leitor ao ler a obra não fique a conhecer a personalidade da personagem Rover e que o carácter humorístico da obra seja menos visível. 84 Conclusão Esta dissertação tinha como objetivo a tradução da obra de Roddy Doyle, The Giggler Treatment para português (Portugal), assim como uma reflexão sobre as estratégias de tradução aplicadas, a natureza do ato de tradução e as principais questões que esta levantou ao longo do processo de tradução. A primeira particularidade deste texto a ter em conta, aquando da sua tradução é o facto de se tratar de uma obra de literatura infantil, ou seja, com características especificas que irão influenciar a sua tradução. Particularidades como uma escrita que se distingue pelos seus leitores; o riso, que se expõe num discurso que reporta o leitor para o humor; a possibilidade de uma leitura em voz alta, acompanhada por um adulto; uma forte relação entre o texto e a ilustração; e, por último, as suas funções: de entretenimento, didática, informativa, terapêutica e criativa, contribuíram, fortemente, para o modelo de escrita e de tradução na elaboração da proposta de tradução. Em The Giggler Treatment as características acima referidas, como são atributos basilares da literatura infantil, foram tratadas com especial atenção, tendo-se tentado, sempre que possível, mantê-las na tradução em português. No que diz respeito à primeira característica mencionada acima – o público leitor – propôs-se uma tradução que se destinava a um público jovem português, dos três anos ao ensino básico, que usufrua de uma leitura acompanhada ou autónoma, com um conhecimento pouco alargado da cultura de partida. Esta aceção do público de chegada norteou e contribuiu para as nossas escolhas de tradução, durante o processo de decisão de tradução dos casos que maior atenção mereciam. No que diz respeito ao riso, provocado pelo enredo da literatura infantil ou por um discurso livre das regras e uma linguagem fora do comum, a obra de Doyle está repleta de casos que reportam ao humor. Assim sendo, como o humor é uma característica própria da literatura infantil e da obra, procurou-se nestes casos mantê-lo, reproduzindo a mesma transformação de estruturas pré-existentes na língua de partida – como algumas expressões idiomáticas já existentes e a formação de novas palavras através do uso dos travessões –, recorrendo a expressões da língua de chegada. Nestes casos foi possível fazermos uma tradução mais próxima da cultura de partida e mesmo assim manter esta característica humorística. Isto foi possível pois as duas culturas têm uma grande proximidade entre elas e as expressões utilizadas estão presentes em ambas as culturas, sendo reconhecidas por ambos os leitores. 85 A possibilidade de uma leitura em voz alta, que tem o propósito de entreter e captar a atenção do leitor, é outra característica da literatura infantil e da escrita de Doyle que contribui para o entretenimento provocado pela leitura dos seus textos. O autor expõe no seu texto inúmeros atributos com vários exemplos que contribuem para a musicalidade da leitura como onomatopeias e interjeições, repetições e paralelismos, registos de língua diferentes, marcas da oralidade e grafismo. Decidiu-se, por isso, que seria essencial manter estas características na tradução do texto – através da utilização de termos correspondentes na língua de chegada que reproduzissem o mesmo efeito, de forma a conservar uma fidelidade entre o texto fonte e o texto alvo. Contudo, em alguns casos, houve alguns desafios para tentar fazer esta reprodução no texto de chegada como, por exemplo, no caso das interjeições e onomatopeias. O autor utilizou termos da língua de partida que servem de onomatopeias no texto e com a sua tradução para termos portugueses, perdeu-se um pouco o impacto do som da palavra como onomatopeia. No entanto, na maioria dos casos, considera-se que se conseguiu manter esta característica na passagem do texto fonte para o texto alvo. As obras de literatura infantil apresentam outra grande particularidade que raramente observamos nos outros géneros literários – as ilustrações. A ilustração acompanha o texto da obra e não só complementa a leitura, atribuindo um rosto às personagens, como também acrescenta informação ao texto e, por isso, há uma relação de concordância entre o texto e a imagem que o acompanha. Na tradução, esta concordância também tem de existir. Em The Giggler Treatment também encontramos ilustrações que complementam a informação do texto e, por isso, a tradução também teve de estar de acordo com a ilustração. Aquando das ilustrações, houve um caso em particular que mereceu maior reflexão. “Chicken soup”, foi traduzido numa primeira fase por “canja de galinha”, algo tipicamente português. No entanto, devido à ilustração, a tradução teve de ser alterada para “caldo de galinha”. A ilustração, ao contrário daquilo que pensava inicialmente antes de elaborar este trabalho, é uma particularidade fundamental a ter em conta na tradução da literatura infantil e se não o fizermos poderemos cometer erros de tradução, produzindo