1 2021 DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS MACARONESIA POVOAMENTO, TABACO, AÇÚCAR E ARTE NA HISTÓRIA DAS ILHAS DO ATLÂNTICO MÉDIO COORDENADORES: Susana Serpa Silva Santiago de Luxán Meléndez POVOAMENTO, TABACO, AÇÚCAR E ARTE NA HISTÓRIA DAS ILHAS DO ATLÂNTICO MÉDIO COORDENADORES: Susana Serpa Silva Santiago de Luxán Meléndez DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS MACARONESIA 1 2021 Ficha Técnica: Série: MACARONESIA. DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS Título: 1. POVOAMENTO, TABACO, AÇÚCAR E ARTE NA HISTÓRIA DAS ILHAS DO ATLÂNTICO MÉDIO Coordenadores: SILVA, Susana Serpa e LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de Autores: ATOCHE PEÑA, Pablo; HERNÁNDEZ SOCORRO, Mª de los Reyes; LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de; MACHADO, Margarida Vaz do Rego; RAMÍREZ RODRÍGUEZ, Mª. Ángeles; SILVA, Susana Serpa; VIÑA BRITO, Ana Revisores Científicos: AZANZA LÓPEZ, José Javier - Professor Titular da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Navarra. Membro do Grupo de Investigación TriviUN. Teatro, Literatura y Cultura Visual da mesma Universidade. DNI: 29150328J. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0375-7899 VAQUINHAS, Irene - Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura da mesma Universidade. ORCID: https:// orcid.org/0000-0003-1889-165X Edição: CHAM Açores, 2021 ISBN: 978-989-33-1426-5 Execução Gráfica: Nova Gráfica, Lda. Mapa da capa: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Macaronesia-esp.png Com Apoio da O CHAM Açores garante um rigoroso processo de seleção e avaliação do trabalhos que publica. MACARONESIA. DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS 1. Povoamento, tabaco, açúcar e arte na História das ilhas do Atlântico Médio; Susana Serpa Silva, Santiago de Luxán Meléndez (coordenadores); CHAM Açores, 2021. p. 183; 21,0 x 29,7 cm. ISBN: 978-989-33-1426-5 1. As ilhas como laboratórios de observação da mudança cultural e da transformação do meio natural: a colonização humana de Lanzarote (Ilhas Canárias). 2. O açúcar no Corpus Documental das Ilhas Canárias. 3. O Tabaco nos Impérios Ibéricos desde os Arquipélagos Atlânticos nos séculos XVII-XIX. Uma visão comparada. 4. O açúcar na vida quotidiana insular: o caso dos Açores nos séculos XVIII e XIX. 5. Imagens dos promotores do cultivo do tabaco e representações plásticas do hábito prazenteiro nas Canárias (Séculos XIX-XX). I. Serpa, Susana, coord. II. de Luxán, Santiago, coord. III. Universidade dos Açores (UAc). 4Índice Apresentação ......................................................................................................5 As ilhas como laboratórios de observação da mudança cultural e da transformação do meio natural: a colonização humana de Lanzarote (Ilhas Canárias) / The islands as laboratories for the observation of cultural change and the transformation of the natural environment: The human colonization of Lanzarote (Canary Islands) Pablo Atoche Peña e Mª. Ángeles Ramírez Rodríguez ..................................................7 O açúcar no Corpus Documental das Ilhas Canárias / Sugar in the Documentary Corpus of the Canary Islands Ana Viña Brito ............................................................................................................53 O Tabaco nos Impérios Ibéricos desde os Arquipélagos Atlânticos nos séculos XVII-XIX. Uma visão comparada / Tobacco in the Iberian Empires from the Atlantic Archipelagos in the 17th-19th centuries. A compared view Santiago de Luxán Meléndez e Margarida Vaz do Rego Machado ..............................66 O açúcar na vida quotidiana insular: o caso dos Açores nos séculos XVIII e XIX / Sugar in everyday island life: the case of the Azores in the 18th and 19th centuries Susana Serpa Silva .......................................................................................................99 Imagens dos promotores do cultivo do tabaco e representações plásticas do hábito prazenteiro nas Canárias (Séculos XIX-XX) / Images of tobacco cultivation promoters and plastic representations of the pleasant habit in the Canary Islands (19th-20th centuries) María de los Reyes Hernández Socorro e Santiago de Luxán Meléndez ...................127 Sobre os autores ..............................................................................................182 Índice 5Apresentação Por Convénio celebrado a 23 de julho de 2013, a Universidad de Las Palmas de Gran Canaria (ULPGC), a Universidad de La Laguna (ULL), a Universidade dos Açores (UAc) e a Universidade da Madeira (UMa), criaram o ciclo de estudos, por associação, conducente ao grau de doutor em Ilhas Atlânticas: História, Património e Quadro Jurídico-Institucional que é oferecido, respetivamente, pela Escuela de Doctorado da la ULPGC, pela Escuela de Doctorado y Estudios de Posgrado da ULL, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UAc e pela Faculdade de Artes e Humanidades da UMa. Entre os principais objetivos deste doutoramento, que conta com três linhas de especialização (História, Património e Ciências Jurídicas), destacam-se o desenvolvimento e o aprofundamento de estudos de excelência, no âmbito de investigação avançada, sobre as ilhas e os arquipélagos atlânticos, da Macaronésia, bem como das dinâmicas estabelecidas entre estes e os continentes que marginam o oceano. O estabelecimento de redes de pesquisa e de conhecimento entre instituições de ensino superior e centros de investigação é outro relevante desígnio deste programa doutoral. O curso prevê a realização de Seminários Formativos e de Investigação que se realizam com a colaboração e participação de docentes e alunos das quatro universidades. Nestes, não só se debatem problemáticas relacionadas com a investigação e a elaboração das teses doutorais, como se apresentam e discutem temáticas que fazem parte dos interesses e da mais recente investigação dos professores, o que permite um aporte de novidades e inovações metodológicas. Estas atividades são essenciais para os doutorandos, em formação, como também para os investigadores já consolidados, que encontram, assim, mais uma oportunidade de expor e discutir os seus trabalhos com colegas de diferentes universidades. Embora os seminários sejam preferencialmente ministrados por videoconfe- rência, por força da geografia insular, tem-se procurado, quando viável, realizar estes encontros presencialmente, o que aconteceu, em junho de 2019, na Universidade dos Açores. Este e-book, que agora chega a um leque mais vasto de leitores, reflete o se- minário que então se realizou, sendo o primeiro de um conjunto de publicações, que se irão manter, no sentido de compilar e divulgar os trabalhos desenvolvidos nestas reuniões científicas. Por este motivo, a Comissão Académica do curso decidiu criar Apresentação 6a série, genericamente intitulada, Macaronesia: Dinámicas Históricas, Sociales y Económicas, que agora se inicia com o e-book n.º 1, cujo título Povoamento, Tabaco, Açúcar e Arte na História das Ilhas do Atlântico Médio, e os respetivos conteúdos, refletem a diversidade de temas abordados, com enquadramento nos contextos dos Açores e das Canárias. Mais se acordou que a coordenação de cada volume ficará a cargo do responsável pelo doutoramento na Universidad de Las Palmas de Gran Cana- ria e na universidade de acolhimento do seminário. Por este motivo, esta publicação faz-se com a chancela do CHAM Açores, núcleo do CHAM – Centro de Humanidades, da FCSH da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, ao qual os coordenadores dirigem o seu agradecimento. Estima-se, pois, que este seja o primeiro e-book de muitos outros que se seguirão. Nele colaboram Santiago de Luxán Meléndez, Pablo Atoche Peña, María de los Reyes Hernández Socorro e Mª. Ángeles Ramírez Rodríguez, todos da ULPGC, Ana Viña Brito da ULL, Margarida Vaz do Rego Machado e Susana Serpa Silva, da UAc. Os Coordenadores 7As ilhas como laboratórios de observação da mudança cultural e da transformação do meio natural: a colonização humana de Lanzarote (Ilhas Canárias)1 The islands as laboratories for the observation of cultural change and the transformation of the natural environment: The human colonization of Lanzarote (Canary Islands) Pablo Atoche Peña (ULPGC) pablo.atoche@ulpgc.es Mª. Ángeles Ramírez Rodríguez (ULPGC) angelesramirez57@gmail.com In memoriam Antonio Rodríguez Rodríguez 1 O presente trabalho insere-se nos estudos que estamos a realizar no quadro do projeto HAR2017- 82792-P «Colonización protohistórica del archipiélago canario: parámetros antropológicos, culturales y medioambientales», financiado pelo Ministério de Economia, Indústria e Competitividade. Programa Estatal de Fomento da Investigação Científica e Técnica de Excelência. Subprograma Estatal de Geração do Conhecimento, no quadro do Plano Estatal de Investigação Científica e Técnica e de Inovação. IP: Pablo Atoche Peña. As ilhas como laboratórios ... 8Resumo As ilhas constituem espaços adequados para experimentar modelos teóricos destinados a analisar fenómenos de transformação ambiental e mudança cultural, adquirindo o carácter de laboratórios desprovidos de interferências externas, onde se podem observar os mecanismos que regem as interações entre o homem e a sua cultura e os ecossistemas naturais. Neste campo teórico, a colonização humana das Canárias pressupôs o estabelecimento de povos que implantaram atividades agropecuárias em ecossistemas que eram virgens e este processo permite-nos delinear algumas explicações sobre os padrões socioeconómicos vinculados aos habitantes do continente que se estabeleceram inicialmente, bem como as estratégias de adaptação que tiveram de implementar para sobreviver nos novos e limitados espaços insulares. Neste trabalho, combinam-se informações de diferentes disciplinas científicas como a Arqueologia, a Paleoecologia, a Bioantropologia ou a Linguística para efetuar uma aproximação à realidade complexa e heterogénea da colonização humana do arquipélago das Canárias e os intensos efeitos culturais e ambientais que provocou em ilhas como Lanzarote ou Fuerteventura. Palavras-chave: Colonização das ilhas; Ilhas Canárias; Lanzarote; Arqueologia; Protohistória; Bioantropologia; Paleoecologia. Abstract The islands constitute appropriate spaces in which to experiment with theorical models aimed at analysing phenomena of environmental transformation and cultural change, acquiring the character of laboratories devoid of external interference in which to observe the mechanisms governing the interactions EHWZHHQKXPDQVDQGWKHLUFXOWXUHDQGQDWXUDOHFRV\VWHPV,QWKLVWKHRUHWLFDOˋHOG the human colonization of the Canary Islands involved the establishment of people who introduced agricultural and livestock activities into hitherto unspoilt for the socio-economic patterns linked to the continental settlers that were initially established and adaptive strategies that they had to implement in order to survive in the new and limited islands spaces. This work combines information from different VFLHQWLˋF GLVFLSOLQHV VXFK DV $UFKDHRORJ\ 3DOHRHFRORJ\ %LRDQWKURSRORJ\ DQG Resumo Abstract 9Linguistics, in order to make and approach to the complex heterogeneous reality of human colonization in the Canary Islands and the intense cultural and environmental effects that it gave rise to on islands such as Lanzarote and Fuerteventura. Keywords: Islands Colonization; Canary Islands; Lanzarote; Archaeology; Protohistory; Bioanthropology; Paleoecology. 1. Introdução Os espaços insulares marcados pela síndrome da insularidade constituem áreas bem delimitadas, pelas suas superfícies reduzidas e bem delimitadas para experimentar modelos teóricos que pretendam analisar fenómenos culturais ligados a sociedades isola- das. Os primeiros estudos etnográficos do século XIX focados em sociedades insulares pro- porcionaram alguns princípios explicativos sobre a composição e estrutura das comunida- des humanas, os quais têm sido usados para definir processos que favoreçam a mudança cultural2. No terreno da Geoarqueologia, as ilhas são consideradas espaços ecológicos em equilíbrio instável, especialmente sensíveis à presença humana e à sua capacidade para alterar as paisagens naturais por serem espaços fechados3, daí que lhes seja atribuído o carácter de laboratórios onde se podem observar os mecanismos que regem as interações entre seres humanos e paisagens naturais sem que se produzam interferências externas. Neste âmbito teórico, a hipótese que defende que as ilhas são capazes de fornecer modelos apropriados para analisar as possíveis relações entre a transformação do meio natural e a mudança cultural tem sido amplamente defendida e extensamente matizada. No nosso caso favoreceu a reflexão sobre os parâmetros que se deveriam ter em consideração para uma correta aproximação à realidade das sociedades proto-históricas canárias4, às quais 2 Cf. p.e. MALINOWSKI, B. (2001), Los argonautas del Pacífico occidental. Comercio y aventura entre los indígenas de la Nueva Guinea melanésica, Barcelona, Ediciones Península. 3 GORMAN, M.L. (1991), Ecología insular, Barcelona, Ediciones Vedrá. PÉREZ-OBIOL, R., YLL, E.I., PANTALEÓN-CANO, J. & ROURE, J.M. (2000), “Evaluación de los impactos antrópicos y los cambios climáticos en el paisaje vegetal de las Islas Baleares durante los últimos 8.000 años”, in V.M. Guerrero & S. Gornés (Coor.), Colonització humana en ambients insulars. Interacció amb el medi i adaptació cultural, Palma, Universitat de les Illes Balears, pp. 73-98. 4 ATOCHE, P. (2003), “Fenómenos de intensificación económica y degradación medioambiental en la Protohistoria canaria”, Zephyrus, LVI, 183-206. CRIADO, C. & ATOCHE, P. (2003), “Estudio geoarqueológico del yacimiento de El Bebedero (siglos I a.C. a XIV d.C., Lanzarote, Islas Canarias)”, in Cuaternario y Geomorfología, AEQUA/Sociedad Española de Geomorfología, 17 (1-2), pp. 91-104. 1. Introdução 10 têm sido definidas, justamente, pelo seu relativo isolamento, tanto do meio geocultural continental como entre si, um arquipélago fragmentado em sete espaços culturais que teriam agido como autênticos ilhéus de cultura onde os fenómenos de difusão interviriam de uma maneira muito limitada. As Ilhas Canárias, à semelhança dos outros arquipélagos da Macaronésia5, não tiveram grandes herbívoros até serem introduzidos pelos primeiros colonizadores humanos6, responsáveis pela implantação de atividades agrícolas e pecuárias que transformaram a vegetação original, por terem eliminado táxones e reduzido as formações vegetais, alterando a fisionomia da paisagem natural. Nas Canárias, essas transformações ecológicas começaram durante a etapa proto-histórica e intensificaram- se depois da conquista normando-castelhana do século XV d.C. como consequência do novo modelo económico que trouxe consigo a introdução do cultivo da cana de açúcar7. Como consequência, uma parte significativa das paisagens naturais que apresentam as Ilhas Canárias na atualidade começaram a formar-se em datas relativamente recentes8 devido, também, à pressão das atividades pecuárias e pastoris que, em menos de dois milénios, fizeram desaparecer de Lanzarote e Fuerteventura formações vegetais endémicas e alteraram o relevo intensamente. 5 O trabalho de A. Vieira (2004) é uma boa síntese sobre o papel histórico dos arquipélagos da Macaronésia nas relações atlânticas durante a Idade Moderna. VIEIRA, A. (2004), “As ilhas atlânticas. Para uma visão dinâmica da sua história”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 50, pp. 219-264. 6 J. Meco e colaboradores para Fuerteventura e posteriormente L. Zöller e colaboradores, assinalaram a possibilidade de uma presença precoce de ovinos e caprinos nas Canárias orientais, datados respetivamente no II e III milénios a.C. No caso de Fuerteventura, os restos encontraram-se submersos nos depósitos fluviomarinhos na foz do Barranco de la Monja (Puerto del Rosario), circunstância que estabelece a sua possível relação com escoamentos causados por uma intensificação da erosão “… resultado de un impacto antrópico sobre la frágil cubierta vegetal insular”, sugerindo um povoamento humano das Canárias orientais no II milénio a.C. MECO, J., ONRUBIA, J. & FONTUGNE, M. (1997), “Paleoclimatología y presencia humana holocena en Fuerteventura”, in A. Millares, P. Atoche y M. Lobo (Coordinadores-editores), Homenaje a Celso Martín de Guzmán (1946-1994), pp. 363-372, Madrid, Universidad de Las Palmas de Gran Canaria/Ayuntamiento de Gáldar/Dirección General de Patrimonio Histórico, p. 369. ZÖLLER, L., SUCHODOLETZ, H. von & KÜSTER, N. (2003), “Geoarchaeological and chronometrical evidence of early human occupation on Lanzarote (Canary Islands)”, in Almogaren XXXIV, pp. 7-24. 7 LUXÁN, S. de & VIÑA, A. (Dirs.) (2009), La empresa azucarera en Canarias. Siglos XV-XX, Las Palmas, Arehucas-Ayuntamiento de Los Llanos de Aridane. 8 A. Santana considera que “… los terrenos de menor pendiente y con suelos de alta capacidad agrícola serían desprovistos del arbolado con el objeto de instalar en ellos cultivos dedicados a la exportación, principalmente de azúcar, y al abastecimiento de la población”. SANTANA, A. (2003), “Consideraciones en torno al medio natural canario anterior a la conquista”, in Eres (Arqueología/Bioantropología), 11 (Junio 2003), 61-75, Museo Arqueológico de Tenerife, Instituto Canario de Bioantropología, OAMC, Cabildo de Tenerife, p. 63. 11 No arquipélago canário o estudo das relações que, foram estabelecidas entre os povoadores humanos proto-históricos e o meio ambiente insular, iniciou-se há poucos anos, adquirindo maior interesse no campo científico ao perceber a importância que essa linha de trabalho poderia ter para determinar as causas e a forma como ocorreu a colonização humana nas ilhas. (Rodríguez e González, 2003)9. O facto das paisagens naturais canárias apresentarem realidades diferentes antes e depois da presença hu- mana, permitiu propor modelos explicativos destinados a delimitar as características socioeconómicas das formações sociais que se fixaram inicialmente nas ilhas e as estra- tégias de adaptação que implementaram para subsistir10. Apesar disso, concretizar com precisão estes modelos ainda é complicado devido ao número de variáveis que intervêm, tanto de carácter natural, consequência das sucessivas emissões lávicas e piroclásticas, que no caso de Lanzarote transformaram mais de 30% da superfície11, como de carácter antrópico determinadas por diferentes aspetos tecnológicos e sociais. A hipótese com a qual trabalhamos considera que os primeiros colonizadores humanos continentais que chegaram às ilhas possuíam na origem uma estrutura socioeconómica agro-pastoril, contextualizada num campo tecnológico típico da passagem do Bronze final para a Idade do Ferro, com influências da cultura fenício- púnica estabelecida no Mediterrâneo ocidental a partir do final do segundo milênio aC. e que a colonização do arquipélago das Canárias teria ocorrido a partir da transição do 2º para o 1º milênio aC, fenómeno que iniciaria o desenvolvimento das relações colonizadores continentais/ilhas oceânicas que devem ter operado em duas direções: por um lado, alterando o sistema cultural original dos humanos e, por outro, transformando o ambiente original das ilhas. Isto tudo sem excluir que nesse processo se tivessem produzido, tanto nos colonizadores como nos animais e plantas domésticas que os acompanhavam, adaptações biométricas e/ou mutações genéticas estimuladas pela síndrome da insularidade, dando origem assim à aparição de caracteres culturais e biológicos que adquirirão o aspeto de endemismos canários. 9 RODRÍGUEZ, C. & GONZÁLEZ, R. (2003), “Colonización y asentamiento en islas por grupos humanos: aspectos biogeográficos y bioantropológicos”, in Eres (Arqueología/Bioantropología), 11 (Junio 2003), 115- 133. Museo Arqueológico de Tenerife, Instituto Canario de Bioantropología, OAMC, Cabildo de Tenerife. 10 ATOCHE, P. (2008), “Las culturas protohistóricas canarias en el contexto del desarrollo cultural mediterráneo: propuesta de fasificación”, in R. González, F. López & V. Peña (Eds.), Los Fenicios y el Atlántico, IV Coloquio del CEFYP (Santa Cruz de Tenerife, 2004), pp. 317-344. 11 ROMERO, C. (1991), La erupción de Timanfaya (Lanzarote, 1730-1736). Análisis documental y estudio geomorfológico, Universidad de La Laguna, Serie Informes, 30. 12 2. O arquipélago canário na passagem do II para o I milénio a.C.: mito e realidade Nos II e I milénios a.C. diferentes culturas mediterrâneas (egípcia, grega, romana...) imaginaram a existência de ilhas para lá das Colunas de Hércules, no oceano ocidental12, espaço considerado um dos confins do mundo conhecido onde se situaram diferentes elementos míticos, como resultado da tendência de colocar nos limites do oceano os lugares mais maravilhosos, idílicos e felizes13 (Jardim das Hespérides, Ilhas dos Bem Aventurados, Campos Elísios, Atlântida,...)14 (Figura 1)15. Esta visão fabulosa que nos é transmitida por diferentes fontes clássicas greco-romanas não deve ter sido igual para as populações indígenas do Bronze final estabelecidas naquilo que M. Tarradell denominou de Círculo do Estreito16, ou para os marinheiros e mercadores fenícios que se fixaram naquela região desde finais do II milénio a.C.17, que agiram com grande cuidado para manter oculta a próspera realidade que existia do outro lado das Colunas de Hércules, levando a cabo uma enérgica estratégia destinada a afugentar possíveis 12 MARTÍNEZ, M. (2010), “Islas míticas en relación con Canarias”, in Estudios Griegos e Indoeuropeos, 20, pp. 139-158. 13 CABRERA, A. (1988), Las Islas Canarias en el Mundo Clásico, Madrid, Viceconsejería de Cultura y Deportes, Gobierno de Canarias. MARTÍNEZ, M. (1992), Canarias en la Mitología. Historia mítica del archipiélago, Historia Popular de Canarias, 11, Santa Cruz de Tenerife, Cabildo Insular de Tenerife/ Centro de la Cultura Popular Canaria. MARTÍNEZ, M. (1996), Las Islas Canarias de la Antigüedad al Renacimiento. Nuevos aspectos, Nuevos Estudios de Historia Canaria, Santa Cruz de Tenerife, Cabildo de Tenerife/Centro de la Cultura Popular Canaria. MARTÍNEZ, M. (2002), Las Islas Canarias en la Antigüedad Clásica. Mito, Historia e Imaginario, Santa Cruz de Tenerife, Centro de la Cultura Popular Canaria. MANFREDI, V. (1997), Las Islas Afortunadas. Topografía de un mito, Madrid, Anaya, Anábasis. SANTANA, A., ARCOS, T., ATOCHE, P. & MARTÍN, J. (2002), El conocimiento geográfico de la costa noroccidental de África en Plinio: la posición de las Canarias, Hildesheim-Zürich-New York, Georg Olms Verlag, Spudasmata, Band p. 88. 14 As fontes árabes medievais também projetam uma visão maravilhosa das ilhas atlânticas (Canárias e Açores), possivelmente derivada da sua localização no oceano, que assinalam o extremo do mundo conhecido, e provavelmente pela forma em que chega o conhecimento dessas ilhas através das fontes clássicas greco-latinas e de narrações de expedições posteriores. No século XII o geógrafo árabe Al- Idrisi projeta uma visão mais real das ilhas atlânticas. GUICHARD, P. (1995), “L’islaire arabe médiéval dans la Méditerranée et dans l’atlantique”, in Los universos insulares, Cuadernos del CEMYR, 3, 199-207, Universidad de La Laguna, p. 203. 15 ROMERO, F. & BENAVIDES, R. (1998), Mapas antiguos del mundo, Madrid, Edimat Libros. 16 TARRADELL, M. (1960), Marruecos púnico, Tetuán. 17 LÓPEZ PARDO, F. (1991), “El Periplo de Hannón y la expansión cartaginesa en el África occidental”, V Jornadas de Arqueología fenicio-púnica (1990), 59-70. LÓPEZ PARDO, F. (2000), El empeño de Heracles (La exploración del Atlántico en la Antigüedad), Madrid, Arco/Libros, Cuadernos de Historia, 73. 2. O arquipélago canário na passagem do II para o I milénio a.C.: mito e realidade 13 concorrentes no Mediterrâneo ocidental e no oceano18. Esta situação manteve- se até à destruição de Cartago por Roma no ano de 146 a.C., ponto de ruptura no conhecimento que as culturas mediterrânicas possuíam sobre o que existia do outro lado do Estreito, alterando a visão mítica para uma perspetiva mais real quando, em meados do século I a.C., a emergente potência romana se interessou por localizar e reconhecer as ilhas do Oceano19. Como resultado, na passagem da Era, foram elaboradas as primeiras descrições biogeográficas dos arquipélagos africanos, que projetaram uma visão dispersa das Ilhas Canárias, muito diferente da atual, que diferenciavam dois grupos, o das Hespérides (Lanzarote e Fuerteventura) e o das Afortunadas (Gran Canaria, Tenerife, La Gomera, El Hierro y La Palma)20. Na passagem do II ao I milénio a.C., quando as Canárias começaram a ser frequentadas por navegadores originários do Círculo do Estreito21, estas possuíam uma cobertura vegetal mais ampla e espessa do que a atual, que também estava presente em Lanzarote e Fuerteventura, os recursos hídricos encontravam-se em níveis ótimos, com cursos de água sazonais e permanentes, extensas várzeas de terra fértil, portos naturais e ancoradouros seguros, grandes recursos piscatórios, 18 GOZALBES, E. (1988), “La piratería en el Estrecho de Gibraltar en la Antigüedad”, in Congreso Internacional ‘El Estrecho de Gibraltar’ (Ceuta, 1987), I, 769-778, Madrid. 19 SANTANA, A. & ARCOS, T. (2007), “La expedición de Juba II a las Islas Afortunadas y el meridiano cero del Orbis Terrarum”, in Orbis Terrarum, Internationale Zeitzchrift für Historische Geographie der Alten Welt, Band 9 (2003-2007), pp. 143-158. 20 SANTANA et alii. (2002), ob. cit. 21 ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2001), “Canarias en la etapa anterior a la conquista bajomedieval (circa s. VI a.C. al s. XV d.C.): Colonización y manifestaciones culturales”, En Arte en Canarias: siglos XV-XIX. Una mirada retrospectiva, Madrid, Gobierno de Canarias, Dirección General de Cultura, I, 43-95, II, pp. 475-479. Fig. 1 - Fragmento ocidental do mapa de Al-Idrissi (1154 d.C.) 14 mostrando uma realidade natural que se terá mantido quase intacta até à mudança de Era, segundo o recolhido pelas fontes literárias greco-latinas e dados obtidos da investigação geoarqueológica22. Como resultado, as Canárias, na passagem do II para o I milénio a.C. teriam apresentado uma situação ambiental definida por uma flora e fauna distribuídas por estratos bioclimáticos altitudinais originados no efeito fachada e no escalonamento vertical causado pelo encontro do fluxo dos ventos alísios com os relevos insulares. Este fenómeno gerou diferenças entre as ilhas devido a uma altitude desigual, pelo que se distingue entre ilhas baixas (Lanzarote e Fuerteventura), onde predominam as espécies vegetais xerófilas e mesófilas e uma fauna adaptada à aridez e aos terrenos planos, ilhas médias (Gran Canaria, La Palma, Gomera y El Hierro), onde destacam o monteverde, a laurissilva, o pinhal e a fauna variada, e ilhas altas (Tenerife) onde, além dos estratos anteriores, se desenvolve o próprio da alta montanha. Como consequência, Lanzarote e Fuerteventura apresentariam no I milénio a.C. paisagens vegetais potencialmente diferentes das atuais, caracterizadas por uma cobertura vegetal mais densa e variada, mas por motivos orográficos e climáticos não tinham a riqueza vegetal que definia o resto do arquipélago dado que a componente arbórea potencial seria mais limitada. Massas florestais abertas estender-se-iam no norte de Lanzarote e Fuerteventura apoiadas em relevos com altura suficiente para reter o mar de nuvens, aumentar o índice das precipitações, gerar solos mais evoluídos ..., características que permitem dar credibilidade às afirmações feitas por marinheiros mediterrâneos dos séculos I a.C. e I d.C. relativamente à presença de florestas nestas duas ilhas23 e colocar um ponto post quem a partir do qual se daria a destruição das paisagens vegetais, verificando-se o elevado grau de deflorestação e desertificação atingido no fim da etapa proto-histórica no século XV d.C. 22 ATOCHE (2003), ob.. cit.; CRIADO & ATOCHE (2003), ob. cit.; SANTANA (2003), ob. cit.; FERNÁNDEZ- PALACIOS, J.Mª., NOGUÉ, S., CRIADO, C., CONNOR, S., GÓIS-MARQUES, C. & NASCIMENTO, L. (2016), “Climate change and human impact in Macaronesia”, in Science Highlights: Climate Change and Cultural Evolution, 24, nº 2, pp.68-69. 23 Plínio o Velho na sua História Natural (H.N., VI) assinala os atributos geomorfológicos e paisagísticos mais destacados de Lanzarote e Fuerteventura, entre os que chama a atenção a presença, na primeira, de árvores com alturas superiores a 40 m. SANTANA, A. & ARCOS, T. (2006), “Las dos islas Hespérides atlánticas (Lanzarote y Fuerteventura, Islas Canarias, España) durante la Antigüedad: del mito a la realidad”, in Gerión, 24, nº 1, pp. 85-110. 15 3. O ecossistema de Lanzarote no fim do período proto- -histórico (século XV d.C.) A situação potencial que existia no arquipélago canário na passagem do II para o I milénio a.C. não corresponde com a distribuição que apresenta a vegetação passados mais de três milénios de presença humana nem com as paisagens naturais atuais. Ao longo do século XV d.C. a pressão antrópica intensificou-se provocando o quase total desaparecimento das formações arbóreas existentes em Lanzarote e Fuerteventura, que já estavam muito deterioradas no início do século, como foi recolhido nas crónicas francesas da conquista. Le Canarien, quando descreve Lanzarote garante que “El país es bueno y llano y carece de arbolado, salvo pequeños matorrales para quemar y una especie de árboles llamados ‘higueras’, que cubren todo el terreno de un extremo al otro, y producen una leche muy medicinal …”24 (Figura 2). Para Fuerteventura a mesma fonte mostra uma situação mais positiva quando descreve uma cobertura vegetal formada por pequenas florestas de tamargueiras, zambujeiros e palmeirais que, em zonas como a várzea do Rio Palmas, ocupavam grandes extensões. 24 PICO, B., AZNAR, E. & CORBELLA, D. (2003 [1419]), Le Canarien. Manuscritos, transcripción y traducción, Fontes Rerum Canariarum, XLI, La Laguna, Instituto de Estudios Canarios, p. 145. Fig. 2 - Planície de El Jable (Lanzarote) (Fot.: M.A. Ramírez) 3. O ecossistema de Lanzarote no fim do período proto-histórico (século XV d.C.) 16 “El terreno no está tan cubierto de grandes árboles como las islas ya citadas [las centro-occidentales], pero está lleno de arbustos que producen una leche muy medicinal a modo de bálsamo, y de muchos otros árboles que dan dátiles, olivas, almáciga y otras cosas muy extrañas.”25 No último terço do século XV a situação de Lanzarote e da sua população ficou registada na Pesquisa de Cabitos, documento que mostra uma grande precariedade económica originada nas escassas chuvas que faziam com que as colheitas fossem muito irregulares, o que provocou que a população tivesse que sobreviver da pecuária extensiva, complementada com outras atividades que incidiam sobre os recursos naturais da ilha, tais como a recolha de urzela, a caça ou a pesca26. No século a seguir a situação não melhorou, manteve-se uma cobertura vegetal raquítica que foi descrita por L. Torriani27, que diz que “… no tiene árboles, pero está llena de matorrales que dicen tabaibas …” e que Fr. J. de Abreu Galindo28 reproduz quase literalmente quando afirma que “Carece la isla de Lanzarote de árboles, que no hay sino unas matas pequeñas, que dicen tabaibas …”. Pelo contrário, Fuerteventura conserva ainda algumas amostras da sua antiga cobertura vegetal “Tiene pocas aguas y pocos árboles, con excepción de un valle agradabilísimo, lleno con palmas salvajes”29, informação que pontualizará Fr. J. de Abreu30, para quem “... hay algunos árboles, como son tarajales, acebuches y palmas ...”. Para o século XVII existe alguma informação sobre o maciço de Famara, no extremo norte de Lanzarote, recolhida numa ata do Cabildo da ilha na qual, devido às penúrias económicas da citada instituição, e perante a celebração a 12 de junho da festa do Corpus, são adotadas algumas medidas entre as quais é especialmente esclarecedora aquela que ordena que “... se hagan traer dos cargas de rama de Famara, 25 PICO et alii. (2003 [1419]), ob. cit., 141-142. 26 AZNAR, E. (1990), Pesquisa de Cabitos, Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo Insular de Gran Canaria, Col. Ínsulas de la Fortuna, I, p. 34. 27 TORRIANI, L., (1978 [c. 1592]), Descripción e Historia del Reino de las Islas Canarias antes Afortunadas, con el parecer de sus fortificaciones, Santa Cruz de Tenerife, Goya Ediciones, p. 46. 28 ABREU y GALINDO, Fr. J. de (1977 [1602]), Historia de la conquista de las siete islas de Canaria, Santa Cruz de Tenerife, Goya Ediciones, p. 58. 29 TORRIANI (1978 [c. 1592]), ob.. cit., p. 70. 30 ABREU y GALINDO (1977 [1602]), ob. cit., pp. 59-60. 17 y la más que sea necesaria, para que con ella se enrame la iglesia mayor, ...”31, texto que mostra a persistência de um reduto vegetal na zona de maior altitude da ilha, que deve ter sobrevivido até a primeira metade do século XIX, se considerarmos que em 1840 P.B. Webb y S. Berthelot32 garantiam a presença de restos de Laurissilva (loro, faia, urze,...) nos penhascos de Famara. ... confiándonos en algunos investigadores del siglo pasado (por ejemplo Webb & Berthelot, C. Bolle y A. Engler), los Riscos de Famara tenían sus vestigios de laurisilva. Son tres especies arbóreas que fueron observadas: Laurus azorica (el laurel), Myrica faya (faya) y Erica arborea (brezo); las tres especies citadas han sido exterminadas en la isla hace quizás unos cien años. Quedan algunas especies acompañantes, típicas de riscos de dicha formación ….33 31 BRUQUETAS, F. (1997), Las Actas del Cabildo de Lanzarote (siglo XVII), Arrecife, Cabildo de Lanzarote, Col. Rubicón, 5, 187, Ata nº 180, 24 de maio de 1653. 32 Por todas partes, aún en las islas más despojadas de vegetación, la existencia de los montes primitivos nos ha sido señalada por los renuevos de los árboles que han poblado antiguamente aquellas rocas desnudas. En Lanzarote, algunos renuevos de hayas y de brezos se muestran aún sobre las cimas de Chache a 1.773 pies de elevación;... BERTHELOT, S., (1995 [1880]), Árboles y bosques, La Orotava, Ed. J.A. Delgado Luis, Colección A través del Tiempo, 13, p. 45. 33 KUNKEL, G. (1982), Los Riscos de Famara (Lanzarote, Islas Canarias). Breve descripción y Guía florística, Madrid, Naturalia Hispánica, 22, Instituto Nacional para la Conservación de la Naturaleza, p. 11. Fig. 3 - Reflorestação em Riscos de Famara (Lanzarote) (Fot.: M.A. Ramírez) 18 A veracidade da informação anterior ficaria atestada pela existência em Famara de vertissolos, um tipo de solo cuja formação não é possível se não houver duas condições: um clima sub-húmido e a presença de florestas (Figura 3). Em Fuerteventura também existe a possibilidade de se ter desenvolvido algum elemento do monteverde ligado a espécies termófilas e ocupando um espaço próprio das florestas de transição e termófilas; é isto o que apontam as análises desenvolvidas por C. Machado34 sobre carvões de lares recuperados na Cueva de Villaverde (La Oliva, Fuerteventura), que correspondem a espécies da floresta termófila (loro, faia e mocano) e pinheiros datados entre os séculos III e XI d.C. A desaparição desses táxones arbóreos como fonte de lenha e a substituição por espécies arbustivas produzir-se-á a partir do século XI d.C. como consequência direta das atividades antrópicas, que agiram sobre um espaço submetido, por sua vez, ao stress climático provocado pela tendência à desertificação que acontece ao longo do Holoceno, assinalado tanto pelos dados palinológicos conhecidos para o Atlas Médio entre 3.100 B.P. e 1.320 B.P.35 como pelos estudos sedimentológicos realizados na Cueva del Llano (Fuerteventura)36. No estado atual da investigação é inegável que houve transformações substanciais nos ecossistemas das duas ilhas orientais a partir da presença humana, que têm a sua explicação na implementação da uma economia agrária. A agricultura, o pastoreio intensivo e as outras atividades domésticas desenvolvidas pelos grupos humanos fixados nessas ilhas seriam as causas principais das alterações ambientais produzidas durante a etapa proto-histórica, enquanto que depois da conquista normando-castelhana do século XV d.C. os solos das duas ilhas orientais foram submetidos a uma intensa exploração agrícola que completou a deflorestação e favoreceu o desenvolvimento de extensos fenómenos erosivos, que durante os séculos 34 MACHADO, Mª.C. (1996), “Reconstrucción paleoecológica y etnoarqueológica por medio del análisis antracológico de la Cueva de Villaverde, Fuerteventura”, in P. Ramil-Rego, C. Fernández & M. Rodríguez (Coord.), Biogeografía Pleistocena-Holocena de la Península Ibérica, pp. 261-274. MACHADO, Mª. C. (1999), “El hombre y las transformaciones del medio vegetal en el archipiélago canario durante el periodo pre-europeo: 500 a.C./1500 d.C.”, in II Congrés del Neolitic a la Península Ibérica, Saguntum- Plau, Extra 2, pp. 53-58. 35 LAMB, H.F. & KAARS, S. van der (1995), “Vegetational respoinse to Holocene climatic change: pollen and palaeolimnological data from the Middle Atlas, Morocco”, in The Holocene, 5, pp. 400-408. 36 COELLO, J.J., CASTILLO, C. & MARTÍN, E. (1999), “Stratigraphy, Chronology and Palaeoenvironmental Reconstruction of the Quaternary Sedimentary Infilling of a Volcanic Tube in Fuerteventura, Canary Islands”, in Quaternary Research, 52, pp. 360-368. 19 XVII e XVIII d.C.37 se manifestaram através de deslizamentos de encostas, colapsos e lamaçais. Na costa, a radical redução da cobertura vegetal favoreceu a ação erosiva do vento e gerou fenómenos de denudação e sedimentação; o primeiro originou o arrastamento do material fino de superfície, surgindo a fragmentação grosseira ou rocha, enquanto que o segundo originou que as areias arrastadas pelo vento (jable) cobrissem os solos já existentes (Figura 4). 4. O povoamento proto-histórico de Lanzarote: a visão bioarqueológica Localizada a 115 km. do continente africano, Lanzarote ocupa a posição mais oriental do arquipélago canário, com uma morfologia alongada em direção NE-SW e uma superfície de 846 km2, que a colocam no quarto lugar em tamanho nas ilhas 37 G. Glas na segunda metade do século XVIII ilustra de forma clara a situação da paisagem de Lanzarote, indicando que a causa dos ventos dominantes na vegetação natural é constituída apenas por algumas espécies de arbustos e plantas herbáceas, complementadas por árvores de fruto plantadas pelo homem. GLAS, G. (1976 [1764]), Descripción de las Islas Canarias 1764, La Laguna, Instituto de Estudios Canarios, Fontes Rerum Canariarum, XX, pp. 31-32. Fig. 4 - El Jable (Lanzarote) (Fot.: M.A. Ramírez) 4. O povoamento proto-histórico de Lanzarote: a visão bioarqueológica 20 que compõem as Canárias (Figura 5). De origem vulcânica, a sua estrutura geológica e dilatada evolução geomorfológica deram lugar a um relevo pouco marcado no qual só há duas formas estruturais de alguma importância: os maciços vulcânicos Mio- Pliocenos de Famara no extremo NE, com o ponto mais alto da ilha (670 metros sobre o nível do mar) e o de Los Ajaches, no SE. Entre os dois maciços há uma sucessão de manifestações vulcânicas de diferentes idades e graus de evolução, pequenas depressões e amplos espaços cobertos por areias eólicas (jables)38. A escassa altitude de Lanzarote não favorece a formação do mar de nuvens e, com ele, a chuva horizontal, fenómeno que só é possível no maciço de Famara, daí que seja a área insular melhor regada e com maiores recursos hídricos numa ilha onde as precipitações se caracterizam pela sua escassez e grande variabilidade ao longo do ano. Como consequência, o clima que predomina em Lanzarote é do tipo desértico cálido com tendência à aridez, exceto em Famara, onde se dá um tipo estépico cálido com verão seco. Estas particularidades climáticas, junto com a presença de solos pouco desenvolvidos, determinam um manto vegetal pouco abundante e menos variado do que os existentes nas ilhas centro-ocidentais39, integrado por táxones arbustivos e herbáceos de escassa altura e carácter xerófilo, com domínio potencial de uma vegetação própria do estrato infracanario árido e semiárido no qual predomina o estrato biótico 38 ROMERO, C. (1987), “Comentario al mapa geomorfológico de Lanzarote”, in Revista de Geografía de Canarias, 2, pp. 151-172. 39 REYES, J.A. (2005), La flora vascular de la isla de Lanzarote. Algunos problemas por resolver, Academia de Ciencias e Ingenierías de Lanzarote, Discursos Académicos, p. 15. Fig. 5 - Lanzarote visto de La Graciosa (Fot.: M.A. Ramírez) 21 de tabaibal-cardonal. Junto do estrato anterior há áreas com vegetação de costa e alguns pontos localizados por cima dos 500 m. de altitude onde se desenvolveu uma vegetação potencial de tipo termocanário semiárido seco integrada por palmeiras, zimbreiros e outras espécies40. A passada existência dessas potenciais condições biogeográficas, em contraste com a situação atual, confirma o desenvolvimento de notáveis transformações da paisagem ao longo do tempo, certificadas tanto através das fontes literárias como sobre o terreno a partir da investigação geoarqueológica. 40 WILDPRET, W. & ARCO, M.J. del (1987), “España Insular: las Islas Canarias”, in Vegetación de España, Universidad de Alcalá de Henares, Col. Aula Abierta, 3, pp. 515-544. ARCO, M.J. del (1989), “El origen de la flora canaria”, in Quercus, 41, pp. 14-21. Fig. 6 - Mapa de Lanzarote com a localização dos sítios arqueológicos citados no texto (Des.: A. Bueno) 22 As características ambientais descritas exerceram a sua influência nas estratégias que a população colonizadora escolheu para subsistir. Um exemplo disto foi a atividade agrícola, determinada pela insuficiência de água, pelos altos níveis de insolação e evapotranspiração do chão, pela reduzida altitude média do terreno dominado por ventos fortes e, no geral, pela baixa qualidade dos solos. Isto tudo deu origem a uma situação de equilíbrio precário entre a população e os recursos agrícolas, com secas e pragas periódicas, que contribuíram para que se adotassem condutas sociais e económicas dirigidas à provisão de excedentes garantindo a reprodução do ciclo produtivo41. Nesse processo de adaptação ao ecossistema insular, os colonizadores experimentaram fenómenos de mudança cultural que os transforma de populações continentais a populações insulares, de líbios continentais para mahos42 insulares. 4.1. Povoamento humano e ecologia insular: o processo de antropização da paisagem primigénia de Lanzarote Lanzarote é a ilha canária onde a atividade arqueológica proporcionou as séries cronostratigráficas com ocupação humana que mostram uma maior profundidade temporal, obtidas nos sítios de El Bebedero (Teguise), Buenavista (Teguise), Caldereta de Tinache (Tinajo), Los Corrales (Teguise) e Valle de Femés (Yaiza) (Figura 6)43. Também estão disponíveis as estratigrafias registadas em Zonzamas por I. Dug44, para as quais 41 Le Canarien, crónica francesa da conquista normando-castelhana do século XV, garante que em Lanzarote “... crece gran cantidad de cebada, ...” “… cebada que encontramos por aquí, que los canarios habían reservado para sembrar, ...” (PICO et alii., (2003 [1419]), ob. cit., 145 e 65). A conservação prolongada do cereal pode ser feita de várias maneiras, inclusive introduzindo-o na areia (jable) sem a necessidade de alterar previamente o grão por meio da aplicação de calor. 42 Etnónimo que recebiam as populações proto-históricas de Lanzarote e Fuerteventura em tempos da conquista normando-castelhana do século XV. 43 L. Zöller e colaboradores mostraram diferentes perfis geológicos em Lanzarote, encontrando na população de Guatiza restos ósseos de ovinos e caprinos, que, apesar de não se terem podido datá-los por C14, a posição estratigráfica que ocupavam atribuía-lhes uma cronologia superior aos 5.000 anos. Se se confirmar esta datação teria que se recuar o início da colonização da ilha em, pelo menos, dois mil anos relativamente as datações facultadas até agora por sítios arqueológicos. ZÖLLER et alii. (2003), ob. cit., 1, pp. 7 e 21. 44 DUG, I., (1974), “Excavaciones en el poblado prehispánico de Zonzamas”, in El Museo Canario, XXXIII-XXXIV (1972-1973), pp. 117-123. DUG, I., (1976), “Excavaciones en el poblado prehispánico de Zonzamas (Isla de Lanzarote)”, in Noticiario Arqueológico Hispánico, Prehistoria, 5, pp. 319-324. DUG, I., (1977), “El poblado prehispánico de Zonzamas (Lanzarote)”, in El Museo Canario, XXXVI-XXXVII (1975- 1976), pp. 191-194. DUG, I., (1988), “Avance de los trabajos en el poblado prehispánico de Zonzamas 4.1. Povoamento humano e ecologia insular: o processo de antropização da paisagem primigénia de Lanzarote 23 não existe nenhuma referência cronométrica publicada45. Em todos os casos são sítios ao ar livre, três deles assentamentos localizados no interior de caldeiras ou depressões de origem vulcânica caracterizadas pela presença de potentes solos sedimentários e pela formação sazonal de depósitos de água procedente da chuva (maretas)46, duas características fisiográficas que fizeram destes lugares espaços ecológicos propícios para o povoamento dos primeiros grupos humanos que chegaram à ilha e que obtinham da pecuária e da agricultura os seus principais recursos de subststência. Durante a proto-história, a área central de Lanzarote constituiu a unidade territorial natural de exploração, ao permitir uma fácil comunicação entre a costa norte e a costa sul e entre Malpaís de la Corona e as planícies meridionais, ao mesmo tempo que possuía vários ecossistemas que favoreceram um alto grau de autossuficiência económica baseada numa agricultura cerealífera de sequeiro (trigo e cevada), no pastoreio de cabras e ovelhas47, na criação de porcos48, na caça, na pesca e na colheita de produtos terrestres e marinhos. (Lanzarote)”, in Investigaciones Arqueológicas en Canarias, I, pp. 51-58. DUG, I., (1990), “Arqueología del Complejo Arqueológico de Zonzamas. Isla de Lanzarote”, in Investigaciones Arqueológicas en Canarias, II, pp. 47-67. 