versões do texto incongruentes com aquilo que é apresentado na imagem e no texto. As funções deste género literário são outro aspeto da literatura infantil que é fundamental na tradução. A literatura infantil tem uma função de entretenimento, informativa, terapêutica, didática e criativa e algumas destas funções estão presentes na obra de Doyle. No seu discurso, Doyle procura entreter através de uma leitura que 86 contribui para uma musicalidade do texto (recorrendo a onomatopeias e interjeições, repetições e paralelismos, registos de língua, marcas da oralidade e grafismo), informar (através da introdução de vários termos que reportam à geografia e referências culturais) e instruir o seu leitor através da sua criatividade linguística. Através da criatividade linguística, o autor “brinca” com a língua e com as suas estruturas, o que faz com que o leitor seja capaz de relacionar com os seus conhecimentos da língua e acrescentar outros. Esta criatividade encontra-se presente logo no título da obra com o termo “giggler”. O autor cria um novo termo na língua de partida e, na obra de chegada, um termo correspondente foi também criado de forma a manter esta característica no texto alvo. A criatividade linguística foi um dos casos mais difíceis de reproduzir na língua de chegada e que mais atenção mereceu nesta tradução. Na criatividade linguística o autor brinca com termos próprios da cultura de partida e, devido às diferenças entre a língua de partida e a língua de chegada, essas não foram fáceis de reproduzir. Este percurso permitiu-nos concluir que, apesar de a literatura infantil ser vista como uma literatura “simples” e pouco prestigiada entre os críticos da área, a tradução infantil não é “simples”. É preciso ter em conta vários aspetos, ao optar por uma proposta de tradução em vez de outra, aspetos aos quais um tradutor de outro género literário não terá de prestar atenção. Para além das características próprias da literatura infantil, também as características do estilo de escrita do autor contribuíram para o processo de decisão das propostas de tradução de O Tratamento das Risinhos. A escrita de Doyle caracteriza-se por uma narrativa onde se encontram várias referências à cultura de origem, com termos do dialeto hiberno-irlandês e com um registo de língua com o recurso a termos de uma linguagem mais familiar e a obra em questão não é exceção. Casos com referências à cultura irlandesa e norte-americana, marcas da oralidade, expressões idiomáticas, unidades de medida/moedas, regiões geográficas e registos de língua são elementos que reportam para o estilo do autor. Posto isto, e como uma boa tradução tem de fazer sentido, ter o mesmo estilo de escrita que o texto fonte e provocar no leitor um efeito semelhante àquele que o texto fonte provocaria no seu leitor, também tive o cuidado de manter estes elementos na tradução. No texto alvo procuramos manter estas características que remetem para o estilo do autor no texto de chegada. Assim, procuramos, alternadamente, optar por estratégias que por vezes aproximaram o nosso texto do texto de partida e outras que aproximaram o texto de Doyle da cultura de chegada. 87 Na verdade, optou-se por uma estratégia menos próxima do texto de partida nos casos em que queríamos causar um efeito no público-alvo da tradução semelhante ao que teria sido causado no público da versão inglesa do texto. Essa decisão afetou casos como a criatividade linguística, as onomatopeias e interjeições, alguns casos de humor por transformação de estruturas já existentes, as marcas da oralidade, expressões idiomáticas, as unidades de medida/moeda, regiões geográficas e registos de língua. Optou-se por esta estratégia de tradução – mais próxima da domesticação –, porque o público-alvo, como já foi referido, tinha um conhecimento pouco alargado da cultura de partida e, por isso, não seria capaz de perceber certas referências, caso optássemos por estratégias mais próximas do estranhamento. Como consequência desta estratégia de tradução, o público conseguiu obter o mesmo efeito de leitura que o texto terá tido no leitor do texto de partida. Porém, com esta estratégia deram-se algumas perdas do texto fonte para o texto alvo. O leitor ficou a desconhecer alguns dos elementos da cultura de partida como, por exemplo, as marcas da oralidade, as expressões idiomáticas, unidades de medida/moeda e termos próprios do dialeto hiberno-irlandês. Uma estratégia mais próxima do estranhamento, por sua vez, foi utilizada nos casos de referência à cultura irlandesa e norte-americana, alguns casos de humor por transformação de estruturas pré-existentes e em algumas regiões geográficas. Uma estratégia mais próxima do estranhamento funcionou nestes casos, porque há uma relação de proximidade entre a cultura de partida e a cultura de chegada e ao traduzir-se de uma forma mais literal, o leitor consegue reconhecer que há elementos da cultura de partida e, mesmo assim, compreendê-los. Assim, consegue-se dar a conhecer a cultura de partida ao leitor da obra de chegada, o que contribui