45 Trabalhos arqueológicos posteriores sobre alguns dos cortes abertos nos anos 70 por I. Dug apresentaram uma primeira referência cronológica, provavelmente proveniente de análises C14, dado que não se indicam os parâmetros contextuais. MARTÍN, D., TEJERA, A., CAMALICH, Mª.D., GONZÁLEZ, P., GOÑI, A. & CHÁVEZ, E. (2000), “Los trabajos de intervención arqueológica y patrimonial en el poblado de Zonzamas”, in IX Jornadas de Estudios sobre Fuerteventura y Lanzarote, I, pp. 445-467. Mais recentemente, durante a campanha de escavações de 2015, que supôs a abertura de sondagens aleatórias com resultados que não permitiram delimitar a sequência estratigráfica nem a evolução cultural do sítio, houve um achado de um conjunto de restos ósseos humanos num nível de preenchimento afetado por remoções postdeposicionais, os quais foram datados por C14 entre os séculos VII e VIII d.C. SANTANA, J.A., MORENO, M.A., SUÁREZ, I., MENDOZA, F. & ALBERTO, V. (2017), “Zonzamas: un yacimiento singular en la isla de Lanzarote. Nuevos datos arqueológicos”, in XXII Coloquio de Historia Canario-Americana, XXII-135, pp. 1-18. 46 A água foi tradicionalmente um recurso muito escasso em Lanzarote, ilha onde as poucas fontes não proporcionam um fluxo abundante nem regular, com épocas no ano em que estão secas, circunstância que aumentava a importância das maretas como recetáculos temporais/sazonais de água da chuva. 47 FERRANDO, A., MANUNZA, A., JORDANA, J., CAPOTE, J., PONS, A., PAIS, J., DELGADO, T., ATOCHE, P., CABRERA, B., MARTÍNEZ, A., LANDI, V., DELGADO, J.V., ARGÜELLO, A., VIDAL, O., LALUEZA- FOX, C., RAMÍREZ, O. & AMILLS, M. (2015), “A mitochondrial analysis reveals distinct founder effect signatures in Canarian and Balearic goats”, in Animal Genetics, Immunogenetics, Molecular Genetics and Functional Genomics, Short Communication, Stichting International Foundation for Animal Genetics. 48 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., CAPOTE, J.F. y RAMÍREZ, O. (2018), “Propuesta de origen para el cerdo protohistórico canario a partir del ADNmt de especímenes procedentes de yacimientos arqueológicos de Lanzarote”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 65 (065-030), pp. 1-14. OLALDE, I., CAPOTE, J.F., ARCO, Mª.C. del, ATOCHE, P., DELGADO, T., GONZÁLEZ-ANTÓN, R., PAIS, J., AMILLS, M., LALUEZA-FOX, C. & RAMÍREZ, O. (2015), “Ancient DNA sheds light on the ancestry of pre-hispanic Canarian pigs”, in Genetics Selection Evolution, pp. 47-40. 24 Nos sítios arqueológicos indicados realizámos trabalhos arqueológicos ao longo das três últimas décadas49 que mostraram diferentes sequências estratigráficas com notáveis similitudes entre si a nível morfogenético e nos conteúdos arqueológicos, providenciando abundante informação relativa aos processos de constituição e destruição dos paleossolos de Lanzarote. Estes dados geoarqueológicos, contextualizados nas amplas séries de datações C14 disponíveis (Figura 7), garantem uma correta aproximação aos processos de transformação ambiental e de mudança cultural associados à comunidade humana estabelecida em Lanzarote durante a Proto-história insular. Os perfis estratigráficos exumados dos sítios de El Bebedero50, Caldereta de Tinache51, Buenavista52 e Valle de Femés53 permitem traçar um perfil combinado ideal que integre de maneira diacrónica as características dos quatro perfis exumados nos 49 Em El Bebedero durante os anos de 1985, 1987, 1990, 2010, 2011 e 2012; em Caldereta de Tinache nos anos de 2005 e 2010; em Buenavista durante os anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019; em Cueva del Majo no ano de 2011; em Los Corrales durante os anos de 2012 e 2013. 50 ATOCHE, P. & RODRÍGUEZ, Mª.D. (1988), “Excavaciones arqueológicas en ‘El Bebedero’ (Teguise, Lanzarote). Primera campaña, 1985. Nota preliminar”, in Investigaciones Arqueológicas en Canarias, I, pp. 33-38. ATOCHE, P., RODRÍGUEZ, Mª.D. & RAMÍREZ, Mª.A. (1989), El yacimiento arqueológico de ‘El Bebedero’ (Teguise, Lanzarote). Resultados de la primera campaña de excavaciones, Madrid, Secretariado de Publicaciones de la Universidad de La Laguna/Ayuntamiento de Teguise. ATOCHE, P. (1993), “Excavaciones arqueológicas en ‘El Bebedero’ (Teguise, Lanzarote). Segunda campaña, 1987”, in Eres (Arqueología), 4 (1), pp. 7-19. ATOCHE, P., PAZ, J.A., RAMÍREZ, Mª.A. & ORTIZ, Mª.E. (1995), Evidencias arqueológicas del mundo romano en Lanzarote (Islas Canarias), Arrecife, Cabildo Insular, Col. Rubicón, 3. ATOCHE, P. & PAZ, J.A. (1996), “Presencia romana en Lanzarote. Islas Canarias”, in Sixième Colloque Eurafricain du CIRSS, Chinguetti (Mauritanie), octobre 1995, La Nouvelle Revue Anthropologique (juillet, 1996), Paris, Institut International d’Anthropologie, pp. 221-257. ATOCHE, P. (1997), “Resultados preliminares de la tercera campaña de excavaciones arqueológicas en ‘El Bebedero’ (Teguise, Lanzarote). 1990”, in Vegueta, 2, pp. 29-44. 51 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., PÉREZ, S. & TORRES, J.D. (2007), “Primera campaña de excavaciones arqueológicas en el yacimiento de la Caldereta de Tinache (Tinajo, Lanzarote)”, in Canarias Arqueológica, 15, pp. 13-46. 52 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., TORRES, J.D. & PÉREZ, S. (2009), “Excavaciones arqueológicas en el yacimiento de Buenavista (Tiagua, Lanzarote): primera campaña, 2006”, in Canarias Arqueológica (Arqueología/Bioantropología), 17, pp. 9-51. ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., PÉREZ, S. & TORRES, J.D. (2010), “Segunda campaña de excavaciones arqueológicas en el yacimiento de Buenavista (Tiagua, Lanzarote): Resultados preliminares”, in Canarias Arqueológica (Arqueología/Bioantropología), 18, pp. 1-55. ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2011), “Nuevas dataciones radiocarbónicas para la Protohistoria canaria: el yacimiento de Buenavista (Lanzarote)”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 57, pp. 139-170. ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2019), “El yacimiento de Buenavista, un asentamiento fenicio-púnico en Lanzarote (Islas Canarias) (circa 960-360 a.n.e.)”, in A. Ferjaoui & T. Resissi (Eds.), La Vie, la Mort et la Religion dans l’Univers Phénicien et Punique, Actes du VIIéme Congrès International des Études Phéniciennes et Puniques (Hammamet, pp. 9-14. novembre 2009), Vol. I (Présence phénicienne et punique en Méditerranée, urbanisme, architecture), pp. 365-380. Tunis, République Tunisienne, Ministère des Affaires Culturelles, Institut National du Patrimoine. 53 CRIADO & ATOCHE (2003), ob. cit. 25 citados sítios, obtendo-se assim uma ampla sequência cronostratigráfica composta por oito unidades diferenciadas tanto a nível morfogenético como pelo conteúdo arqueológico, mostrando como foi o processo de transformação da paisagem insular e qual foi a relação que teve com as mudanças culturais experimentadas pelo grupo humano. Fig. 7 - Gráfico de probabilidades das datas C14 obtidas em contextos proto-históricos de Lanzarote54 O nosso perfil estratigráfico combinado baseia-se numa crosta calcária formada sobre a rocha vulcânica, que é estéril do ponto de vista arqueológico. Sobre esta base encontra-se o estrato VI, um potente nível natural de sedimentos incrustrados que compõem um solo de textura argilosa e cor castanha com inclusões de carbonatos de cor branca; como o anterior, é estéril do ponto de vista arqueológico. Em seguida encontra-se o estrato V, composto por um solo castanho vertissolo de desenvolvimento estável e homogéneo, de textura argilosa, que no fim do seu desenvolvimento apresenta um depósito de rochas de tamanho pequeno e médio, reflexo de um episódio erosivo datado na mudança de Era (séculos I a.C.-I d.C.), que marca o fim dessa unidade estratigráfica coincidindo com o início da exploração 54 ATOCHE & RAMÍREZ (2017), ob. cit. 26 intensiva dos recursos terrestres da ilha, num momento histórico marcado pela presença no arquipélago de navegadores romanos e/ou romanizados. Este estrato incorpora os primeiros achados arqueológicos relacionados com a presença humana na Ilha, constituídos por recipientes cerâmicos modelados à mão, de produção local, no geral sem decoração, junto com fragmentos de recipientes modelados na roda, em alguns casos pertencentes a ânforas púnicas e o segmento de uma pequena figura de terracota moldada (Figura 8); registam-se, também, fragmentos de artefactos Fig. 8 - Formas cerâmicas associadas à unidade estratigráfica V (Des.: A. Ramírez) 27 metálicos elaborados em cobre, bronze e ferro, missangas de massa de vidro, … A indústria lítica polida está representada por diferentes tipos de artefactos (tampas para recipientes cerâmicos de arenito vulcânico, polidores de basalto, moinhos circulares, estelas com formas quadrangulares irregulares esporadicamente com representações gravadas, …) e a fauna doméstica é constituída por ovelha (Ovis aries), cabra (Capra hircus), porco (Sus scrofa porcus) e cão (Canis familiaris), espécies às quais estão associados restos de peixes, moluscos marinhos, crustáceos,…, duas espécies de micromamíferos, em concreto o musaranho endémico (Crocidura canariensis) e o rato fóssil (Malpaisomys insularis), e várias espécies de aves (Tyto alba, Tyto sp., Columba sp., Turdus sp. y Anthus berthelotti). Do ambiente vegetal foram identificados, através da análise de colunas polínicas55, diferentes táxones arbóreos (Alnus, Cedrus, Fraxinus, Juniperus, Myrica, Pinus, Quercus caducifoli y Quercus perennifoli), arbustivos (Rosaceae) e herbáceos (Artemisia, Asteraceae equinadas, Asteraceae fenestradas, Gramíneas cerealíferas, Gramíneas herbáceas, Polygonum, Chenopodiodeae, Esporo Briófito, Esporo feto monolético, Esporo feto trilético, Esporo fungo, Quistes algales, Glomales,…), que, no conjunto, mostram a presença de uma paisagem vegetal muito diferente da atual, em especial pelo que diz respeito ao número de espécies arbóreas. A próxima unidade estratigráfica, o estrato IV, é o resultado da atividade antrópica e apresenta um aspeto muito compacto, cor castanha amarelada e textura franco-limosa. Os limites cronológicos estão entre a mudança de Era (séculos I a.C.-I d.C.) e o início do século VI d.C., incorporando um contexto material caracterizado pela presença de amplos recipientes cerâmicos modelados à mão, de produção local, com massas de pouca qualidade, sem ornamentos, paredes baixas, bases planas, diâmetros amplos e formas de tendência cilíndrica, troncocónica invertida, ... (Figura 9); há contas de colar feitas sobre conchas de moluscos marinhos ou ossos de caprinos, moinhos de mão circulares giratórios e diferentes elementos de importação de origem cultural romana (ânforas de vinho ou de azeite, cerâmica comum, almofarizes, artefactos metálicos de cobre, bronze e ferro ou contas de colar de massa de vidro e alabastro). As espécies domésticas identificadas são as mesmas que no estrato anterior, verificando-se a presença de cereal doméstico 55 As análises polínicas foram feitas por Jordina Belmonte (Laboratório de Análisis Palinológicos-Red Aerobiológica de Catalunha. Universidade Autónoma de Barcelona) e Lea de Nascimento (Grupo de Biogeografía y Ecología Insular. Universidade de La Laguna). 28 (cevada e trigo) e possivelmente favas. A fauna selvagem está representada por algumas espécies de aves (Corvus corax e Buteo buteo), sendo significativa a presença da ratazana (Rattus cf. Rattus), espécie invasora provavelmente introduzida56 pelas naus que desde o período cultural romano frequentaram as 56 O rato negro foi introduzido pelo homem nas ilhas mediterrâneas entre os séculos IV e II a.C., provocando mudanças percetíveis na ocupação de certas espécies de pássaros e outras espécies pequenas sensíveis à predação dos ratos, limitando as suas zonas de reprodução a lugares inacessíveis. Fig. 9 - Formas cerâmicas associadas à unidade estratigráfica IV (Des.: A. Ramírez) 29 águas canárias durante vários séculos57. O ambiente vegetal era composto por táxones arbóreos (Alnus, Cedrus, Olea, Pinus, Quercus caducifoli e, quiçá, Quercus perennifoli), arbustivos (Cistus e Ericaceae) e herbáceos (Artemísia, Asteraceae equinadas, Asteraceae fenestradas, Fabaceae, Gramíneas herbáceas, Plantago, Chenopodiodeae, Esporo Briófito, Esporo feto monolético, Esporo feto trilético, Esporo fungo, Quistes algales, Glomales,…), que, no conjunto, são indicativos da continuidade relativamente à paisagem vegetal documentada no estrato anterior, apesar de se verificar uma redução na variedade e intensidade com que aparecem os táxones arbóreos e arbustivos. A unidade estratigráfica III, como a anterior, também é resultado da atividade antrópica; de cor castanha muito clara e textura franco-limosa, com presença de rochas de diferentes tamanhos que em algumas zonas cobrem o chão, dando à unidade o aspeto pedregoso típico de um processo de desmantelamento por erosão dos solos pré-existentes nas encostas próximas. Os seus limites cronológicos vão desde o século VI d.C. até ao século XV d.C., caracterizando-se por uns registos arqueológicos nos quais estão presentes alguns elementos novos, mesmo que em conjunto não suponham um corte com a tradição tecnológica e cultural local observada nos estratos V e IV. É o caso dos recipientes de cerâmica modelados à mão, entre os quais permanecem os vasos sem decoração, embora se tornem característicos os vasos com paredes finas ou medianamente espessas e superfícies decoradas com motivos geométricos elaborados com incisões, impressões ou relevos (Figura 10). Não há artefactos de importação, e a carência de objetos metálicos é compensada com um notável desenvolvimento das técnicas de talha de artefactos líticos em rochas vulcânicas58, elementos que se juntam a um importante conjunto 57 ATOCHE et alii. (1995), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1996), ob. cit.; ATOCHE, P. & PAZ, J.A. (1999), “Canarias y la costa Atlántica del N.O. africano: difusión de la cultura romana”, in II Congreso de Arqueología Peninsular (Zamora, 1996), IV, pp. 365-375. ATOCHE, P. (2006), “Canarias en la Fase Romana (circa s. I a.n.e. al s. III d.n.e.): los hallazgos arqueológicos”, in Almogaren, XXXVII, pp. 85-117. ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2011), “El archipiélago canario en el horizonte fenicio- púnico y romano del Círculo del Estrecho (circa siglo X ANE al siglo IV DNE)”, in J.C. Domínguez (Ed. Cient.), Gadir y el Círculo del Estrecho revisados. Propuestas de la arqueología desde un enfoque social, Universidad de Cádiz, Monografías Historia y Arte, pp. 229-256. ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2017), “Gentes del ámbito cultural romano en la Protohistoria de Canarias”, in G. Santana & L.M. Pino (Eds.), ȆĮȚįİȓĮ țĮ੿ ȗȒIJȘıȚȢ, Homenaje a Marcos Martínez, Madrid, Ediciones Clásicas, pp. 131-140. 58 MARTÍN, J., ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2000), “Consideraciones en torno al proceso de producción lítica en El Bebedero (Teguise, isla de Lanzarote). La campaña de 1987”, in Eres (Arqueología), 9 (1), pp. 141-178. 30 de peças líticas polidas (brunidores, moinhos de mão giratórios circulares ou lineares, tampas de arenito com forma circular, estelas decoradas,…), compondo uma cultura material que foi o resultado final de um dilatado processo de adaptação tecnológica aos limitados recursos insulares e ao desenvolvimento de um novo quadro social e de subsistência favorecido pela ausência de contactos externos. No fim do desenvolvimento do estrato III, num momento datado no século XIV d.C., regista-se o aparecimento de cerâmicas modeladas na roda com superfícies vidradas dos tipos que são fabricados no sul da península ibérica e no norte de África no fim da baixa Idade Média. Esta unidade estratigráfica contém restos das mesmas espécies de animais domésticos identificados nos dois estratos anteriores, mantém- se a presença de cereal, mas só se identificou a cevada, desconhece-se se se perdeu e/ou abandonou o cultivo do trigo ou se estamos perante silêncio arqueológico. No ambiente vegetal identificam-se táxones arbóreos (Arecaceae, Cedrus, Juniperus, Pinus e Quercus perennifoli), arbustivos (Cistus e Rosaceae) e herbáceos (Asteraceae Fig. 10 - Formas cerâmicas associadas à unidade estratigráfica III (Des.: A. Ramírez) 31 equinadas, Asteraceae fenestradas, Gramíneas herbáceas, Chenopodiodeae, Esporo Briófito, Esporo feto monolético, Esporo fungo,…), que em conjunto refletem o agravamento do processo de deterioração da cobertura vegetal iniciado no estrato IV. O perfil combinado completa-se com os estratos II, I e Superficial, unidades que, em conjunto, formam um solo agrícola artificial (enarenado) que foi implantado em Lanzarote a partir da década dos anos 40’ do passado século XX. Os registos arqueológicos que proporcionam são o resultado da mistura de artefactos proto- históricos tardios e históricos, os últimos bem documentados no sítio arqueológico de Los Corrales. Os caracteres morfogenéticos da sequência cronostratigráfica descrita proporcionam alguns indícios e várias certezas relativamente à transformação ambiental que sofreu Lanzarote depois do início da colonização humana, que não ocorreu de maneira uniforme e contínua, e pelo menos três fases sucessivas puderam ser diferenciadas. A primeira fase iria desde que começou a chegada humana, em torno do século X a.C. até ao fim do I milénio a.C., identificando-se com a unidade estratigráfica V. Nela, são percetíveis os primeiros efeitos das atividades humanas na ilha, embora não cheguem a produzir-se transformações substanciais na paisagem original, dado que se mantém uma cobertura vegetal capaz de travar a erosão pluvial e de enxurradas. A segunda fase iria desde o século I a.C. até ao século VI d.C. e corresponde com a unidade estratigráfica IV, caracterizada por mostrar uma intensa atividade erosiva que desmantelou os solos que cobriam as encostas depositando-os em zonas baixas e deteriorou a cobertura vegetal. A mudança produzida na dinâmica ecológica teve uma origem antrópica, devido à atividade pecuária intensiva que submeteu o território insular ao sobrepastoreio de cabras e ovelhas59, fenómeno que evidenciaram dois factos arqueológicos. Por um lado, a presença de numerosos depósitos de restos ósseos de ovinos e caprinos em lugares concretos como resultado do seu sacrifício sistemático quando os animais respondiam a parâmetros 59 A introdução de ovinos e caprinos nos espaços insulares dá origem a profundas mudanças na estrutura e composição da biodiversidade insular, com drásticas reduções na distribuição e frequência das plantas endémicas, a extinção de espécies vegetais e animais, a intensificação da erosão... COBLENTZ, B.E. (1978), “The effects of feral goats (Capra hircus) on island ecosystems, Biological Conserver, 13, pp. 279- 286. 32 determinados de sexo e idade; funcionalmente esses lugares respondem a pequenas indústrias estacionais onde foram elaborados produtos derivados do gado (carne, couro, ...). O segundo facto arqueológico está constituído pelo achado de artefactos importados que assinalam a presença de navegadores procedentes de ambientes culturais romanizados do Mediterrâneo ocidental, além do tipo de processos de produção que devem ter promovido na ilha, similares aos descritos para os contextos das indústrias romanas da próxima costa africana entre os séculos II-I a.C. e IV d.C.60. A terceira fase no processo de transformação da paisagem insular começaria no século VI d.C. acabando no século XV d.C., coincide com a unidade estratigráfica III e a interrupção dos contactos com navegadores externos com o consequente isolamento da população insular. A transformação da paisagem insular era um facto irreversível, com a destruição quase total dos solos que cobriam as encostas e a perda de importantes massas vegetais; o cardonal-tabaibal do piso basal estendeu-se a zonas até então ocupadas por bosques e matagais integrados por espécies da floresta termófila, formação que ficará restringida a áreas marginais, como as encostas de Famara. O isolamento externo que caracteriza esta última etapa favoreceu o início, por parte da população insular, de uma mudança cultural responsável, entre outros aspetos, da implantação de uma estrutura social mais complexa, do abandono das indústrias agrárias, da concentração da população em núcleos urbanos ou, a nível tecnológico, da aparição de produções cerâmicas decoradas com complexos motivos de claro significado social e da recuperação de antigas tecnologias de talha para a elaboração de artefactos líticos de corte; ficando consolidado um processo de autodefinição cultural e social no qual é possível observar sobrevivências do antigo intercâmbio entre os indígenas insulares e os navegadores estrangeiros e total adaptação dos canários proto-históricos ao ecossistema insular. O grupo humano que habita Lanzarote adquire a fisionomia cultural que será observada e descrita pelos cronistas da conquista da Baixa Idade Média no século XV d.C. 60 PONSICH, M. (1988), Aceite de oliva y salazones de pescado. Factores geo-económicos de Bética y Tingitana, Universidad Complutense de Madrid. LÓPEZ PARDO, F. & MEDEROS, A. (2008), La factoría fenicia de la isla de Mogador y los pueblos del Atlas, Canarias Arqueológica, Monografías, 3, Museo Arqueológico de Tenerife-OAMC. 33 4.2. Povoamento humano e mudança cultural: de líbios continentais a mahos insulares A proximidade do continente africano e a existência de assentamentos humanos datados ao longo do I milénio a.C.61 que contêm artefactos importados procedentes das culturas fenício-púnica e romana, conferem à ilha de Lanzarote um papel destacado na explicação do processo que deu origem à descoberta do arquipélago, ao início da sua colonização e à definitiva fixação da população humana. Essa profundidade cronológica proporciona, também, uma adequada margem temporal para poder explicar a aparição de determinados caracteres bioantropológicos específicos da população proto-histórica canária, que a nível genético parece concretizar-se na presença de um haplótipo característico, talvez efeito da adaptação biológica dos colonizadores às novas condições impostas pela insularidade62. No plano cultural também se produziu a aparição de inovadores caracteres que alteraram o sistema cultural importado pelos colonizadores, próprio das populações da etapa Bronze final-início do Ferro que ocupavam o Círculo do Estreito, na passagem do II para o I milénio a.C.63, num fenómeno que se estende no tempo e que agirá quer protegendo os elementos que melhor se adaptavam às condições e à disponibilidade de recursos imposta pela biogeografia insular, como reunindo paulatinamente novos aspetos surgidos da necessidade de adaptação a 61 ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2017), “C14 references and cultural sequence in the Proto-history of Lanzarote (Canary Islands)”, in J.A. Barceló, I. Bogdanovic & B. Morell (Eds.), IberCrono. Cronometrías para la Historia de la Península Ibérica, Actas del Congreso de Cronometrías para la Historia de la Península Ibérica (IberCrono 2017), CEUR-WS, Vol-2024, pp. 272-285. 62 ARNAIZ-VILLENA, A., MUÑIZ, E., CAMPOS, C., GÓMEZ-CASADO, E., TOMASI, S., MARTÍNEZ- QUILES, N., MARTÍN-VILLA & PALACIO-GRUBER, M.J. (2015), “Origin of Ancient Canary Islanders (Guanches): presence of Atlantic/Iberian HLA and Y chromosome genes and Ancient Iberian language”, International Journal of Modern Anthropology, 8, pp. 67-93. 63 Entre as obras clássicas de síntese que podem ser consultadas relativamente a Idade de Bronze e a Proto-história do Mediterrâneo ocidental e norte de África encontram-se: CAMPS, G. (1980), Les Berbères. Mémoire et identité, Paris, Editions Errance. PHILLIPSON, D.W. (1993), African Archaeology, Cambridge World Archaeology, Cambridge University Press. FERNÁNDEZ, V.M. (1996), Arqueología prehistórica de África, Historia Universal, 9 (Prehistoria), Madrid, Editorial Síntesis. CASTRO, P.V., LULL, V. & MICÓ, R. (1996), Cronología de la Prehistoria Reciente de la Península Ibérica y Baleares (c. 2800- 900 cal. ANE), BAR Internacional Series, 652, Oxford. ALMAGRO, M., ARTEAGA, O., BLECH, M., RUIZ MATA, D. & SCHUBART, H. (2001), Protohistoria de la Península Ibérica, Barcelona, Ariel Prehistoria. RUIZ-GÁLVEZ, Mª.L. (2001), La Edad del Bronce, ¿Primera Edad de Oro de España? Sociedad, economía e ideología, Barcelona, Crítica Arqueología. HARDING, A.F. (2003), Sociedades europeas en la Edad del Bronce, Barcelona, Ariel Prehistoria. 4.2. Povoamento humano e mudança cultural: de líbios continentais a mahos insulares 34 um espaço reduzido em superfície e escasso em recursos. Depois desse processo de ajustamento e adaptação, a situação resolveu-se com uma mudança de identidade cultural das populações colonizadoras64 que, no caso de Lanzarote, passaram de líbios continentais a mahos insulares. A distância reativa do Mediterrâneo ocidental que deve ter dado origem à descoberta e posterior colonização do arquipélago canário, obrigaria os colonos a crescerem num relativo isolamento cultural, confrontados com a escassez de recursos e de matérias primas, pondo em movimento sistemas culturais caracterizados por um estágio tecnológico que chamamos de Neolítico forçado65 sendo obrigados a reorientar certas esferas culturais, como o subsistema tecnológico ou o subsistema económico, a tal ponto que durante a Proto-história de Lanzarote é possível delimitar pelo menos dois modelos de sobrevivência; um inicial, caracterizado pela dependência externa e o intercâmbio desigual, que duraria aproximadamente entre o povoamento humano no século X a.C. até ao século V d.C., e outro posterior, autárquico, baseado numa economia agrária de amplo espectro, que perdurará até o século XV d.C. quando chegaram os conquistadores normando-castelhanos baixo-medievais e a ilha entrou plenamente na História; este último modelo corresponde ao que tradicionalmente se denomina Cultura dos mahos66. Ao longo desse processo de mudança cultural é possível distinguir diferentes etapas e fases históricas (Quadro nº 1) com base quer nas análise das variações produzidas nos processos económicos quer nos tipos e funções dos artefactos quotidianos que permitiram que uma população de origem africana continental ocupasse e explorasse um território atlântico insular67. 64 A mudança cultural gerou a aparição de caracteres particulares que marcaram diferenças entre as ilhas do arquipélago, permitindo a aparição do que chamámos ‘endemismos culturais’ ATOCHE (2008), ob. cit., p. 335, seguindo um processo cultural semelhante ao ‘modelo de mudança local’ proposto para a colonização das ilhas do Pacífico (TERRELL, J. (1986), Prehistory in the Pacific Islands, Cambridge University Press). 65 ATOCHE, P., MARTÍN, J. & RAMÍREZ, Mª.A. (1997), “Elementos fenicio-púnicos en la religión de los mahos. Estudio de una placa procedente de Zonzamas (Teguise, Lanzarote)”, in Eres (Arqueología), 7, Museo Arqueológico de Tenerife, pp. 7-38. 66 CABRERA, J.C., (1989), Los Majos. Población prehistórica de Lanzarote, Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo Insular de Lanzarote, Colección Rubicón, 1. 67 ATOCHE, P. (2009), “Estratigrafías, cronologías absolutas y periodización cultural de la Protohistoria de Lanzarote”, in Zephyrus, LXIII (enero-junio), pp. 105-134. 35 4.2.1. Etapa da descoberta, colonização e fixação: a fase fenício-púnica Após o estabelecimento dos primeiros humanos, num período datado pelo C14 na passagem do II para o I milénio a.C., em Lanzarote inicia-se uma fase cultural ca- racterizada por uma limitada ocupação do território insular através da implantação de pequenos assentamentos em zonas que dispõem de elevados recursos agrários e um excelente domínio visual do espaço à volta. As características ecológicas da ilha Pluvialia68 e o modelo económico agrícola/pastoril da população que realizou a co- lonização, determinaram a escolha de locais preferencialmente em zonas de pouca altitude (entre os 100 e os 300 metros sobre o nível do mar), próximas ou direta- mente em solos mais férteis (suelos bermejos), condicionantes que se davam sobre tudo na área central e norte-ocidental da ilha, em espaços onde, com o passar do tempo, se vão formando núcleos po- pulacionais de maior expressão. Nes- tes lugares levantaram-se inicialmente pequenas estruturas habitacionais de planta quadrangular, escavadas abaixo do nível do chão exterior, do tipo da estrutura Es1 exumada do sítio de Buenavista (Teguise) (Figura 11), uma técnica de construção que se mante- rá e que é conhecida como ‘casa hon- da’ (casa funda)69. O contexto material associado a estas construções assinala o desenvolvimento de atividades do- mésticas de produção, transformação e armazenagem de alimentos e outros 68 Primeiro nesónimo provavelmente referido a Lanzarote do qual se tem notícia, com origem na tradição tartéssio-fenícia de carácter oral e anónima recolhida por Plutarco (História de Sertorio), SANTANA et alii., (2002), ob. cit. As diferentes denominações das ilhas Canárias são exemplos claros do que M. Martínez denominou ‘polinimia’ ou ‘sinonimia’ que consistem em que uma mesma ilha recebe ao longo da sua história diferentes denominações sucessivas ou simultâneas MARTÍNEZ (2010), ob. cit., p. 143. 69 Estruturas habitacionais soterradas contruídas com muros de pedra seca e acesso orientado a sotavento, destinadas a obter proteção frente aos intensos e contínuos ventos dominantes. Fig. 11 - Vista zenital da estrutura Es1. Buenavista (Teguise) (Fot.: P. Atoche) 4.2.1. Etapa da descoberta, colonização e fixação: a fase fenício-púnica 36 produtos derivados de atividades agrárias, com um enxoval composto por recipien- tes cerâmicos modelados à mão, de produção local, grande capacidade e formas de tendência cilíndrica ou troncónica com base plana e pequenos apêndices, de média ou pequena capacidade e formas de tendência calota esférica, semiesférica com gar- galo, esférica, semioval com apêndices e base plana, além de micro-recipientes com formas de tendência calota esférica, semiesférico, esférico ou ovoide. No geral esses vasos não foram ornamentados aparecendo apenas algum desenho realizado com traços curtos gravados ou impressos transversais à borda. Também foram elaboradas estelas líticas com motivos gravados, um tipo de objeto que terá uma grande pre- sença em etapas posteriores70. Junto destes artefactos de produção local, registam- -se outros importados, representados por fragmentos de ânforas ou uma pequena figura de terracota moldada e vários objetos elaborados em metal, cobre, bronze ou ferro, todos eles procedentes do contacto da população insular com os navegadores fenício-púnicos71, que deixaram outras marcas da sua presença na praia dos Pozos (Rubicón), ponto de paragem marítima no sul de Lanzarote, onde era possível fazer aguada porque havia uma cisterna (Poço da Cruz), que era protegida por uma re- presentação da deusa Tanit (Figura 12)72. As últimas evidências materiais ficariam contextualizadas pela assiduidade de navegadores púnicos no Atlântico, no sul de Sala, no quadro de uma política comercial orientada para a obtenção de elementos exóticos de alto valor, como o marfim, a madeira de cidreira, púrpura, ovos de aves- truz ou couro de ovinos e caprinos73. O abandono de Mogador por volta de 525-519 70 Nessa fase chegaria às ilhas a chamada escrita líbico-berbere, fato para o qual foi proposta uma cronologia do século VI a.C. FARRUJIA, A.J., PICHLER, W., RODRIGUE, A. & GARCÍA, S. (2010), “The Libyco-Berber and Latino-Canarian Scripts and the Colonization of the Canary Islands”, in African Archaeological Review, March 2010, p. 13. 71 A. Mederos garante que, em Mogador, para o século IV a.C. e a primeira metade do século III a.C. “... el único dato cerámico que podría sugerir algún tipo de frecuentación cartaginesa es la mínima presencia del ánfora Mañá D1a o 4.2.1.5 con cronología entre el 400/375-250 a.C. con posibles ejemplares en Emsá, Zilil y Buenavista (Lanzarote), …”. MEDEROS, A. (2018), “Marruecos entre los siglos VI-II a.C. Sustrato fenicio, interacción comercial con Gadir y presencia cartaginesa durante los Bárcidas”, in A. Chiara Fariselli e R. Secci, Cartagine fuori da Cartagine: Mobilità nordafricana nel Mediterraneo centro-occidentale fra VIII e II sec. a.C., Atti del Congresso Internazionale (Ravenna, 30 Novembre-1 Dicembre 2017), BYRSA, 33-34, 223-291, p. 279. 72 ATOCHE, P., MARTÍN, J., RAMÍREZ, Mª.A., GONZÁLEZ, R., ARCO, Mª.C. DEL, SANTANA, A. & MENDIETA, C. (1999), “Pozos con cámara de factura antigua en Rubicón (Lanzarote)”, in VIII Jornadas de Estudios sobre Lanzarote y Fuerteventura (Arrecife, 1997), II, pp. 365-419. 73 “Dos dataciones de la fase II-1 en el yacimiento de Buenavista (Lanzarote), 358 (200 AC) 117 DC y 355 (195-173) 49 AC, sugieren que esta proyección cartaginesa durante la Segunda Guerra Púnica no tuvo su límite en Mogador, para poder acceder a zonas más meridionales, donde se obtenía la Stramonita haemastoma para la púrpura.” MEDEROS (2018), ob. cit., p. 280. 37 a.C. coincide com as datações obtidas no interior da estrutura Es1 de Buenavista, da segunda metade do século VI a.C., circunstância que permite conjeturar que a presença púnica em Lanzarote pode ter-se dado tanto por ter pontos de ancoragem mais seguros e com melhores possibilidades de abastecimento das naus do que no ilhéu de Mogador, como porque “... el área prioritaria de interés se había ampliado hacia la costa del Sur de Marruecos, probablemente vinculado al comercio del oro”74. 4.2.2. Etapa de descoberta, colonização e fixação: a fase romana A presença de navegadores de origem mediterrânea em Invale75 manteve-se entre os séculos II a.C. e IV-V d.C. por marinheiros romanizados que favoreceram a implantação em Lanzarote de pequenas indústrias agrárias (El Bebedero, Tinache, 74 MEDEROS, A. & ESCRIBANO, G. (2017), “Comercio no presencial de oro y escalas en islas de fenicios y cartagineses en la costa atlántica norteafricana”, in Rivista di Studi Fenici, XLIII-2015, 103-144, pp. 121-122. 75 Nesónimo latino referente a Lanzarote que recolhe Plínio o Velho na sua História Natural, que reflete um atributo geomorfológico. Na mudança de Era, Invale fazia parte do arquipélago das Hespérides no contexto da imagem difusa que naquele momento tinham das ilhas Canárias. SANTANA et alii. (2002), ob. cit. Fig. 12 - Representação da deusa fenício-púnica Tanit. Pozo de la Cruz (Rubicón) (Fot.: P. Atoche) 4.2.2. Etapa de descoberta, colonização e fixação: a fase romana 38 … ) onde se sacrificava o gado ovino e caprino para produzir carnes salgadas, peles, couros76… A intensa atividade pecuária, que manteve ativas estas indústrias, contribuiu para desmantelar a cobertura vegetal e os solos, transformando um ecossistema que era estável até aquele momento. Nessa fase, a população insular manteve o modelo anterior de ocupação do território, baseado em núcleos reduzidos e dispersos, integrados por pequenas estruturas habitacionais quadrangulares soterradas por debaixo do nível exterior do chão, do tipo das estruturas Es2 e Es3 exumadas no sítios de Buenavista o El Bebedero (Teguise). Os enxovais domésticos eram compostos por recipientes cerâmicos de cozinha de produção local, modelados à mão, de pequena ou média capacidade e formas simples, de calota esférica, semiesférica, esférico com gargalo curto ou cilíndrico e base plana, esporadicamente ornamentados com motivos impressos e recipientes altos com um ligeiro perfil em S; também há vasos de maior capacidade, forma cilíndrica ou troncónica invertida e base plana, com as bordas decoradas com traços gravados ou impressos ou motivos lineares no corpo. O enxoval completa-se com a presença de diferentes tipos de ânforas, artefactos metálicos de cobre, bronze ou ferro, missangas de vidro e alabastro com motivos pintados com tinta metaloácida, figuras de terracota,…, elementos todos diretamente relacionados com a presença na ilha de navegadores mediterrâneos romanizados. O ponto de paragem marítima localizado na praia dos Pozos (Yaiza) experimentou um aumento das infraestruturas hidráulicas através da construção de uma cisterna de grande capacidade, atualmente denominada ‘Pozo de San Marcial’ (Figura 13), levantada com as mesmas técnicas arquitetónicas usadas nas cisternas das indústrias romanas de salgação, garum ou púrpura localizadas na costa norte-ocidental africana restabelecidas ou levantadas ex novo por Iuba II a partir do último terço do século I a.C. Desta maneira é evidente a contínua reutilização deste ponto ao longo de um grande espaço temporal e a sua mais do que provável contribuição para a atividade desenvolvida próximo do local de fabrico de púrpura romana exumado no ilhéu 76 Foi proposto que no reinado do rei mauritano Iuba II ter-se-ia produzido uma segunda onda de imigração para as Ilhas Canárias cujo destino principal seria Lanzarote e Fuerteventura, com base na possibilidade de que as inscrições denominadas Ilhas Latino-canárias teriam chegado às ilhas naquela época: “In this era, a second wave of immigration to the Canary Islands took place. Berber people who were accustomed to Roman culture and script brought a second type of inscriptions to the islands which differ from the archaic ones…” FARRUJIA et alii. (2010), ob.. cit., p. 16. 39 de Lobos77, assentamento dedicado ao aproveitamento de determinados recursos marinhos, em especial os pesqueiros e tintórios, que se somaram aos primeiros sítios arqueológicos do mundo romano localizados em terra (El Bebedero e Buenavista) e que favoreceram a elaboração de hipóteses sobre a prolongada presença de gentes romanas e/ou romanizadas nas ilhas num marco cronológico bem delimitado pelo C14 entre os séculos I a.C. e IV d.C.78. 4.2.3. Etapa de abandono e isolamento: a fase das culturas insulares canárias A crise político-económica que afetou o Império Romano no século III d.C. não parece ter sido um fenómeno alheio às Canárias, constituindo a razão da gradual 77 ARCO, Mª.C. del, ARCO, Mª.M. del, BENITO, C. & ROSARIO, Mª.C., Eds. (2016), Un taller romano de púrpura en los límites de la Ecúmene. Lobos 1 (Fuerteventura, Islas Canarias). Primeros resultados, Col. CanArqM, 6, Museo Arqueológico de Tenerife, OAMC, Cabildo de Tenerife. 78 ATOCHE et alii. (1995), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1996), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1999), ob. cit.; ATOCHE (2006), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2011b), Ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2017b), ob. cit. Fig. 13 - Poço de San Marcial. (Rubicón) (Fot.: P. Atoche) 4.2.3. Etapa de abandono e isolamento: a fase das culturas insulares canárias 40 ausência de navegadores mediterrâneos e do progressivo isolamento das ilhas, em úl- tima instância responsável pelo facto de, a partir do século V d.C., as formações sociais insulares entrarem numa nova fase que acarretou o desenvolvimento de estratégias sociais e económicas marcadas pela síndrome da insularidade. Em Tyterogaka79 essa etapa supôs a paralisação da atividade e o abandono das indústrias agrárias, dirigindo o subsistema económico de um modelo agrário orientado para o exterior por outro modelo autárquico baseado numa economia agrária de amplo espectro. A nova fase corresponde à chamada ‘Cultura dos mahos’, altura em que Lanzarote é amplamente ocupada80, constituindo a área central da ilha a zona mais intensamente habitada, com núcleos urbanos de diferentes tamanhos e importância (Acatife, Zonzamas, Ajei, Hai- naguadez,...), levantados sobre pequenas elevações naturais de onde se avistam am- plos espaços territoriais integrados por casas profundas e algumas ‘grutas de mahos‘ (Figura 14) do tipo escavado por I. Dug em Zonzamas. Esses centros canalizaram as principais atividades económicas da população insular, articulando-se hierarquica- 79 Nesónimo de Lanzarote registados pelos conquistadores normando-castelhanos no início do século XV d.C. PICO et alii. (2003 [1419]), ob. cit., pp. 142 e 348. 80 A ilha de Lanzarote “... tiene gran número de aldeas y de buenas casas.”, IDEM, p. 142. Fig. 14 - Cueva del Majo de Tiagua (Teguise) (Fot.: P. Atoche) 41 mente com base em fatores políticos, económicos e religiosos à volta de dois núcleos, Acatife e Zonzamas. Pelo contrário, áreas como Malpaís de la Corona o El Jable, no norte, ou as extensas planícies de Rubicón, no sul, apresentam uma ocupação mais limitada, com habitats dispersos integrados por pequenas cabanas ou refúgios tempo- rais ligados ao desenvolvimento de atividades pastoris estacionais. Praticava-se uma agricultura de sequeiro, não extensiva, com técnicas pouco desenvolvidas e níveis de produção baixos, centrada, pelo menos, num cereal (cevada). O pastoreio complemen- tou a atividade anterior, ajustando-se a um desenvolvimento horizontal, ao contrário do que acontecia noutras ilhas do arquipélago com maiores altitudes e diferentes ní- veis de vegetação, apresentando uma pecuária constituída por cabras, ovelhas e por- cos, tendo os pastores a ajuda de cães. A dieta alimentar era completada com produtos derivados de atividades como a caça, a pesca ou a colheita de produtos terrestres e marinhos. Nesta fase os enxovais domésticos sofreram mudanças notáveis; não há artefactos importados de origem mediterrânea, são característicos os recipientes cerâmicos modelados à mão com diferentes capacidades e formas de tendência esférica, semiesférica, de calota esférica, ovoide, com assas ou vertedores e base plana (tojios), no geral com as superfícies ornamentadas com motivos gravados, impresso, em relevo, perfurações, entre os quais se repetem determinados desenhos que podem ter sido marcas de identidade familiar ou de grupo pelo processo de insularização da cultura propiciado pelo isolamento exterior. A carência de artefactos metálicos foi compensada pela elaboração de utensílios líticos esculpidos em rochas vulcânicas e elementos líticos polidos, entre os quais brunidores, moinhos de mão giratórios circulares, tampas circulares de arenito e um grande número de estelas polidas, em muitos dos casos com motivos gravados, em baixo-relevo ou abrasionados. No fim da fase assiste-se de novo à introdução na ilha de recipientes cerâmicos modelados na roda, com superfícies vidradas, procedentes dos ambientes culturais baixo medievais do sul da península ibérica, norte de África, ... 42 Quadro 1 – Proposta de fases para as culturas proto-históricas canárias81 ETAPAS DO POVOAMENTO HUMANO FASES CULTURAIS VARIÁVEIS QUE EXPLICAM A MUDANÇA CULTURAL MOTOR DA MUDANÇA ILHAS COLONIZADAS OU POVOADAS 1ª ETAPA DESCOBERTA, COLONIZAZAÇÃO E FIXAÇÃO (circa ss. X ANE-IV DNE) FASE FENÍCIA (circa ss. X-VI ANE) FASE PÚNICA (circa ss. VI-II ANE) EXPANSÃO COMERCIAL ATLÂNTICA Integração económica das ilhas nos circuitos mediterrâneos como produtoras de matérias primas (Cartago unifica a Fenícia ocidental) Povoadas: Lanzarote, Tenerife e G. Canaria (?) Colonizadas: La Palma e Fuerteventura (?) HIATUS (circa ss. II-I ANE) CRISE DO MODELO PÚNICO DE COLONIZAÇÃO FASE ROMANA (circa ss. I ANE-IV DNE) INTENSIFICAÇÃO ECONÓMICA NO ATLÂNTICO AFRICANO Expansão económica na Mauritânia Tingitana Intensificação económica: integração da produção agrário- pesqueira Consolida-se a presença humana nas ilhas povoadas e dá-se a fixação definitiva de população nas ilhas que até o momento estavam só colonizadas 2ª ETAPA ABANDONO (circa ss. IV-V DNE) FASE CANÁRIA: CONSTITUIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS CULTURAS CANÁRIAS (circa ss. IV-XIII DNE) FIM DA DEPENDÊNCIA ECONÓMICA EXTERNA E DESENVOLVIMENTO DE PROCESSOS ECONÓMICOS E SOCIAIS AUTÁRQUICOS Crise político- económica das formações sociais paleocanárias Povoadas: todas 3ª ETAPA ISOLAMENTO (circa ss. V-XIII DNE) Readaptação e GLYHUVLˋFD©¥RGDV formações sociais paleocanárias 4ª ETAPA ACULTURAÇÃO (circa ss. XIV y XV DNE) FASE DE DESTRUIÇÃO DAS CULTURAS CANÁRIAS EXPANSÃO COMERCIAL ATLÂNTICA Crise generalizada das formações sociais paleocanárias Povoadas: todas 4.2.4. Etapa de aculturação Durante os séculos XIII e XIV d.C. Lanzarote volta a ser frequentada por navegadores europeus no contexto do denominado ‘redescubrimiento’82, fenómeno colonizador que preparou a conquista normando-castelhana das ilhas durante o século XV e com ela a definitiva destruição das culturas proto-históricas canárias. 81 Corrigido de ATOCHE (2008), ob. cit. 82 SERRA, E. (1961), “El redescubrimiento de las Islas Canarias en el siglo XIV”, in Revista de Historia Canaria, 135-136, Universidad de La Laguna, pp. 219-234. MORALES, F. (1971), “Los descubrimientos en los siglos XIV y XV y los archipiélagos atlánticos”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 17, pp. 429-465. 