também para manter uma das características da literatura infantil, a função didática. O jovem leitor não só se entretém durante a leitura, como também adquire novos conhecimentos sobre o mundo que o rodeia. À medida que fomos analisando a nossa própria tradução e avançando com este trabalho, foi, como já foi referido neste trabalho, descoberta a obra Os Brincalhões. Na comparação das duas versões da obra, constatou-se que a tradutora de Os Brincalhões, na maioria dos casos, apresentou diferentes traduções das da proposta de tradução desta dissertação e a diferença começa logo no próprio título. Na versão portuguesa de 2001, estamos ainda perante alguns casos de omissão, enobrecimento do texto, empobrecimento quantitativo e, ainda, expansão, para retomar os conceitos avançados por Berman. Maria das Mercês Peixoto omite algumas onomatopeias e interjeições, marcas da oralidade, eliminando na íntegra erros da oralidade e regionalismos, assim como algumas 88 referências humorísticas. A tradutora omite alguns casos de registos de língua alternativos, eliminando também por completo os termos calão, provocando um enobrecimento do texto o que faz com que se tornem menos claras as características de uma personagem – o Rover. Em alguns casos, podemos ver palavras diferentes no texto de partida traduzidas da mesma maneira no texto de chegada – empobrecimento quantitativo - e, noutros, traduções que aumentam o texto de chegada, mas não acrescentam nada de novo – expansão. A ilustração não foi sempre tida em consideração, na versão portuguesa de 2001 da obra. A tradutora apresentou uma tradução diferente da deste trabalho, possivelmente porque não relacionou o texto com a imagem que o acompanhava. Esta não concordância entre o texto e as ilustrações verifica-se mais do que uma vez na versão de 2001. Apesar destas diferenças que revelam as opções do tradutor, vemos ainda outras que estão relacionadas com o contexto da obra. Os Brincalhões é um texto de 2001, enquanto o Tratamento das Risinhos – título da tradução proposta neste trabalho – é um texto de 2017, havendo um período que separa as duas traduções de dezasseis anos. Desta forma, observamos diferenças não só na escrita como também na moeda. Na obra de 2001, temos frases ainda escritas sem o acordo ortográfico e diferentes valores do euro, possivelmente devido a diferentes taxas de câmbio. As duas versões portuguesas de The Giggler Treatment vêm, assim, comprovar aquilo que foi dito várias vezes ao longo deste trabalho: que uma tradução é sempre um texto inserido num contexto que irá influenciar as decisões de tradução. Ao longo dos vários casos de tradução viram-se algumas perdas e alguns casos bem-sucedidos de tradução. No entanto, acredito que esta poderá ser considerada uma tradução cuidada, pois procurou-se sempre fazer sentido, reproduzir o mesmo estilo de escrita do texto de partida, ter o mesmo efeito no leitor. Foi, sobretudo, feito um esforço para que pudesse haver uma certa lealdade entre o texto fonte e o texto alvo. Contudo, e porque uma tradução nunca é um trabalho acabado e sempre suscetível de aperfeiçoamentos, esta também não é uma exceção. Com a elaboração deste trabalho procurávamos não só analisar e aplicar algumas das estratégias de tradução a uma obra da literatura infantil, mas também introduzir um novo texto numa nova cultura e, de certa forma, apesar de virmos a descobrir que já existia uma tradução da obra em português, a verdade é que o objetivo a que nos propusemos foi conseguido. Isto porque uma tradução é sempre um texto único que irá depender não só 89 do contexto em que se encontra inserida mas também do seu tradutor. As inúmeras diferenças entre as duas versões da obra de Doyle vêm confirmar esta afirmação. Com este trabalho, esperamos não só ter contribuído para a área dos estudos de tradução com mais uma tradução vantajosa no campo da tradução infantil, como também ter contribuído para contrariar a maneira como esta ainda é vista por muitos – como um género literário pouco prestigiado. A literatura infantil, apesar de à primeira vista parecer ser simples e pouco complexa, quando estudada, trabalhada e traduzida, revela particularidades e dificuldades que não estão de acordo com a simplicidade com que é catalogada. 90 Bibliografia Bibliografia Primária DOYLE, Roddy (2000) The Giggler Treatment. UK, Scholastic Ltd. DOYLE, Roddy (2000) The Giggler Treatment. U.S.A, Scholastic Press. DOYLE, Roddy (2001) Os Brincalhões. (trad. Maria das Mercês Peixoto) Lisboa, Editorial Presença. Bibliografia Secundária BAKER, Mona (1992) In Other Words, a Coursebook on Translation, Londres, New York, Routledge. BASSNETT, Susan (2004) Translation Studies, London, New York, Routledge. BENJAMIM, Walter (2000) “The Task of the Translator”, In: VENUTI, Lawrence (ed.) The Translation Studies reader. London, New York: Routledge. BERMAN, Antoine (2000) “Translation and the Trials of the Foreign”, In: VENUTI, Lawrence (ed.) The Translation Studies Reader. London, New York: Routledge. 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