4.2.4. Etapa de aculturação 43 4.3. Povoamento humano e mtDNA A procura da origem étnica das populações proto-históricas canárias foi o tema central da investigação arqueológica desenvolvida nas ilhas desde o seu início no século XIX, quando o estudo dos restos humanos guanches esteve intensamente relacionado com o interesse que uma jovem ciência antropológica mostrava pela procura das origens do homem de Cro-Magnon. Inicialmente pretendeu-se dar uma resposta à questão da origem procurando as denominadas fontes etnohistóricas, que serviram de apoio para estender à totalidade do arquipélago canário determinados caracteres bioantropológicos ou culturais dos canários proto-históricos só constatados em alguma das ilhas centrais. O peso desta tradição, determinada em manter como certas e gerais para todo o período proto-histórico as informações fornecidas tanto por cronistas da conquista tardo-medieval como por estudiosos posteriores, tem vindo a pesar na investigação, derivando a investigação para as semelhanças culturais ou étnicas para com os atuais povos Berberes do vizinho continente africano. Esta situação acabou por exercer a sua influência nas mais recentes investigações genéticas, em grande medida apoiadas em hipóteses apriorísticas que tendem a concentrar a procura dos paralelos genéticos das populações paleocanárias quase exclusivamente entre os modernos berberes estabelecidos no extremo norte-ocidental do continente africano. As análises genéticas feitas às populações proto-históricas canárias experimentaram um relativo aumento a partir do fim da década dos anos 90’ do passado século XX; apesar disto, a sua utilidade atual do ponto de vista histórico é ainda limitada, pois sofre de deficiências notáveis devidas ao tipo de amostras arqueológicas com as quais se trabalhou e ao escasso recurso que se fez dos seus contextos culturais, o que tem implicado uma desconexão inconveniente entre a Análise de mtDNA e os contextos arqueológicos. Como exemplo do exposto, pode ser citado um dos maiores estudos genéticos realizados até ao presente nas ilhas83, o qual garante que as amostras 83 No estudo foram analisadas 131 amostras procedentes de quatro ilhas (Tenerife, Gran Canaria, La Gomera e El Hierro) e de um total de 129 indivíduos, não há na prova restos antropológicos de La Palma, Fuerteventura ou Lanzarote, ilha que, como vimos ao longo deste trabalho, forneceu as datações mais antigas sobre o povoamento do arquipélago, um dado que, sem dúvida, deveria ser tido em conta se o que é pretendido é determinar a origem genética da primigénia população canária. MACA-MEYER, N. (2002), Composición genética de poblaciones históricas y prehistóricas humanas de las Islas Canarias, Universidad de La Laguna, Tesis Doctoral. MACA-MEYER, N., ARNAY, M., RANDO, J.C., FLORES, C., GONZÁLEZ, A.M., CABRERA, V.M. & LARRUGA, J.M. (2004), “Ancient mtDNA análisis and the origin of the Guanches”, in European Journal of Human Genetics, 12, pp. 155-162. 4.3. Povoamento humano e mtDNA 44 estudadas possuíam à volta de dois mil anos de antiguidade (sic), tendo obtido dados de mtDNA apenas em 55% do total de amostras. Sem discutir as bases científicas que permitem os autores da análise afirmar a antiguidade das amostras, a realidade é que, ao ser verdade, descobríramos que se estudou uma amostra (representativa?) da população, que se encontrava no arquipélago depois de, aproximadamente, um milênio desde que começou o processo colonizador, o que invalida os resultados se pretendia estabelecer as características étnicas dos primeiros povoadores. No mesmo trabalho também se garante ter localizado uma grande diversidade étnica na amostra analisada, semelhante àquela que se encontra atualmente na população canária ou na do continente africano; essas analogias são interpretadas como o resultado de várias levas migratórias84, afirmação que pressupõe que cada uma destas contribuiriam para as Canárias com grupos humanos etnicamente bem diferenciados, suposição que entra em contradição com a situação étnica que existe na área geográfica de onde se pensa que procedeu o povoamento e onde a miscigenação étnica é um claro sinal de identidade desde, pelo menos, o Epipaleolítico85. Por outro lado, estes estudos encontram grandes dificuldades em conseguir localizar, com alguma segurança, as origens geográficas dos colonizadores que chegaram em diferentes levas às Canárias, tendo sido assinalado como populações etnicamente mais próximas os berberes marroquinos e os berberes do noroeste africano86, embora se reconheça que os marcadores berberes também estão presentes na península ibérica87. Isto reforçaria o que assinalou N. Maca-Meyer88 num trabalho prévio, no qual garantia que mais de 80% das linhagens determinadas numa ampla amostra indígena canária correspondiam a haplogrupos europeus muito estendidos pelo norte de África e Próximo Oriente, sendo esta a sua mais provável área inicial de origem89, situando a procedência última dessas linhagens no norte de África. Em definitivo, essa 84 MACA-MEYER et alii. (2004), ob. cit., e mais recentemente FREGEL, R., ORDÓÑEZ, A.C., SANTANA, J., CABRERA, V.M., VELASCO, J., ALBERTO, V., MORENO, M.A., DELGADO, T., RODRÍGUEZ, A., HERNÁNDEZ, J.C., PAIS, J., GONZÁLEZ, R., LORENZO, J.M., FLORES, C., CRUZ, M.C., ÁLVAREZ, N., SHAPIRO, B., ARNAY, M. & BUSTAMANTE, C.D. (2019). “Mitogenomes illuminate the origin and migration patterns of the indigenous people of the Canary Islands”, in PLOS ONE 14(3), e0209125. 85 Pode ser consultado, entre outros, o trabalho, já clássico, de CHAMLA, M.-C. (1978), “Le peuplement de l’Afrique du nord de l’épipaléolithique à l’époque actuelle”, in L’Antropologie, 82 (nº 3), pp. 385-430. 86 MACA-MEYER et alii. (2004), ob. cit., p. 161. 87 MACA-MEYER et alii. (2004), ob. cit., p. 155. 88 MACA-MEYER (2002), ob. cit. 89 MACA-MEYER (2002), ob. cit., p. 81. 45 investigação garante que quatro linhagens (14% do total) se encontram exclusivamente no Próximo Oriente e duas (6’9%) na Europa90, se bem que não proporciona nenhum tipo de explicação para a maneira como os colonizadores proto-históricos africanos puderam obter o necessário conhecimento da existência das Ilhas Canárias nem como conseguiram ter chegado a elas em várias levas se eram pessoas que desconheciam a arte da navegação oceânica. R. Fregel e colaboradores91, num estudo genético centrado na população proto- histórica de La Palma, garantem que a origem berbere norte-africana foi comprovada a nível molecular pelo achado nas Canárias de marcadores específicos norte-africanos92. Efetivamente, os marcadores do sub-haplogrupo U6 têm sido considerados de grande interesse por ter sido detetado um subgrupo do mesmo que é considerado específico das ilhas, além do possível nexo de união entre estas e o continente africano. As linhagens canárias U6b1 e U6c1 não foram localizadas nos territórios atlânticos do noroeste africano, enquanto que a linhagem U6c1 foi detetada em populações berberes Sened de Tunísia, factos que permitiram colocar a hipótese de que a região de origem dos povoadores paleocanários estaria na Tunísia e Argélia e não em Marrocos e Mauritânia. A distribuição dos haplotipos mitocondriais das populações atuais nas Canárias parece ser compatível com uma só migração, embora a do cromossoma Y se explicaria melhor supondo a existência de, pelo menos, duas migrações sucessivas, dicotomia que só poderá ser resolvida quando estiver disponível as análises de restos indígenas de todas as ilhas adequadamente datados em momentos próximos aos inícios do povoamento93. Por outro lado, também garante a existência de uma significativa parte 90 MACA-MEYER (2002), ob. cit., p. 84. 91 FREGEL, R., PESTANO, J., ARNAY, M., CABRERA, V.M., LARRUGA, J.M. & GONZÁLEZ, A.M. (2009), “The maternal aborigine colonization of La Palma (Canary Islands)”, in European Journal of Human Genetics, 17, pp. 1.314-1.324. 92 FREGEL et alii. (2009), ob. cit., p. 1.314. 93 As levas de povoamento foram uma explicação para a maneira como se produziu a colonização das Canárias desde a primeira metade do século XX, num quadro teórico que também tentava resolver a questão do número mínimo de povoadores necessários para que a colonização tivesse sucesso e não existissem fenómenos de endogamia, uma questão à qual C. Rodríguez e R. González responderam garantindo que “No está claro «cuantos» deberían constituir el número mínimo de individuos para garantizar la supervivencia del grupo inicial y su potencial multiplicación futura. Nos inclinamos a pensar que este número fluctuaría entre los 20 y los 50 en sociedades sedentarias y con cierto nivel tecnológico, repartidos en parejas heterosexuales. Cifras inferiores a esas se nos antojan como inviables para poder garantizar el asentamiento y supervivencia de la población”. RODRÍGUEZ & GONZÁLEZ (2003), ob. cit., p. 131. Em última análise, consideram que a situação seria muito mais positiva se houvesse contribuições populacionais contínuas, o que a nosso ver implica a manutenção contínua das relações com os locais 46 de linhagens aborígenes, contabilizado em 15%, com marcadores específicos da zona europeia mediterrânea ou do Próximo Oriente94. Todos estes dados levam a garantir que as populações paleocanárias adaptaram-se a um modelo de povoamento insular com frequentes migrações entre ilhas95, hipótese pouco provável aplicada a umas populações que não conheciam a navegação, exceto se se considerar a possibilidade de que essas migrações, na realidade, foram contactos mais ou menos permanentes no tempo, mantidos por intermédio daqueles navegadores mediterrâneos de origem fenício-púnica primeiro, e romana mais tarde, que durante mais de um milénio cruzaram as águas atlânticas e canárias criando assentamentos e indústrias. De facto, R. Fregel e colaboradores96 afirmaram recentemente que no haplogrupo U5, atestado na população púnica de Cartago, possui uma notável presença nas populações proto- históricas das Canárias orientais, incluída Lanzarote, ilha onde propomos a existência de numerosas influências culturais feno-púnicas97. Da mesma maneira, os citados investigadores destacaram o achado de linhagens (H1cf, J2a2d e T2c1d3) que só estariam presentes, além das Canárias, em África norte-central, circunstância que do nosso ponto de vista confirma o apontado por Mª.D. Garralda98 há mais de três décadas relativamente às grandes semelhanças anatómicas que possuíam os indivíduos que estudou em Lanzarote com outros originários das necrópoles proto-históricas e púnicas de Argélia. Para C. Flores e colaboradores99, a distribuição geográfica atual pelas Ilhas Canárias do marcador mitocondrial U6 proporciona informação adicional relacionada com a maneira em que as ilhas foram colonizadas, devido a que a diversidade e o número de sequências serem superiores em Lanzarote e Fuerteventura, as ilhas mais próximas do continente africano, enquanto que se reduzem gradualmente quando nos de onde originou o processo de colonização e invalida a proposta de invasão a partir de ondas sucessivas de povoamento. 94 FREGEL, R. et alii. (2009), ob. cit., p. 1.322. 95 FREGEL, R. et alii. (2009), ob. cit., p. 1.314. 96 FREGEL, R. et alii. (2019), ob. cit., p. 15. 97 Cf. p.e. ATOCHE et alii. (1997), ob. cit.; ATOCHE et alii. (1999), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2011b), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2019), ob. cit. 98 GARRALDA, Mª.D. (1985), “Algunas notas sobre la población prehispánica de Lanzarote (Islas Canarias)”, in IV Congreso Español de Antropología Biológica, 445-452, p. 451. 99 FLORES, C., LARRUGA, J.M., GONZÁLEZ, A.M., HERNÁNDEZ, M., PINTO, F.M. & CABRERA, V.M. (2001), “The Origin of the Canary Island Aborigines and Their Contribution to the Modern Population: A Molecular Genetics Perspective”, in Current Anthropology, 42 (nº 5. December 2001), 749-755, p. 752. 47 movimentamos para o oeste, facto que apontaria um processo inicial de colonização de acordo com o modelo stepping-stone, que começaria nas ilhas mais orientais em direção às mais ocidentais. Em definitivo, os dados genéticos disponíveis, reconhecendo as razoáveis dúvidas que levantam por não corresponderem às populações colonizadoras cronologicamente mais antigas ou carecerem em muitos casos de relação direta com um contexto cultural, adaptam-se a um grupo humano heterogéneo, com uma origem geográfica e cultural semelhante, que atingiria as ilhas em embarcações originárias de portos localizados no Círculo de Cartago, no Círculo do Estreito ou nos dois simultaneamente. Nesta linha de argumento, se olharmos para Lanzarote, a ilha canária que contribuiu para as cronologias mais antigas relacionadas com o povoamento e a cultura fenício-púnica, embora com uma estranha escassez de restos humanos proto-históricos100, observamos que os restos humanos recuperados até hoje pertencem a indivíduos que podem ser datados num momento avançado da etapa proto-histórica, posterior ao século V d.C. com base nos contextos arqueológicos que os acompanhavam como enxoval funerário. Não são, portanto, uma amostra representativa nem procedentes dos primeiros momentos da colonização insular, mas Mª.D. Garralda101 apontou naqueles que correspondiam a uma população dolicocránea de tipo mediterrâneo norte-africano, pertencente ao nível morfotipológico às variedades mediterrânea robusta e grácil norte-africanas, em algum caso com rasgos mastoideo atenuados, de acusada robustez, com a presença de linhas de inserção muscular muito marcadas, e elevada altura, superior à média das populações paleocanárias. Essas características biométricas assemelhá-los-iam a indivíduos procedentes das necrópoles proto-históricas e púnicas de Argélia, considerando, a referida investigadora, que as pequenas diferenças observadas relativamente à população norte-africana teriam tido a sua origem no isolamento produzido num espaço reduzido com as características de Lanzarote, o qual agiria como mecanismo microevolutivo sobre o património genético dessas populações102. Este último facto, 100 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., RODRÍGUEZ, C., RODRÍGUEZ, Mª.D. & PÉREZ, S. (2008), “De antropología, ritos y creencias en la Protohistoria de Lanzarote (Islas Canarias)”, in P. Atoche, C. Rodríguez & Mª.A. Ramírez (Eds.), Mummies and Science. World Mummies Research. Proceedings of the VI World Congress on Mummy Studies, pp. 165-180. 101 GARRALDA (1985), ob. cit. 102 GARRALDA (1985), ob. cit., p. 451. 48 junto com a presença de uma linhagem canária específica, parece estar indicando a possibilidade da existência entre as populações paleocanárias de alterações genéticas originadas pela síndrome da insularidade, facto que está de acordo com o assunto que estamos a tratar neste trabalho103. Mas ainda está patente que, um pouco mais de uma década antes do começo dos estudos genéticos nas Canárias, a Antropologia biológica apontava já a área argelino-tunesina como lugar provável de origem de uma das populações insulares paleocanárias. Uma área geográfica à qual, em base a informação de carácter epigráfico, também apontou R.A. Springer, para quem “... los alfabetos con mayores similitudes a los de las islas Canarias [se encuentran] en el Norte de Túnez y Noreste de Argelia”104, mas reconhece que tanto no norte de África como no Sara não se observa nenhum alfabeto que seja idêntico a algum dos canários105, circunstância que poderia estar assinalando a presença nas ilhas de outra adaptação cultural produzida pelo factor insular, na linha de argumentação do fenómeno central que estamos a abordar neste trabalho. Essa mesma zona geográfica também foi apontada por F. López Pardo y J. Suárez106 quando apontaram as populações líbias fixadas no sul de Tunísia como sendo as protagonistas dos movimentos realizados por Cartago para diferentes zonas do Mediterrâneo ocidental e do Atlântico a partir de fins do século VI a.C., uma data próxima daquela que consideramos nas Canárias como possível para o início da colonização humana, e alguns povos originários do interior do continente caracterizadas culturalmente por não praticar a navegação oceânica. Em conclusão, perfila-se a hipótese que localiza a cronologia, a origem étnica e o lugar de origem geográfica dos primeiros povoadores do arquipélago canário nalgum momento na passagem do II para o I milénio a.C., entre populações líbias e/ 103 C. Rodríguez e R. González destacaram que, em populações isoladas, existem consequências genéticas decorrentes do efeito fundador, como a deriva genética, que definem como“... fluctuación al azar de las frecuencias genéticas en una población de tamaño finito, es decir efectos estocásticos o no previsibles, y que está muy ligada en su intensidad al tamaño poblacional (…). La consecuencia del efecto fundador será la rápida divergencia genética entre la población de una isla (o de cualquier otra población aislada) y la que le dio origen en el continente o en otra isla produciendo una frecuencia de aparición de alelos raros mayor que la de la población original, algunos de los cuales pueden dar origen a patologías congénitas”. RODRÍGUEZ & GONZÁLEZ (2003), ob. cit., p. 118. 104 SPRINGER, R.A. (2001), Origen y uso de la escritura líbico-bereber en Canarias, Arafo, CCPC, pp. 56 e 167. 105 SPRINGER (2001), ob. cit., 161. 106 LÓPEZ PARDO, F. & SUÁREZ, J. (2002), “Traslados de población entre el norte de África y el sur de la Península Ibérica en los contextos coloniales fenicio y púnico”, in Gerión, 20 (1), pp. 113-152. 49 ou líbio-fenícias, originárias de uma área geográfica do interior do continente africano localizada nas atuais Tunísia e Argélia oriental107. 5. Considerações finais Para a ciência arqueológica não é uma tarefa simples tentar determinar, nas populações pré-históricas ou proto-históricas, quais foram as alterações culturais que podem ter exigido a sua fixação numa ilha. Também não é fácil tentar determinar se as transformações que se produziram na paisagem insular depois dessa fixação tiveram a sua origem em causas de carácter antrópico, natural ou ambas simultaneamente. Mas é inegável que o homem e a sua cultura tendem a transformar o meio natural no qual se desenvolvem como resultado do processo de produção de artefactos e a necessidade de conseguir alimentos, e, que o passar do tempo, atua no sentido de aumentar essas transformações até ao ponto em que é possível medir o fenómeno diacronicamente e delimitá-lo através de modelos analíticos. As ilhas são espaços frágeis, sistemas muito sensíveis às atividades humanas, capazes de transformar os seus ecossistemas e de destruir a flora e fauna que albergam. Nos últimos anos, pré-historiadores e historiadores analisaram os efeitos da antropização em ilhas demonstrando que as sociedades humanas induzem profundas alterações desde o instante do seu estabelecimento e percebendo melhor os mecanismos que regem as interações entre aquelas e os ecossistemas insulares. A chegada do ser humano a uma ilha amplifica as alterações na fauna e flora com a introdução de espécies domésticas e de algumas silvestres, de tal maneira que a história da natureza e a história do homem misturam-se numa dinâmica marcada pela permanente fragilidade das ilhas. Nas paisagens insulares canárias, inicialmente desprovidas de grandes herbívoros, os efeitos da atividade humana constituíram um autêntico trauma para a cobertura vegetal, que se manifesta com inusitada virulência pela redução inicial das formações vegetais e, até, a sua erradicação definitiva, como parecem apontar tanto Lanzarote como Fuerteventura. 107 BALBÍN, R. de, BUENO, P., GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C. del (1995), “Datos sobre la colonización púnica de las Islas Canarias”, in Eres (Arqueología), 6 (1), Museo Arqueológico de Tenerife, pp. 7-28, BALBÍN, R. de, BUENO, P., GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C. del (2000), “Una propuesta sobre la colonización púnica de las Islas Canarias”, in Mª.E. Aubet & M. Bathélemy (Eds.), Actas del IV Congreso Internacional sobre Estudios Fenicios y Púnicos, II, pp. 737-744. 5. Considerações finais 50 Em muitos dos estudos desenvolvidos nas Canárias orientados para a reconstrução histórica da etapa proto-histórica percebe-se como, a partir de um modelo teórico hiperdifusionista, se tende explicar que qualquer alteração observada, tanto nos contextos materiais como nos marcadores genéticos das populações insulares, como resultado de sucessivas ondas de povoamento, atribuindo às populações insulares canárias um papel passivo no seu devir histórico. Esta proposta de modelo colonizador fundamenta-se ao considerar que existiram fenómenos pontuais de contacto e difusão cultural com o norte de África, no âmbito de grupos étnicos berberes desconhecedores da navegação, e em negar qualquer possibilidade de que esse tipo de contato pudesse ter sido produzido com outras culturas do Mediterrâneo que eram conhecedoras de navegação108, como a fenício-púnica ou romana presentes no norte de África desde finais do II milénio a.C. Este tipo de análise ignora, entre outros aspetos culturais, que o arquipélago canário tem um carácter oceânico que teria exigido aos seus potenciais colonizadores proto-históricos praticar a navegação oceânica109 ou que, nas últimas três décadas, a atividade arqueológica tivesse recuperado numerosos artefactos de origem cultural mediterrânea que testemunhassem a presença de navegadores feno-púnicos e romanos nas ilhas durante, pelo menos, um milénio110. Por outro lado, tampouco 108 Cf. p.e. DELGADO, J.A. (2012), “Canarias en la Antigüedad como problema histórico”, in Tabona, 19, pp. 9-23. 109 Neste sentido são esclarecedoras as diferenças que A. Vieira estabeleceu entre os diferentes tipos de ilhas que identifica no Atlântico, afirmando que “A posição que cada uma assumiu conduziu a diferente protagonismo histórico. As fluviais e continentais evidenciaram-se pela dependência ao espaço continental vizinho, enquanto as oceânicas ficaram entregues a si próprias”. VIEIRA (2004), ob. cit., p. 221. 110 Cf. p.e. ATOCHE et alii. (1995), ob. cit.; GONZÁLEZ et alii. (1998), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1999), ob. cit.; BALBÍN et alii. (2000), ob. cit.; LÓPEZ PARDO, F. (2000), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2001), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2011b), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2017), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2019), ob. cit.; MEDEROS, A. & ESCRIBANO, G. (2002), Fenicios, púnicos y romanos. Descubrimiento y poblamiento de las Islas Canarias, Madrid, Dirección General de Patrimonio Histórico, Estudios Prehispánicos, p. 11. MEDEROS, A. & ESCRIBANO, G. (2008), “Pesquerías púnico-gaditanas y romano republicanas de túnidos: el Mar de Calmas de las Islas Canarias (300-20 a.C.)”, in R. González, F. López y V. Peña (Eds.), Los Fenicios y el Atlántico, Madrid, Centro de Estudios Fenicios y Púnicos, IV Coloquio del CEFYP, pp. 345-378. SANTANA et alii. (2002), ob. cit.; GONZÁLEZ, R. (2004), “Los Guanches: una cultura atlántica”, in Fortunatae Insulae, Canarias y el Mediterráneo, Museo Arqueológico de Tenerife, OAMC, Cabildo de Tenerife-Caja Canarias, pp. 134-146. GONZÁLEZ, R. (2005), “Nueva representación de Tanit en Canarias”, in Eres (Noticias Arqueológicas), 13, Museo Arqueológico de Tenerife, pp. 137-140. SANTANA & ARCOS (2006), ob. cit.; SANTANA & ARCOS (2007), ob. cit.; ATOCHE (2008), ob. cit.; GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C. DEL (2007), Los enamorados de la Osa Menor. Navegación y pesca en la Protohistoria de Canarias, Canarias Arqueológica, Monografías, 1, Museo Arqueológico de Tenerife, OAMC, Cabildo de Tenerife. GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C. DEL (2009), “Navegaciones exploratorias en Canarias a finales del II milenio a.C. e inicios del primero. El cordón litoral de La Graciosa (Lanzarote)”, in Canarias Arqueológica (Arqueología/ Bioantropología), 17 (anejo I), pp. 9-80. ARCO et alii. (2016), ob. cit. 51 foi considerado que as populações proto-históricas canárias não desenvolveram uma cultura marítima, devido, provavelmente, ao desconhecimento da tecnologia que lhes teria permitido construir embarcações; em ilhas, essa limitação costuma provocar um tipo de autoisolamento que conduz ao empobrecimento cultural111, circunstância que não parece concordar com o observado, por exemplo, em Gran Canária, cuja população proto-histórica chegou a um nível de desenvolvimento cultural em questões tais como o urbanismo ou as práticas agrícolas que surpreendeu os conquistadores normando-castelhanos do século XV, nem com o facto de que as sociedades proto- históricas canárias, numa perspetiva demográfica, tivessem desenvolvido um sistema de população fechado, onde o equilíbrio população/recursos mantivera-se por mecanismos internos como o controlo da natalidade ou a presença entre elas de uma linhagem U6cl comum, derivado do sub-haplogrupo U6. Em especial, isto contradiz a hipótese que defende um suposto isolamento cultural e genético das populações fixadas nas diferentes ilhas do arquipélago. Nas Ilhas Canárias, os efeitos das atividades humanas manifestaram-se de uma maneira particular, gerando, primeiro, a redução severa das formações arbustivas para, mais tarde, tender a erradicação das florestas, que seriam cortadas progressivamente e substituídas por táxones com um desenvolvimento menor. Em Lanzarote, as evidências da intervenção humana na transformação da paisagem ao longo dos últimos três milénios procedem de análises polínicos e edafológicos combinados com séries de datações radiocarbônicas no contexto de sequências estratigráficas arqueológicas, além de que se verifica que as alterações registadas são semelhantes em datas diferentes e que o processo de transformação foi paralelo e de acordo com factos históricos concretos. Depois de pouco mais de três milénios de presença humana efetiva, a paisagem vegetal atual de Lanzarote é o resultado de uma profunda transformação causada em grande medida pelas atividades agro-pastoris implementadas por colonizadores humanos, responsáveis de numerosas extinções da flora insular nativa num processo que durante o I milénio a.C. ainda mantinha um certo equilíbrio ambiental, reflexo de uma exploração económica de baixa intensidade, que será incrementada a partir do século I a.C., num momento que coincide com o interesse de Roma pelo Atlântico africano e os seus recursos e com a presença nas 111 FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. (2002), Civilizaciones. La lucha del hombre por controlar la naturaleza, Madrid, Taurus Historia, p. 344. 52 Canárias de navegadores originários de territórios romanizados do Círculo do Estreito. Como consequência, as atividades humanas derivadas da prática da agricultura e a pecuária exerceram a sua influência sobre o meio natural insular, fazendo com que a influência antrópica deva ser considerada como um dos fatores morfogenéticos que intervieram ativamente nas áreas insulares onde se fixaram grupos humanos, a tal ponto que a flora atual de Lanzarote é o resultado de … procesos y mecanismos biológicos que permitieron la colonización del territorio insular (zoocoria, hidrocoria, anemocoria, etc.) durante el Terciario y Cuaternario bajo una serie de acontecimientos de tipo climático, volcánico, etc., que provocaron extinciones, migraciones, especiaciones, etc. y, a los que hay que añadir aproximadamente en los últimos 2.000 años, la acción del hombre y sus animales (acontecimientos antropozoógenos)112. O carácter insular e a localização excêntrica relativamente ao centro de gravidade representado pelas culturas mediterrâneas do I milénio a.C. deram ao arquipélago canário o papel de refúgio, não só para a fauna e a flora terciária desaparecida no continente próximo, mas como reservatório de fenómenos culturais pré-históricos e proto-históricos e de antigas linhagens humanas originárias do Mediterrâneo ocidental alteradas em maior ou menor medida pela síndrome de insularidade. 112 REYES (2005), ob. cit., pp. 9-10. 53 O açúcar no Corpus Documental das Ilhas Canárias113 Sugar in the Documentary Corpus of the Canary Islands Ana Viña Brito (ULL) anvina@ull.edu.es Resumo Este trabalho é uma síntese do projeto interdisciplinar CORDICan [Corpus Documentário das Ilhas Canárias]. Apresentamos um corpus monográfico sobre o açúcar, através da documentação dos Protocolos Notariais dos arquivos das Canárias, no primeiro século de colonização, bem como a digitalização dos documentos, a sua transcrição e a utilização de etiquetas de marcação textual. Utilizamos ferramentas de edição online que contribuem para a visibilidade e disponibilização da documentação no quadro da História Atlântica do Açúcar. Palavras-chave: Açúcar, Canárias, digitalização, transcrição, marcação textual. Abstract This work is a synthesis of the interdisciplinary project CORDICan (Documen- tary Corpus of the Canary Islands). We present a monographic corpus on sugar through 113 Este artigo é uma síntese de outras publicações, entre as quais destacamos: VIÑA-BRITO, A. e CORBELLA, D.(2018), “Corpus documental de las Islas Canarias. Un nuevo reto en Humanidades Digitales»”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 65, pp. 29-66; IDEM (2019), “El proyecto CORDICan. Un ejemplo de investigación interdisciplinar en Humanidades Digitales”, in BELLO JIMÉNEZ, V. (coord..). Archivos para gobernar el mundo. Las Palmas de Gran Canaria: Mercurio, pp.197-215. Este trabalho faz parte do Projeto FFI2016-76154-P e da colaboração do Cabildo de Tenerife através de uma “Ajuda de investigação” do Programa «María Rosa Alonso» (2018). 54 the documentation of Notary Records from the archives of the Canary Islands during WKHˋUVWFHQWXU\RIFRORQL]DWLRQDVZHOODVWKHVFDQQLQJRIWKHGRFXPHQWVWKHLUWUDQ scription and the use of textual marking labels. We use online editing tools that con- tribute to the visibility and availability of the documentation in the framework of the Atlantic History of sugar. Keywords: Sugar, Canary Islands, scanning, transcription, text labelling. Introdução Como assinalou Gaael Vaamonde, a aproximação tradicional na construção de corpus históricos tende a focalizar a atenção no conteúdo linguístico, limitando, quando não obviando, não só aspectos paleográficos presentes no documento original, mas também diferentes aspectos contextuais associados à produção do texto114. São muitas as disciplinas que fundamentam a sua análise nos testemunhos que os arquivos guardam, tanto públicos como privados, pois os registos dão conta e permitem calibrar o valor preciso dos distintos aspectos que formam a história económica, a história social, a história das mentalidades ou a história linguística de um determinado grupo ou de uma determinada região, não como elementos isolados, mas sim no seu próprio contexto. Não obstante, em numerosas ocasiões o acesso a esses registos primários fica restringido pela dispersão das fontes e, sobretudo, porque não existe um corpus unificado que permita consultar, desde qualquer ponto geográfico ou no âmbito de qualquer campo disciplinar, textos que ofereçam múltiplas leituras em função dos interesses académicos de cada investigador. Este handicap que continua a estar vigente pode e deve reverter-se, o que é viável actualmente através das denominadas Humanidades digitais, sem dúvida um dos desafios que a sociedade da informação lançou aos investigadores, sem esquecer que a difusão, a divulgação e a partilha dos fundamentos do conhecimento constituem os pontos fortes da transferência e, para isso, resulta imprescindível utilizar os meios e suportes que, em pleno século XXI, propiciam essa inter-relação entre comunidade 114 VAAMONDE, G. (2018), “La multidisciplinariedad en la creación de corpus históricos. El caso de Post Scriptum”, in Artnodes, 22, p. 122. Disponível em: http://artnodes.uoc.edu 55 académica e sociedade115, tendo sempre presente que as Humanidades digitais constituem simplesmente mais um instrumento ao serviço da investigação e não uma finalidade em si mesmas116. Para o/a historiador/a não há outra realidade do que aquela que a documentação lhe mostra e a sua análise não pode avançar sem o cotejo paciente das centenas de maços de papéis que guardam os arquivos e que, como as peças de um puzzle, ajudam pouco a pouco a reconstruir o passado, ocupando o texto, como manifestou Priani, um lugar predominante como objeto primário de estudo, produção de conhecimento e disseminação117. Daí a necessidade de indagar novas vias que facilitem o acesso a essas fontes primárias, inéditas ou publicadas, mas transliteradas com critérios uniformes, pois, como assinalou Morsel, não só é importante o contexto de produção do documento, mas também a transcrição em certas etapas pode determinar «erros» não apenas de interpretação, mas de transcrição. Este foi um dos motivos que nos levou à realização do projeto CORDICan [Corpus Documental das Ilhas Canárias]. 1. O Projeto CORDICan A génese deste trabalho iniciou-se somente há cinco anos, quando começámos uma investigação interdisciplinar conjunta entre historiadores e filólogos, na qual abordámos a análise da história atlântica do açúcar na época colonial e as suas consequências linguísticas. Este estudo levou-nos a analisar não só o produto em si, mas também o complexo agroindustrial do engenho e a sociedade que se estruturou à volta do cultivo e a cultura do chamado «ouro branco» da época e que foi determinante na organização dos espaços insulares de Gran Canária, La Gomera, La Palma e Tenerife – as denominadas ilhas do açúcar. Todos os autores estão de acordo relativamente à 115 Grupo de investigação do Século de Ouro, da Universidade de Navarra . BARAIBAR, A. y COHEN, S. (2012), “Nuevas tecnologías y redes sociales en la investigación en Humanidades”, in La Perinola. Revista de investigación quevediana, 16, pp. 155-164. 116 GARCÍA MARCOS, F. J. (2006), “Los sistemas de información histórica: una frontera en la construcción científica de la historia”. Disponível em: http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2245396.pdf. 117 PRIANI, E. (2015), “El texto digital y la disyuntiva de las humanidades digitales”, in Palabras clave. DOI: 10.5294/pacla.2015.18.4.11. 56 importância que tiveram as ilhas na construção do mundo atlântico e o papel, desde um primeiro momento, que a cana de açúcar teve nessa expansão para as terras do ultramar, principalmente através dos arquipélagos da Madeira e Canárias para a América lusitana e espanhola, respectivamente. Neste trabalho concentrar-nos-emos, sobretudo, na análise de uma fonte primária como é a documentação de Protocolos Notariais e, especialmente, a documentação açucareira, por várias razões. É necessário ter em conta que, pelo menos desde os anos finais do século XV e ao longo de seiscentos, ocorre a colonização do arquipélago canário, uma vez incorporadas as ilhas na coroa castelhana, o que implicou a implantação dos modelos vigentes em Castela nestas ilhas, do ponto de vista administrativo, jurídico, de mentalidade, etc. Por consequência, qualquer acto jurídico, desde uma simples compra a um testamento, devia passar pelo registo do cartório correspondente. Daí decorre que os protocolos notariais abarquem numerosas tipologias documentais, sendo o escrivão, o notário público de tais actos jurídicos, o que nos permite, através destes registos, conhecer como decorria a vida nas fazendas açucareiras, quais eram os materiais de construção das distintas dependências do engenho, a organização social, os contratos de aprendizagem ou a actuação das oligarquias que controlavam o poder local. Tudo era susceptível de estar protocolizado devido ao valor comercial que adquiriu a plantação. Fig. 15 - Juan de Capua, refinador, entra recebendo um ordenado com Alonso Fernández de Lugo no engenho do Realejo por cinco anos. AHPTF, PN 373, ff. 223r-224r. 57 O nosso objetivo com esta investigação era, por um lado, demonstrar que os factos históricos confirmavam a “espanholização”, nas Canárias, da terminologia açucareira atlântica, face aos repertórios lexicográficos americanos, de cujos dados se deduz a atribuição brasileira ou caribenha deste conjunto léxical. Com o objectivo de fundamentar os nossos argumentos e a própria investigação, revelou-se imprescindível recorrer aos arquivos e transcrever literalmente dezenas de registos manuscritos sobre a instalação dos engenhos açucareiros e o desenvolvimento desta agroindústria nas Canárias e na América desde os alvores do Renascimento. Trata-se de um projecto novo, sem dúvida, tanto pelo seu carácter interdisci- plinar como porque nele apresentamos, pela primeira vez e de uma maneira indepen- dente, num corpus monográfico delimitado geograficamente, a digitalização dos do- cumentos, a sua transcrição e o uso de etiquetas de marcação textual. Relativamente ao primeiro aspecto, o trabalho conjunto de filólogos e historiadores destacou, uma vez mais, a necessidade de respeitar os originais e a informação de todo o tipo que contêm, nem sempre contemplada nas regesta que, em modo de resumo, se editaram durante o século XX. Relativamente ao segundo aspecto, existem repertórios docu- mentais digitais que contemplam ou contêm documentação canária, mas estes regis- tos diatópicos constituem uma parte mínima desses projectos, geralmente concebidos com enquadramentos mais amplos e não tão específicos118. Não existe, por isso, um corpus acessível de documentação canária transcrita com critérios similares, devida- mente catalogado e indexado, apesar de os grandes repositórios documentais terem considerado nos últimos anos a possibilidade de oferecer, juntamente com a imagem do documento, a transliteração do seu conteúdo. O trabalho estrutura-se em diferentes etapas, sendo que uma das fases cruciais deste projecto consiste na selecção e digitalização dos documentos, de tal forma que estejam guardados num repositório digital, de fácil acesso, e que permita continuar a analisá-los desde os mais diversos pontos de vista: histórico, filológico, sociológico, etc. Juntamente com a digitalização apresentamos a transcrição paleográfica, respeitando os atributos que caracterizam cada texto, tais como a sua ortografia e sintaxe originais, as expansões, adições, rasuras, mudanças de página, mudanças de linha, etc., e que podem orientar tanto sobre a procedência do notário como sobre os hábitos escriturários da região e da época. 118 Vid. Portal de Corpus Históricos Iberorrománicos (CORHIBER). Disponível em: http://www.corhiber.org 58 O interesse de CORDICan baseia-se no facto de aspirar a converter-se num corpus representativo da documentação canária, de consulta totalmente aberta, com a finalidade de que outros investigadores, com interesses diversos e desde qualquer ponto geográfico, possam dispor deste enorme tesouro patrimonial. Nesta primeira fase, que sintetizamos nesta apresentação, CORDICan contém um subcorpus temático bastante amplo sobre os registos açucareiros, mas também avançámos bastante na introdução de outros subcorpus organizados a partir de crité- rios tipológicos e não temáticos (ainda que também sejam susceptíveis de um agru- pamento pelo conteúdo), como testamentos, cartas de dote e inventários, extraídos fundamentalmente da documentação notarial. O corpus vai ampliando-se com outros subcorpus de cartas, portarias decretos, etc. É uma aposta de futuro, ainda que estejamos conscientes de que nem sempre se poderão alcançar os níveis de equidade desejáveis, já que a documentação canária, das primeiras décadas, se perdeu irremediavelmente para algumas das ilhas (como Gran Canária e La Palma). O corpus tende a ser representativo não só na sua tipologia, como também na procedência geográfica dos textos e na sua distribuição temporal. Não se trata somente da transcrição e digitalização da documentação, mas o projecto permitirá ainda, mediante o sistema de marcação TEI, que os documentos indexados não tenham um período de caducidade a curto e médio prazo, o que é um dos grandes problemas da voragem digital. A codificação utilizada é a comummente aceite e a que permitirá num futuro, se os modelos avançarem, uma conversão imediata. Ao ser um repositório permanentemente actualizado de documentos de Canárias ou sobre as ilhas, transcritos de uma maneira homogénea e seguindo os mesmos critérios, a integração de novos documentos a partir do formato Word torna-se viável e, portanto, aponta para a sua implementação a partir de um trabalho colaborativo, sem quase necessitar de conhecimentos de catalogação. O terceiro elemento chave deste projecto consiste em tornar visível na rede a documentação do arquipélago, tendo em conta que este trabalho tem de se levar a cabo com critérios de qualidade científica e comunicativa, sem que uma se sobreponha à outra119. 119 JIMÉNEZ ALCÁZAR, F. J. (2016), “Balance historiográfico. Reflejos en el medievalismo y en los medievalistas del cambio de una época: de un balance a un compromiso”, in Vínculos de Historia, 5, pp. 333-343. 59 Os inconvenientes são muitos, desde o financiamento até ao volume de trabalho que pode ser feito por uma equipa de investigação interdisciplinar muito limitada. Contudo, consideramos que é uma nova via que está a dar excelentes resultados, que está aberta à incorporação de novos investigadores e que propomos como um modelo que se pode seguir para a digitalização da documentação canária, que não se deve limitar à simples digitalização dos documentos, nem a continuar com a realização de regesta. A internet oferece-nos possibilidades que devemos aproveitar no seu todo e que facilitam um acesso mais amplo, direto e não dispendioso, a uma documentação que, ao fim ao cabo, pertence a todo o conjunto da sociedade. Sem dúvida, é necessário avançar neste sentido num meio digital simples e amigável que facilite ao mesmo tempo a difusão do património documental, neste caso de Canárias e nesta primeira fase limitado à temática açucareira, e obviamente a investigação que se realize sobre o mesmo. Temos apenas de pôr em prática o que outros grupos de fora das ilhas estão a levar a cabo com excelentes resultados120. 2. Viabilidade do Projeto Importa referir que os objetivos principais de CORDICan podem ser sintetizados em três secções: - A criação de um Corpus com um repositório permanentemente atualizado de documentos das Canárias ou sobre as ilhas, transcritos de uma maneira homogénea e seguindo os mesmos critérios. - Que incluia documentação arquivística e cronística relativa ao arquipélago, desde o século XV até finais do século XIX, tentando que o corpus seja amplo e representativo de todas as épocas e de todas as ilhas. - Um terceiro objectivo é que o Corpus esteja online, ou seja, oferecer em regime de acesso livre a consulta da base de dados documental para facilitar o seu acesso aos investigadores que, desde qualquer ponto, desejem ou necessitem de aceder aos registos canários. 120 Vejam-se, entre outros, os resultados do «Grupo Trasegantes “Avisos de Levante”: Un provecto digital de Ingeniería Histórica». Disponível em: www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm/article/ download/439/470>; ou os do grupo HILAME. Disponível em: http://www.hilame.info/equipo/ ou, no terreno da filologia, o trabalho coordenado por Miguel Calderón no grupo CORDEREGRA. Disponível em: https://diachronica.ugr.es/produccion-cientifica/congresos. 60 Se os objetivos estão claros e são viáveis, equacionamos uma série de reflexões que são produto de vários anos da investigação que levámos a cabo a nível interdisciplinar e que nos fizeram voltar de novo à documentação original, não só para que as transcrições, sejam estas em formato Word ou diretamente com Oxygen, possam servir para historiadores, filólogos, etc., mas também para reequacionarmos como em muitos casos as distintas transcrições, consciente ou inconscientemente, incluem erros. Sirva como exemplo a edição das Ordenanzas de Tenerife, por Núñez de la Peña e a sua comparação com o manuscrito original conservado no Arquivo Municipal de La Laguna, onde podemos observar, relativamente ao léxico açucareiro, diferenças significativas. Fig. 16 Na nossa proposta, apresentar a digitalização juntamente com a transcrição permitirá a sua correcção e não continuar com a repetição de erros, que se sucedem, por não se consultarem os originais. Também com este projecto levamos a cabo uma análise minuciosa das transcrições, seja directamente do documento original ou através da sua digitalização em formato Word ou utilizando Oxygen, o que facilita a transcrição dos documentos, por linha, como vemos no exemplo seguinte: 61 Fig. 17 A transcrição literal do original, em Word ou em Oxygen, permitiu-nos também DVVLQDODU DOJXQV WHUPRV QHVWH FDVR UHODFLRQDGRV FRP R D©¼FDU TXH ˋJXUDP QRV dicionários, com uma cronologia do açúcar em ambos os lados do Atlântico que é necessário rever, como vemos a título de exemplo no seguinte quadro121: Fig. 18 121 Nas publicações dos últimos anos estão a corrigir-se estes desfasamentos. Considere-se como exemplo o trabalho de NUNES, N. (2018), “O léxico da cultura açucareira na construção do mundo atlântico: Madeira, Canarias, Cabo Verde, S. Tomé y Príncipe, Brasil, Venezuela e Colômbia”, in Veredas. Revista de Associação Internacional dos Lusitanistas, 29. 62 A visibilidade da documentação, apresentando a digitalização do documento original e a transcrição literal, permite a realização de estudos comparativos entre diferentes zonas, como revelámos, entre outros, na análise dos decretos sobre a cana de açúcar 122. Não restam dúvidas de que as possibilidades são importantes não só para a temática açucareira, como sublinhámos, mas também para outras temáticas. Considere-se como exemplo a emergência na documentação canária, de princípios do século XVII, da figura do «uncionero», um profissional de medicina que não tinha sido documentado até à data nas ilhas atlânticas, mas sim num hospital mexicano, o da Puebla de los Ángeles, quase uma centúria depois, e que entre os seus instrumentos e produtos curativos figurava o açúcar rosado. Nesta linha da história atlântica e de transferências desde as ilhas até ao continente americano, podemos analisar, entre outros aspectos, a legislação eclesiástica, como é o caso do dízimo aplicado aos canaviais e ao açúcar obtido depois da sua transformação. Assim vemos como as disposições aprovadas para as Canárias se aplicaram posteriormente na área mexicana, como se observa na Real Cédula à Audiência de México. Numa reclamação do bispo de Tlaxcala, este insiste que o contador Rodrigo de Albornoz, que tem um engenho na cidade de Veracruz, cobre o dízimo em açúcar e não em dinheiro, como era hábito nas Ilhas Canárias e nas outras ilhas onde havia engenhos de açúcar e tendo em conta a qualidade dessa terra e o que se faz nisto na Ilha Espanhola, chamadas e ouvidas as partes façam breve cumprimento de justiça.123 Esta perspetiva permite-nos ainda abordar aspetos relacionados com a botânica e os diferentes tipos de madeira utilizados: carvalho, barbuzano, pau-branco... para os engenhos, eixos, canais, etc., mas também aspectos relacionados com a vida quotidiana, como, por exemplo, o mobiliário das casas camponesas, das quintas ou das residências dos grupos mais ricos: quadros, livros… Tudo isto sem esquecer outra linha que nos últimos tempos está a ter um amplo desenvolvimento, como os estudos de género ou a prosopografia. São, a título de exemplo para o século XVI, com documentação das Canárias, as análises dos testamentos de mulheres guanches, como o caso de Catalina Guanimençe124, ou de personagens das elites, como Águeda de Monteverde ou Ana 122 VIÑA-BRITO, A. (2013), “Ordenanzas sobre el azúcar de caña en el siglo XVI. Un análisis comparativo”, in Historia. Instituciones. Documentos, 40, pp. 397-425. 123 AGI, MEXICO, 1088, L. 3, ff. 4v-5r. 124 TABARES DE NAVA y MARÍN, L. y SANTANA RODRÍGUEZ, L. (2017), Testamentos de guanches (1505- 1550), La Laguna, Instituto de Estudios Canarios. 63 Jaques125, ambas administradoras de importantes patrimónios familiares, uma vez que chegam à viuvez, intervindo diretamente na política familiar dos seus descendentes, encarregando-se dos livros de contas e inclusivamente participando em companhias comerciais. Evidentemente, estudos de toponímia, contratos de compra-venda ou a maneira como se desenvolvia a vida nas Canárias no primeiro século da colonização, onde o açúcar foi o principal produto de exportação. Fig. 19: AHPLP, PN 737, ff. 118 y ss. Também a documentação notarial, através do projeto CORDICan, nos permitiu uma aproximação aos grupos marginais da sociedade, não tanto em função da estratificação vigente (grandes proprietários, técnicos, pessoal assalariado, escravos) e sua procedência geográfica (portugueses, madeirenses, africanos, flamencos…), mas alguns processos por violação da norma, sejam estes maus tratos, sodomia, ou outros… Assinalámos que este Corpus não se limita à digitalização e transcrição da documentação, mas que, para além disso, levamos a cabo a marcação de textos XML-TEI, 125 VIÑA-BRITO, A. (2002), “Doña Águeda de Monteverde y la administración de un patrimonio familiar”, in Revista de Historia de Canarias, 184, pp. 341-360; IDEM (2019), “El patrimonio de Ana Jaques a través del inventario de sus bienes”, in Un periplo docente e investigador. Homenaje al profesor Antonio Tejera Gaspar, La Laguna, Servicio de Publicaciones de la ULL, pp. 353-368. 64 o que nos permite a visualização do texto normalizado e tokenizado, e, inclusivamente, uma apresentação morfossintática de grande interesse para os linguistas. Fig. 20: AHPTF, PN 650, ff. 176 y ss. Cada um dos documentos que apresentamos em CORDICan leva os seus próprios metadados, o que permite a localização do documento por notário, data, temática, toponímia,… e ainda possibilita a contextualização de cada documento. Fig. 21 65 Não restam dúvidas de que as ferramentas de edição em linha contribuem para a optimização da oferta tradicional do que poderíamos considerar instrumentos descritivos clássicos, pois, como sustenta Torruella, hoje em dia «alterou-se totalmente a forma de aceder aos textos, de trabalhar com eles e de apresentar e colocar à disposição da comunidade científica os resultados obtidos»126 . 3. Conclusões Em síntese, a nossa proposta de CORDICan inscreve-se nas Humanidades Digitais que constituem, como assinalou Álvaro Baraíbar, um dos desafios que a sociedade da informação lançou aos humanistas, já que nos resultados das nossas investigações, na difusão e divulgação do conhecimento, está precisamente um dos pontos fortes da transferência das Humanidades para a sociedade. Como dissemos no início, neste breve artigo, apresentamos uma mostra sintetizada de um projeto em curso, formado por equipas interdisciplinares que potenciam os avanços da investigação inserida nas denominadas Humanidades Digitais, tendo sempre em conta que a tecnologia é um meio útil e necessário, mas não um fim em si mesma127, como esperamos ter demonstrado nas páginas precedentes. Em suma, apostamos nesta nova fórmula, já que a aplicação de novas técnicas permitirá novos avanços na História. 126 TORRUELLA (2017), Lingüística de corpus: génesis y bases metodológicas en los corpus (históricos) para la investigación lingüística, N. Y., Peter Lang. 127 MORALES, Angulo (2006), “Algunas reflexiones sobre los recursos de los archivos históricos en Internet y la enseñanza de la Historia”, in Hispania, LXVI, pp. 38 e 50. 66 O Tabaco nos Impérios Ibéricos desde os Arquipélagos Atlânticos nos séculos XVII-XIX. Uma visão comparada128 Tobacco in the Iberian Empires from the Atlantic Archipelagos in the 17th-19th centuries. A compared view Santiago de Luxán Meléndez (ULPGC) santiago.deluxan@ulpgc.es Margarida Vaz do Rego Machado (CHAM/UAc) maria.mm.machado@uac.pt Resumo O monopólio de tabaco português, cuja criação é paralela à do estanco espanhol, esteve sempre restringido ao território peninsular e aos arquipélagos do Atlântico médio, estando quase toda a sua história nas mãos de arrendadores (“Mercantilismo partilhado”), o que difere do que se passou em Espanha. As Ilhas Canárias também estiveram integradas desde o princípio no estanco espanhol, em regime de arrendamento até 1717 e posteriormente em administração direta. Nesta comunicação vamos estabelecer as linhas mestras da economia tabaqueira entre os séculos XVII-XIX em 128 Projecto de Investigação La configuración de los espacios atlánticos ibéricos. de políticas imperiales a políticas nacionales en torno al tabaco (siglos XVII-XIX), HAR2015-66142-R. O presente artigo é a versão portuguesa de: Santiago de Luxán Melendez e Margarida Vaz do Rego Machado, “El tabaco en los Archipélagos Ibéricos del Atlántico Medio (siglos XVII-XIX). Una visión comparada” in Santiago de Luxán Meléndez, João Figueiroa Rego y Vicent Sanz Rozalén (Eds.), Grandes vicio, grandes ingresos. El monopólio del tabaco en los impérios ibéricos. Siglos XVII-XX, 2019, Madrid, Centro de Estudos políticos y Constitucionales, pp.153-178. 67 ambos os arquipélagos, tendo muito presente o contexto da história atlântica e das relações com o Brasil e com as Antilhas. Palavras-chave: Sistema atlântico do tabaco ibérico, Monopólio do tabaco, Canárias, Açores, Madeira. Abstract The monopoly of Portuguese tobacco, whose creation is parallel to that of the Spanish, was always restricted to the main land and to the two archipelagos of the mid- Atlantic, with almost all its history in the hands of landlords (“Shared Mercantilism”), unlike what happened in Spain. The Canary Islands were also integrated from the beginning into the Spanish tobacco income, under lease until 1717 and subsequently in administration. In this communication we will try to establish the main lines of the tobacco economy from the 17th-19th century in both archipelagos, bearing in mind the context of Atlantic history and relations with Brazil and the Antilles. Keywords: Atlantic system of Iberian tobacco, Monopoly of tobacco, Canary Islands, Azores, Madeira. “Se o tabaco não existisse, os Estados modernos teriam tido de o inventar: o tabaco é o imposto sonhado por todos os governos”129 1. Introdução 1.1. Sistema Atlântico do Tabaco e monopólio Entendemos o sistema atlântico do tabaco como uma organização complexa de relações entre ambas as costas do oceano em torno do produto mencionado, que adquire a sua maturidade no século XVIII”130, no qual os Impérios europeus estiveram envolvi- 129 MÓNICA, Maria Filomena (1992), “Negócios e política: os tabacos (1800-1890), in Análise Social, vol. XXVII, (116-117), 1992 (2°-3°), p. 461. 130 GARATE, Ojanguren, MONTSERAT, M. y LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2009): “Cuba y Nueva España: los dos pilares del tabaco español en el siglo XVIII”, in Ulúa. Revista de Historia, Sociedad y Cultura (Instituto de Investigaciones Histórico-Sociales. Universidad Veracruzana), v. 14, pp. 35-74. 68 dos e cujos os eixos principais foram o Chesapeake (Virginia)-Londres, Glasgow-Holan- da-França, Bahia-Lisboa-Mina-Espanha e Nova Espanha-Cuba-Sevilha (Cádis)131. Toda- via, há ainda que referir a Europa-América-África pois, no caso de Espanha, trocavam-se escravos por tabaco132 na Ilha de Cuba e, no caso de Portugal, tabaco por escravos numa rota do Brasil a Angola e à Mina133. Na etapa imediatamente anterior à criação dos estancos português e espanhol (1580-1640), houve uma certa convergência. Segundo Elliott, entre os Atlânticos espanhol e português há uma escala suficientemente importante que nos permite falar deles como componentes de um só Atlântico ibérico, nos aspetos defensivos e económicos e, de modo especial, no tráfico de escravos. Nos momentos em que se criou o estanco, “Lisboa era o centro deste Atlântico sul português. Funcionava como ponto recetor de açúcar e tabaco brasileiros, prata e demais mercadorias contrabandeadas da América Espanhola, assim como centro de distribuição e reexportação para portos do norte da Europa”134. Da parte espanhola tentou-se criar um estanco imperial hispânico135 processo este que culminou na segunda metade do século XVIII, muito ligado às necessidades militares de defesa das Índias e cuja interpretação requere um enfoque conjunto do monopólio espanhol e dos estancos americanos. Este sistema aproxima o estanco português ao francês, pois integrou o tabaco no siatema de arrendamento do contrato geral emm 1730136. Assim, não houve um estanco 131 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de y GÁRATE, Ojanguren, MONTSERRAT (2010) “La creación de un Sistema Atlántico del Tabaco (siglos XVII-XVIII). El papel de los monopolios tabaqueros. Una lectura desde la perspectiva española”, in Anais de História de Além-Mar, XI, pp.145-175. 132 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, LUXÁN HERNANDEZ, Lia de (2016), “Las compañías reales de esclavos y la integración de Cuba en el sistema atlántico del tabaco español 1696-1739”, in Anuario de Estudios Atlánticos, nº 62: 062-014. 133 ACCIOLI LOPES, Gustavo, Negocio da Costa da Mina e comercio atlántico. Tabaco, açucar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760). Tese de doutoramento, São Paulo, Universidade de São Paulo, Faculdade de filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/8/8137/tde.../GUSTAVO_ACIOLI_LOPES.pdf., CHAMBOULEYRON, Rafael (2006), “Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII)”, in Revista Brasileira de História, vol. 26, núm. 52, pp. 79-114. 134 ELLIOTT, John (2012),”El Atlantico Espanhol y el Atlantico Luso: divergancias y convergencias”,XX Coloquio de Historia Coloquio Canario-America, p.26. Disponível em: http://coloqioscanariasamerica. casadecolon.com/index.php/CHCA/issue/view/269. 135 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2019), “El proceso de construcción del estanco imperial hispánico 1620-1786. Las reformas borbónicas del siglo XVIII”, in Anuario de Estudios Atlánticos, Las Palmas de Gran Canaria, pp. 961-1011. 136 DURAND, Yves (1971), Les Fermiers généraux au XVIIIe siècle, París, Presses Universitaires de Fran- ce. PRICE, Jacob (1973), France and the Chesapeake. A history of the French Tobacco Monopoly, 1674-1795, 69 Imperial, ainda que possamos referir-nos a um sistema atlântico do tabaco lusitano137, dado que, o cultivo desta planta efetuava-se no norte do Brasil dando origem a um intercâmbio regular entre o Jardim de Lisboa e os viveiros de escravos da costa africana onde, desde a queda de São Jorge de Mina, em 1637, pelas mãos de os holandeses, apenas se podia comercializar rolos de tabaco brasileiro que, apesar de serem de 3ª categoria, eram muito apreciados pelos africanos, por serem pincelados de melaço e rum.138. Quando utilizamos a palavra monopólio do tabaco estamo-nos a referir, por um lado, a uma regalia do monarca, que tem o poder para estabelecer direitos sobre o comércio e, por outro, à prerrogativa para reservar para si a produção, venda e distribuição de determinados produtos (estancos), neste caso do tabaco139: O monopólio mercantilista foi, mais do que um modelo económico, uma proposta política de controlo do mercado nacional ainda que incipiente, no caso das monarquias continentais e, por isso, foi mais uma prática do que uma conceção teórica sobre a organização da atividade económica. A a sua importância esteve limitada aos pressupostos concretos,como o sistema geral de comércio, os quais foram, por outro lado, bastante limitados pela competência do contrabando140. 2. A Historiografia do tabaco dos Arquipélagos do Atlântico Médio em 2018 O estudo comparado dos Impérios Ibéricos (2012-2018) e a criação de um Seminário permanente de História do Tabaco, entre as univerdidades espanholas e portuguesas, and of Its Relationship to the British and American tobacco trades. Michigan, University of Michigan Press. WHITE, Eugene, (2004) “From privatized to government-administered tax collection: tax farming in eigthenth-century France”, Economic History Review, LVII, 4, pp. 636-663. 137 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, dir., (2014), Política y Hacienda del Tabaco en los Imperios Ibéricos (Siglos XVII-XIX). Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, pp. 9-20. 138 VERGER, Pierre (1964), “Rôlen joué par le tabac de Bahia dans la traite des eclaves au Golfe do Bénin”, en Cahiers d’études africaines, 4, nº 15, p .354. 139 ARTOLA, Miguel, La Hacienda del Antiguo Régimen, Madrid, Alianza-Banco de España. Segundo o Dicionário da RAE: “embargo ou proibição da circulação e venda livre de algunas coisas ou disposição que se faz para reservar exclusivamente as vendas de mercadorias ou géneros, fixando os preços a que se devem vender.”Disponível em: http://dle.rae.es/?w= [Consultado el 6/07/2018]. 140 BERGASA PERDOMO, Oscar (2014), “¿Soñaban los Déspotas con Monopolios perfectos? Una visión a la luz de la teoría económica”, in LUXAN MELÉNDEZ, Santiago de, dir., Política y hacienda del tabaco … ob. cit., p. 358. 70 significou um novo impulso para a historiografia do mesmo e impulsionou-nos a ensaiar uma comparação entre os arquipélagos que formam a Macaronesia, com excepção de Cabo Verde. Na historiografia do tabaco do império hispânico, antes da segunda metade do século XX, podem assinalar-se várias etapas (Luxán 2004, Alonso, Gálvez e Luxán 2006, Rodríguez Gordillo 2009 e Luxán 2014). Uma primeira fase seria constituída pelos estudos científico- medicinais do século XVI-XVII. Em segundo lugar, no século XVIII, há que mencionar alguns estudos referentes tanto à América espanhola, como ao Brasil (Antonil, Vázquez de Espinosa, Maniau e Unanue, por exemplo). Um terceiro momento corresponderia aos anos centrais do século XIX (nos quais esteve aberto o debate parlamentar sobre o estanco, época dos primeiros ensaios sobre o seu cultivo em Espanha). A quarta etapa é coincidente com o estabelecimento e desenvolvimento da Arrendatária de Tabacos (1887-1944), período em que as mudanças tecnológicas nos processos industriais são manifestas (Comín e Martín Aceña, 1999). O discurso histórico deveu-se a homens como García de Torres (1875), Delgado Martín (1892) ou Carmona (1900), que foram funcionários das Finanças ou quadros diretivos da Arrendatária. Desde meados do século XX, e agora referimo-nos a Espanha e Portugal, tem havido duas sequências diferenciadas. Antes de 1998 os historiadores ocuparam-se, como se fossem de mundos diferentes: do âmbito americano, por um lado, e do monopólio espanhol e portu- guês em menor medida, por outro lado. Para o caso espanhol há que mencionar como impres- cindíveis os nomes de Castañeda, Pérez Vidal, Rodríguez Gordillo (1977, 1978, 1993 y 1994), Garzón Pareja (1970), Fátima Melián (1986), González Enciso, Alonso Álvarez e ultimamente Miranda Calderin e Stubs. Para o português, os de Veger, Lugar, Esteves dos Santos e Nardi. Situámos uma nova etapa no desenvolvimento historiográfico em 1998, para destacar a renovação e a mudança que o Simpósio Tabaco e Economia no século XVIII (Universidade de Navarra) significou; desta reunião surgiu o Grupo de Estudos de Tabaco (Greta) que dinamizou em Espanha a história do tabaco. A este encontro internacional, juntaremos a sessão: O tabaco na História Económica, realizada no VIII Congresso da Associação Espanhola de História Económica (Santiago 2005). O terceiro ponto de partida da nova historiografia foi o livro conjunto sobre o monopólio espanhol de Comín e Martín Aceña. Há ainda a destacar as contribuições de grande interesse sobre a América espanhola referentes aos distintos monopólios, que se foram estabelecendo nos diversos territórios americanos e que renovaram as contribuições clássicas. Para os arquipélagos portugueses, os estudos aprofundados sobre o tabaco iniciaram- se, já neste século, com a entrada de Margarida Vaz do Rego Machado para o projeto La 71 configuración de los espacios atlánticos ibéricos. De politicas imperiales a políticas nacionales en torno al tabaco (siglos XVII-XIX). Até então, os historiadores da História Económica Açoriana, do Antigo Regime, praticamente não se referem ao tabaco, fazendo apenas alusões genéricas, dentro de uma conjuntura económica geral. São exemplos: Maria Olímpia da Rocha Gil, que dedicou o seu estudo ao século XVII141, Avelino Freitas de Meneses e José Damião Rodrigues, para os séculos XVII e XVIII142 ou, ainda, Ricardo Madruga da Costa para as primeiras duas décadas do século XIX143. O mesmo já não acontece para a segunda metade do século XIX, principalmente para as últimas décadas. Os trabalhos de Maria Isabel João e Fátima Sequeira Dias mostram a grande importância da produção e manufaturação deste produto na economia, sociedade e política das Ilhas, embora com um enfoque principal na ilha de S. Miguel144. Para o Arquipélago da Madeira, o estado da historiografia tabaqueira é ainda menor. Paticamente não houve estudos aprofundados e autónomos sobre o tema. Apenas uma introdução ao seu estudo feita por Margarida Vaz do Rego Machado, em 2017145. 3. Variáveis a ter em conta num estudo camparado dos sistemas de tabaco ibéricos, incluindo os arquipélagos do Atlântico Médio 3.1. A produção da matéria prima e a mão-de-obra: No que diz respeito à produção da matéria-prima, é necessário apontar como principal característica na América espanhola a concentração do cultivo em certas áreas. Uma 141 GIL, Mª Olímpia da Rocha (1979), O Arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos económicos e sociais (1575-1675), Castelo Branco, Edição da Autora. 142 MENESES,Avelino Freitas de (1995), Os Açores nas encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), Ponta Delgada, Universidade dos Açores, vols.I e II. MENESES, Avelino, REIS LEITE, José Guilherme, MATOS, Artur Teodoro, coords., (2008), História dos Açores. Do descobrimento ao século XX, Angra do Heroísmo, Instituto Cultural dos Açores, vol. I. RODRIGUES, José Damião (2003), São Miguel no século XVIII. Casa elites e poderes, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. I. 143 COSTA, Ricardo Madruga (2005), Os Açores em finais do regime da Capitania-Geral, 1800-1820, Núcleo Cultural da Horta, Câmara Municipal da Horta, vol I. 144 JOÃO, Maria Isabel (1991), Os Açores no século XIX: Economia, Sociedade e Movimentos Autonomistas, Lisboa, Edição Cosmos, pp. 76-101. DIAS, Fátima Sequeira (1995) e (2007): A Fábrica de tabaco Micaelense, Ponta Delgada, Jornal da Cultura, edição da Fábrica de Tabaco Micaelense; “Uma abordagem à estratégia comercial da Fábrica de Tabaco Micaelenses durante a regência de José Bensaúde (1866- 1922)”, in Indiferentes à diferenças. Os Judeus dos Açores nos séculos XIX e XX, Ponta Delgada, Centro de Estudos de Economia Aplicada do Atlântico – CCAplA, pp. 204 a 238. 145 MACHADO, Margarida Vaz do Rego (2017), ” Ponta Delgada e Funchal: entre o contrato do Tabaco e a luta pela sua abolição” in Duarte Chaves (coord.), Açores e Madeira: Percursos de memória e identidade, Edição Santa Casa da Misericórdia, S. Jorge, pp.149-157. 72 segunda característica seria a escolha das Antilhas como área preferencial de produção, o que Céspedes descreveu, em 1991, como um proteccionismo frente a outros Reinos das Índias. No caso de Portugal, a concentração ocorreu na Região da Bahia, regulada pelas Instruções e pela política de fomento ao cultivo. Se nos referirmos à mão de obra, devemos destacar a presença de trabalhos forçados que resultaram num fluxo de escravos da África para o Novo Mundo, através de companhias Reais ou privadas. Concentrando-nos no caso espanhol, devemos referir ao papel da Companhia Francesa da Guiné, da Companhia do Mar do Sul e da Companhia Real de Havana. A “Carrera de Indias” permaneceu fora dos fluxos que se estabeleceram entre a África e o Caribe, embora, em Havana, uma parte importante de escravos fosse trocado por tabaco. Não há evidências, porém, no caso da Companhia Portuguesa da Guiné, que também transportava escravos para o Caribe, que tivesse interesse em adquirir tabaco cubano. O principal concorrente do tabaco do Império espanhol e do Brasil foi o da Baía de Chesapeake (Maryland e Virgínia). O sistema atlântico do tabaco espanhol esteve muito constrangido pelo tabaco de Virginia (Rodríguez Gordillo, 2014). Os dados das entradas de tabacos na Real Fábrica de Sevilha proporcionam-nos a evidência de uma entrada legal anual de uns 21,8% de todos os tabacos controlados pela manufatura da capital andaluza e quase 40% em relação a todos os tabacos chegados das colónias espanholas, para o período de 1711/12-1760. Já na esfera da política económica, enquanto que a Espanha demonstrou uma permanente preocupação com as compras de tabaco em rolo do Brasil, desenvolvendo experiências e projetos muito caros para tentar reduzi-las ou mesmo erradicá-las por completo, com o tabaco da Virgínia existiu uma atitude muito mais passiva. O tabaco norte-americano continuou sendo importado em grandes quantidades para abastecer o estanco espanhol no século XVIII – a modificação na gestão do monopólio com o controlo direto por parte da Real Fazenda não significou alteração alguma — e representou uma forte e constante sangria económica para a monarquia espanhola. O tabaco do Brasil converteu-se na ligação entre os dois monopólios ibéricos já que, o território espanhol, foi o principal mercado deste produto. As razões do êxito da Virgínia e do Brasil devem ser procuradas no seu baixo preço; nas claudicações 73 internacionais de Espanha; nos interesses de certos grupos hegemónicos de um lado e do outro do Atlântico; na expansão crescente dos cigarros, que se elaboravam com esta variedade de folha, e nas dificuldades do estanco para conseguir fazer frente ao aumento do consumo. Assim, quebrava-se um dos fundamentos essenciais das teorias mercantilistas que, em teoria, regiam a política económica espanhola. O tabaco cubano verá então, seriamente, ameaçado a sua presença no mercado espanhol pela competição dos produtos brasileiros e virginianos. As Canárias abasteceram-se maioritariamente, antes do século XIX, de tabaco procedente de Havana (fundamentalmente pó), enquanto que os arquipélagos atlânticos portugueses o fizeram de tabaco brasileiro, mas via Lisboa. Não há notícias de intercâmbios de tabaco entre os arquipélagos portugueses e espanhóis. Portanto, pelo menos até ao século XIX os arquipélagos não foram produtores e abasteceram-se das Antilhas espanholas (Havana) e da região da Bahia, respetivamente. Isto não quer dizer que não existisse algum cultivo clandestino, ainda que com pouca expressão. 3.2. A sua aquisição: Com relação ao preço de compra fixado pela autoridade monopolista, circunstâncias e mercados do tabaco não adquirido pelo monopólio e tabacos coloniais comprados pelo Estanco devemos fazer as seguintes considerações. O monopólio português, cuja criação é paralela à do estanco espanhol, esteve sempre restringido ao território peninsular e ao dos arquipélagos do Atlântico médio, estando quase toda a sua história em mãos de arrendadores. Na verdade, o monopólio português sempre foi bastante rígido, nomeadamente em dois aspetos principais: na produção, que apenas podia ser feita no Brasil (principalmente na Bahia), e no comércio, este na mão de arrendadores sediados em Lisboa. Todo o tabaco que chegava aos Açores e Madeira teria, obrigatoriamente, de passar por Lisboa. O contrato estipulava que só se podia cultivar tabaco no Brasil e que este teria de vir diretamente a Lisboa e só depois redistribuído pelo Reino e seus arquipélagos. O monopólio português fazia-se sentir especialmente no comércio que, desde sempre, esteve arrendado, tanto aos contratadores gerais, como aos das Ilhas, estes subarrendadores dos primeiros, pelo menos até finais de setecentos, altura em que a estratégia de Lisboa é alterada e os contratadores insulares passam a meros 74 administradores dos primeiros. Devido a uma apertada vigilância (pelo menos na teoria) não há notícias oficiais de vindas diretas nem do Brasil nem de outras nações estrangeiras, nem que tivéssemos agentes estrangeiros dedicados a este comércio. O que não quer dizer que não se fizesse através do contrabando. Na mesma linha, não temos notícias oficiais de relações comerciais em rotas diretas com as Canárias e mesmo entre as Ilhas dos Açores e da Madeira. Sabemos que os contratadores açorianos se relacionavam entre si e com os da Madeira; que por vezes o tabaco era redistribuído entre eles, mas apenas em épocas de penúria, quando o tabaco de Lisboa tardava a chegar, devido ao mau tempo ou, mais frequentemente, à falta de transporte. Daí a importância de um dos privilégios dos contratadores do Tabaco ser o de poderem mandar navios estrangeiros às ilhas com os seus tabacos. O consumo de tabaco nas ilhas açorianas não era dos maiores, se tivermos em conta os números do Reino, mas a sua importância foi grande no que concerne à economia insular. Tomando como estudo de caso os tabacos que entraram na Alfândega de Ponta Delgada, nos anos de 1764 a 1783, registamos as seguintes quantidades: Tabela I – Entrada de tabaco no porto de Ponta Delgada Data Quantidades(em rolos) Peso em kg (1rolo=12 a 14@=210kg 1764 104 rolos e 8 barris em pó 21 840kg 1765 210 rolos 44 100Kg 1766 90 rolos 18 900kg 1768 40 rolos 8 400Kg 1769 132 rolos 27 720 Kg 1774 70 rolos 14 700Kg 1775 70 rolos 14 700Kg 1776 85 rolos 17 850 Kg 1777 110 rolos 23 200Kg 1778 -* 1779 270 rolos 56 700 Kg 1780 -* 1781 177 rolos 37 170 Kg 1782 90 rolos 18 900kg 1783 110 23 200Kg Fonte: BPARPD - Fundo da Alfândega de Ponta Delgada, Livros de Entradas, 1763 a 1784. 75 Uma média de quase 120 rolos por ano (cerca de 25 200 kg) que pouco se modificou até aos primeiros anos de oitocentos, contrariamente ao preço do arrendamento, que passou de 4 800$000 réis ano, em 1688, para 25 300$000 réis, para todo o arquipélago. Para os primeiros anos de 1800, o preço a pagar pelos estanqueiros em S. Miguel foi de 4 000$000 réis anuais e o consumo rendeu ao contrato régio cerca de 40.000$000 réis por ano. Em conclusão, poderemos dizer que os Açores e mesmo a Madeira nunca foram placas giratórias das rotas comerciais atlânticas do Tabaco, que apenas se integraram nelas indiretamente, na medida em que o tabaco do Brasil, que chegava às Ilhas, vinha sempre através do controlo de Lisboa. No caso das Canárias, antes de 1717: o tabaco, legalmente importado procedia exclusivamente de Havana. Durante o século XVII os dados que temos falam-nos de um consumo muito modesto, no qual a Ilha de Tenerife ocupava o lugar relevante (entre 1660-1669: 60%). O consumo total das Ilhas estaria à volta dos 11.500 libras, com um valor próximo dos 200.000 rs.vn. 10 dos 18 navios chegados ao Arquipélago desde Cuba, entre 1680-1687, trouxeram um total de 40.081 libras de pó e 1.900 molhos de folha (ou seja, o consumo legal de 4 anos de todas as ilhas). No século XVII o tabaco chegava diretamente a Santa Cruz de La Palma e ao Porto de la Cruz em Tenerife a 16 destinatários, um dos quais o capitão Simón Herrera (85% do total) nas duas ilhas. Excecionalmente, também vinham, da Venezuela. Pérez Mallaina estudou o caso concreto de Juan Salido Pacheco, durante o ano de 1665, que, como testa-de-ferro de comerciantes flamencos, desviava o tabaco para a Holanda [criação do Juiz Superintendente das Índias em 1657]. No Memorial al Consejo de Indias (1689) do Marquês de Mejorada, arrendador da renda, solicitava-se que se tomassem medidas contra a fraude do tabaco. Tabela II – Vendas estimadas de Tabaco nas Canárias entre 1660-1669, em livbras e reales de vellón Ilhas Libras Ris. Vellón Tenerife 6.750 120.902 Gran Canaria 2.233 40.000 Forte Ventuta 781 14.000 Lanzarote 836 15.000 Las Palmas 560 10.050 Total 11.160 199.952 Fonte: Mélian, 1986, elaboração própria. 76 Tabela III – Tabaco enviado de Havana (168-1687) Portos de destino Nº de barcos Total tabaco em Libras Santa Cruz de Tenerife 5 12.412 La Palma 2 21.500 La Oratava 2 136.616 Garachico 1 1.790 Total 10 172.318 (199.318) Fonte: López Cantos (1979). Durante o século XVIII, dois centros de aquisição: a fábrica de Havana e a fábri- ca de Sevilha. Podemos, ainda, apontar duas rotas básicas: Havana-Santa Cruz de Te- nerife-Cádiz e Sevilha-Cádiz-Santa Cruz de Tenerife com o retorno correspondente. Além disso a Ilhas conveerteram-se num centro de redistribuição do produto. Há que assinalar que, entre 1717-1720, contra o comércio ilícito implantou-se, por um lado, a administração direta do tabaco com a Intendência, adiantando-se as Canárias ao con- junto do território do estanco, exceto Madrid e Sevilha. O Intendente era superior ao Juiz das Índias. Por outro lado, regulou-se o comércio com a América (Regulamento de 1718), dando estabilidade a este tráfico. A criação da Fábrica de Havana e da Intendên- cia nas Canárias (1717) foram contestadas pela sublevação dos cultivadores em três episódios entre 1717-1723, o chamado motim contra a intendência nas Canárias. A nova administração da renda, apropriou-se do tabaco (1718-1719) e reteve um volume importante do mesmo produto que, estando nas mãos de mercadores franceses (Com- panhia Francesa da Guiné), não foi autorizado a sair, até à Real Ordem de 18-IV-1719. A importância estratégica das Ilhas Canárias como centro redistribuidor do tabaco americano -especialmente o pó cubano- deve ser destacada fora do circuito do Monopólio espanhol. Consequentemente, também, não é de estranhar que a Fazenda Real considerasse imprescindível assumir a administração da Renda do tabaco no Arquipélago, adiantando-se ao resto do território do Estanco. Armazenaram-se 1.410.941 libras de tabaco de todos os tipos, basicamente entre 1718-1719, face às 35 ou 40.000 libras anuais de consumo legal nas Ilhas mais tarde. A margem para o tráfico fraudulento era espetacular. Em Cádis, em datas próximas, apenas se desembarcaria 2,7 vezes mais tabaco do que nas Canárias e, relativamente às entradas na fábrica de São Pedro (Sevilha), o tabaco que manipulavam os canários alcançaria um significativo 77 21%. Por último há que assinalar as dificuldades do Estanco espanhol para absorver o tabaco da Fábrica de Havana e das Ilhas Canárias na conjuntura de 1720. 3.3. O transporte: A situação da “Carrera de Indias” em que os navios navegavam em frotas ou sozinhos (navios de registro) deve ser levada em consideração. Há que, também, referir-se às dificuldades do transporte terrestre, ao tabaco que entrava livremente em Portugal, ao papel do Jardim de Lisboa e ao Contato direto entre a Bahia e a Costa africano. Neste quadro, são notáveis as diferenças de oferta entre os arquipélagos da Madeira e dos Açores e das Canárias. A grande diferença com as Ilhas Canárias é que estas eram abastecidas, em grande medida, diretamente de Havana, devido à sua posição privilegiada na “Carreira das Índias” – os barcos canários não passavam por Sevilha —, o que permitia uma certa autonomia aos administradores da Renda, desde que, em 1717, entrou em administração direta146. A Guerra da Sucessão alterou completamente tanto a oferta de tabaco em rama e pó, como os centros de distribuição, gerou escassez e excesso do produto no mercado nacional e, em última instância, uma resposta reguladora da Coroa, que tentou modificar a situação com uma mudança institucional (Fábrica das Índias em Havana e Intendência nas Canárias). Com a entrada da Real Companhia de Havana (1739-1760), as Canárias tornaram-se num mercado marginal, mas converteram-se numa fonte fiscal de interesse (o produto do tabaco irá na integra) para os cofres da monarquia. A quantidade de tabaco comprado à força pela Renda, no período da Intendência, manteve abastecido o Arquipélago até 1726, convertendo-se durante esta etapa, sob a administração Martín de Loynaz, em reexportadora do produto para o território do monopólio. 146 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2007), “Canarias. Una administración ultraperiférica de la renta del tabaco durante el siglo XVIII”, in RODRÍGUEZ GORDILLO José Manuel, y GÁRATE OJANGUREN, Montserrat, dirs., El monopolio español de tabacos en el siglo XVIII. Consumos y valores: una perspectiva regional Madrid, Fundación Altadis, Ediciones El Umbral, pp. 461-495. 78 Tabela IV – Movimento de navios com tabaco (1726-1739) Havana-Canárias Cádis -Canárias Canárias-Cádis Anos Barcos Tab. en Libs. Barcos Tab. em Libs. Barcos Tab. en Libs 1726 3 493.891 1728 7 623.854 1729 2 21.760 1730 5 235.671 1731 2 10.189 1732 1 6.018 2 42.745 1733 1 9.168 3 127.251 1734 1 42.266 2 139.005 1735 1 65.161 1736 2 69.716 1 84.905 1737 1 7.735 1 95.799 1738 1 7.092 1739 1 7.099 total 3 119.82 5 37.112 29 1.940.231 Fonte: Melián (1986) (1726-1729) e AGS, DGR I, leg.2.404 (1730-1739). Gráfico I 79 Tabela V – Tabacos enviados pela Renda de tabacos para as Canárias desde Cádis durante a Guerra da Orelha de Jenkins (1739-1746) em libs. Anos Barcos Carga Nacionalidade Espanhola Holandesa Portuguesa Francesa Genovesa 1739 1 7.099 1 1740 1 7.191 1 1741 2 14.012 1 1 1742 1 7.093 1 1743 2 40.684 1 1 1744 2 41.753 1 1 1745 1 15.670 1 1746 4 1 2 1 total 14 175.165 4 1 2 5 2 Fonte: AGS, DGR,I, leg. 2.404 e II legs. 3.622 e 3.623 Tabela VI – Tabaco importado por Fuerteventura (1726-1741) Ano Tab. em pó (libras) Tab. em folha (libras) 1726 3.957 209 1727 1.305 ----- 1728 2481 ----- 1729 1.932 360 1730 1.581 ----- 1731 4.086 ----- 1732 5.167 ----- 1733 4.543 ----- 1734 3.229 ----- 1735 2.450 ----- 1736 3.294 ----- 1737 2.137 1/2 ----- 1739 1.236 1/2 ----- 1740 1.277 ----- 1741 1.638 ----- MELIÁN PACHECO, F. (1990). “Aproximación a la Historia del tabaco en Lanzarote y Fuerteventura hasta 1730”. II Jornada de Historia de Lanzarote y Fuerteventura, Tomo I. Arrecife. 80 Tabela VII – Barcos e tabaco remetido pela Renda para as Canárias (1746-1761) Anos Barcos Havana Tab. Libs. Barcos Cádis Tab. Libs. Total Barcos Total Tabacos 1746 2 96.355 4 41.663 6 138.018 1747 2 26.483 2 26.483 1748 1 13.184 1 22.788 3 35.972 1749 2 13.451 1 7.557 3 21.008 1750 1 19.158 1 19.158 1751 1 21.321 1 17.248 2 38.569 1752 1 40.702 2 27.630 3 68.332 1753 1 27.113 27.113 1754 1 26.971 2 30.586 3 57.557 1755 1 5.645 1 15.039 2 20.684 1756 1 47.770 1 47.770 1757 2 27.653 1 15.325 3 42.978 1758 1 27.355 1 15.420 2 42.775 1759 1 28.924 1 15.367 2 44.291 1760 2 29.479 2 29.479 1761 1 25.248 1 15.047 2 40.295 Total 21 476.812 16 223.670 37 700.482 Fonte: AGS, DGR, I, leg. 2.404 y II, legs. 3.622 y 3623 y Morales García (1991) Em 1753, doze navios formavam a frota canária (2 construídos em La Palma, 8 na América e dois na Península), enquanto que, 10 anos depois, eram 21 – ainda que quatro destes tivessem caído em poder dos ingleses na tomada de Havana. Antes da queda desta última cidade, regressaram ao Porto de Santa Cruz 21 navios. Os responsáveis das navegações, à exceção de José Antonio Uque Osorio (1746, 1749 y 1756) e Domingo Jansen (1757 y 1761), só realizaram uma viagem de regresso com tabaco. Para o conjunto do período, o tabaco procedente de Havana alcançava mais de dois terços do total, sendo o seu tráfico mais regular do que o de Sevilha. Os fluxos do tabaco eram levados em navios da Armada Real (La Castilla, España “alias El Santiago”, San Lucas “alias El Nuevo Conquistador” e El África) por um valor total de 300.016 pesos. 81 Tabela VIII – Tabacos enviados pela Factoría de Havana a todos os destinos em libs. (1-III-1765 al 26-III-1774) Destino Pó de qualidade especial Pó normal Rama Cigarros Rolos Cana Totais % total Espanha 298.138 12.157.155 17.805.584 89.318 55.478 313.052 30.718.725 87 Canárias 1.152 306.394 3.672 311.218 0,88 México 81.600 72.707 500.580 654.887 1,85 Campeche 97.918 97.918 0,27 Guatemala 7.512 7.512 0,02 Lima 172.312 268.238 439.800 1,24 Santa Fe 8.978 8.978 0,02 Cartagena 1.425 2.018.118 2.019.543 5,72 Panamá 2.102 1.029.334 1.031.436 2,92 Total outras possessões 275.081 379.101 3.917.860 4.572.042 12,95 % sobre total 48,05 3,02 18,03 Total geral 572.469 12.536.256 21.723.444 89.318 55.478 313.052 35.290.017 100 Fonte: AGI Cuba 1219 Tabela IX – Navios de tabaco chegados às Canárias (1762-1777) Anos Barcos- Havana libs Barcos de Cádiz libs Barcos totais Libs. 1762 1 12.123 1 12.123 1763 1 15.330 1 15.330 1764 1 29.594 1 23.023 2 52.617 1765 1 27.870 1 22.978 2 50.848 1766 1 12.795 1 12.795 1767 1 31.006 1 23.275 2 54.281 1768 1 36.280 1 19.990 2 56.270 1769 1 68.089 1 22.880 2 90.969 1770 1 23.248 1 23.248 1771 1 108.761 2 1.801 3 110.562 1772 1 68.269 1 23.486 2 91775 1773 1 23.352 1 23.352 1774 1775 2 3.431 2 32.692 4 36.123 1776 1 39.929 1 39.929 1777 2 46.442 2 46.442 Totales 11 426.024 16 290.620 27 716.664 Fonte: AGS, DGR,II, legs. 3622 y 3623 82 A perda do asiento por parte da Real Companhia de Havana, juntamente com a ocupação de San Cristovão pelos ingleses, interrompeu o tráfico com as Ilhas e causou grande consternação entre os comerciantes e cidadãos canários. O fluxo de tabaco para as Canárias, tanto desde Cuba, como desde Sevilha, demonstra-nos a recuperação imediata do tráfico depois da ocupação de Havana e uma tendência crescente nos envios, que alcançará o máximo em 1771-1772. A Fábrica de Havana continuará a ser a principal fornecedora do Arquipélago (74% do total), mas a Fábrica de Sevilha começará a desempenhar um papel de maior relevância, a partir de 1773. As Canárias estiveram à margem dos circuitos de tabaco do Brasil. Este último aspeto realça a relação direta entre Havana e as Canárias e uma singularidade notável relativamente ao mercado espanhol. As Canárias manterão, segundo os testemunhos dos funcionários da Renda, um volume considerável de tabaco clandestino, explicado pelos intercâmbios frequentes entre Havana e o Arquipélago. Em relação aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, o transporte de tabaco (maioritariamente em rolo) era feito diretamente dos contratadores em Lisboa para os que subarrendavam o contrato nas Ilhas, pois eram estes que detinham o monopólio da sua venda nas Ilhas. Tomando como estudo de caso os barcos que entraram na alfândega de Ponta delgada, nos anos de 1764 a 1783, registamos o seguinte movimento: Tabela X – Entrada de tabaco no porto de Ponta Delgada Data Nº navios 1764 4 1765 4 1766 4 1768 1 1769 5 1774 2 1775 3 1776 3 1777 2 1778 - 1779 3 1780 - 1781 3 1782 3 1783 2 Fonte: BPARPD - Fundo da Alfândega de Ponta Delgada, Livros de Entradas, 1763 a 1780. 83 Como dissemos este tabaco vinha de Lisboa diretamente para Ponta Delgada. Nestes anos apenas quatro exceções a esta regra: uma galera que veio com escala pela ilha da Terceira147, e as outras três: uma dirigiu-se para o Faial, as outras duas: uma para a Terceira e outra para Santa Maria, ambas com escala por Ponta Delgada148. Na verdade, os grupos Central e Ocidental do arquipélago tinham subcontratadores próprios (por vezes o arrendamento era feito pelo conjunto do arquipélago, mas a maior parte das vezes o Contrato era dividido em 3 Ramos: Angra, Horta e Ponta Delgada) e, por isso, recebiam diretamente tabaco de Lisboa. O mesmo acontecia com a Madeira, que também tinha uma rota direta do tabaco de Lisboa. Todavia as relações entre os três estanqueiros dos Açores e o da Madeira eram frequentes podendo, mesmo, haver auxílios de tabacos entre eles quando a conjuntura o exigisse. Quanto a Santa Maria, esta estava anexa ao estanco de S. Miguel, daí as relações serem mais frequentes e mais próximas. O transporte era assegurado por barcos de nacionalidade portuguesa e estrangeira, sendo que, nestes anos de estudo, há uma maioria de barcos estrangeiros: 11 galeras dinamarquesas, 9 inglesas e 2 holandesas, para 16 portuguesas, que vieram consignadas pelos administradores do tabaco em Lisboa ao administrador do tabaco em Ponta Delgada, neste caso, e para as décadas de sessenta de setecentos, ao capitão José de Azevedo. Esta vinda de navios estrangeiros estava diretamente relacionada com o privilégio dado aos contratadores do tabaco, de poderem mandar barcos estrangeiros consignados aos seus administradores nas ilhas. Normalmente vinham apenas com rolos de tabaco e com lastro de areia e cal, de modo a que na volta os barcos pudessem ir carregados de cereais, o produto mais importante de exportação açoriana para o Reino. 1DVG«FDGDVGHILQDLVGHVHWHQWDHRLWHQWDDHVWUDW«JLDPRGLˋFRXVHOLJHLUDPHQWH e são estreitadas as relações com os grandes negociantes da Ilha. A maior parte do Tabaco passa a vir consignado a estes agentes de comércio, com principal incidência para Leocádio Vieira e para o Drº António Francisco de Carvalho. Todavia, ter barcos prontos para levar o tabaco, logo que as necessidades se fizessem sentir, não era fácil e por isso o estanqueiro da Ilha de S. Miguel e Santa Maria, para os cinco primeiros anos de oitocentos preferia ter dois armadores mais ou menos contratados, que mandavam 147 BPARPD - Fundo a Alfandega de Ponta Delgada, Livro de Entrada, 1763-73, 17 de Outubro de 1764, fol.34; 148 BPARPD - Fundo a Alfandega de Ponta Delgada, Livro de Entrada, 1763-73, 20 de Março de 1765, fol, 47v e 22 de Agosto de 1768, fol. 141; Livro de Entrada, 1779, 27 de Maio de 1779, fol.10. 84 seus barcos aos Açores, trazendo tabaco e levando cereais. Os escolhidos foram os barcos dos armadores António Pereira Caldas e Álvaro Thomazini149. 3.4. A manufatura: Como dissemos o tabaco consumido no arquipélago das Canárias, era proveniente maioritariamente da Fábrica de Cuba (2/3), contra 1/3 que se manufaturava em Sevilha. Na verdade, nas Canárias não havia fábricas até ao Decreto Real de Portos francos em 1852. Esta é outra diferença em relação aos arquipélagos portugueses que contaram com fábricas próprias, ainda que em tamanho e autonomia diminuta. Desde o início do contrato geral do Tabaco ficou estipulado que haveria duas fábricas, uma em Lisboa e outra no Porto para a manufaturar o Tabaco. Exceção para os arquipélagos portugueses do médio Atlântico, que tinham as suas próprias fábricas. A documentação sobre estas fábricas é muito reduzida, nomeadamente na Junta da Administração do Tabaco em Lisboa não encontramos grandes referências, e por isso as certezas são poucas, desde logo para a data em que foram criadas. Sabemos que em 1691 já existia uma, em S. Miguel, pois no contrato assinado entre os contratadores gerais do tabaco e o estanqueiro Jacinto Sequeira, residente em S. Miguel, é referido que este ficaria com o contrato por tempo de 3 anos e se comprometia a mandar pôr, por sua conta, os pisões e oficinas que lhe parecessem necessárias para se fabricar os tabacos150. Pouco mais sabemos da atividade destas fábricas nos Açores. Como o contrato do tabaco neste Arquipélago era, a maior parte das vezes, arrematado por ramos: o de S. Miguel e S. Maria, o da Terceira e anexas, e o do Faial, não é difícil prever que cada ramo tivesse a sua fábrica. Todavia não sabemos se todas foram fundadas ao mesmo tempo nem se as fábricas laboraram durante toda a vigência do Contrato Geral, ou seja até 1864, data da abolição do mesmo. Na verdade, no contrato assinado em 1751 pelo contratador geral, José Machado Pinto, e seus sócios, estipulava-se que estes: não poderão 149 AP - A J.V, Copiadores de Correspondência com o Contrato-Geral do Tabaco, Carta de António José Vasconcelos a Pedro Quintela, 6 de Agosto de 1802. 150 MACHADO, Margarida Vaz do Rego (2014),”O contrato do tabaco nos finais do Antigo Regime e inícios do Liberalismo: sua importancia na economía açoriana”, in LUXÁN MElÉNDEZ, Santiago de, dir., Política y hacienda del … ob. cit., pp.157-176. 85 ter mais fabrica que a da corte e dela sairão todos os provimentos necessários para os sobreditos distritos e suas casas de administração151. Será que se referiam, também, às fábricas dos Açores? Ainda não conseguimos fontes suficientes para ter a certeza, todavia logo depois há referências que levam a pensar que as fábricas açorianas continuavam a manufaturar os tabacos que vinham do Brasil, através da administração de Lisboa. O seu produto era vendido apenas nas Ilhas, ou seja, não há verdadeira autonomia e por isso não faziam concorrência às fábricas de Lisboa e do Porto. Esta situação manter-se-á até 1866, altura em que, nos Açores, se começa a produzir tabaco, havendo simultaneamente a criação de várias fábricas, com capital insular sem estarem sujeitas à metrópole (pelo menos durante alguns anos, pois nos finais de oitocentos, muitos obstáculos se colocarão à livre produção e comercialização dos tabacos açorianos). 3.5. A distribuição do produto: Seriam as Canárias em finais do século XVIII e inícios do século XIX um centro de redistribuidor do tabaco, entre Cuba e costas africanas, não só atlânticas, mas também na sua vertente mediterrânica para o abastecimento da Europa? As Ilhas devido à sua posição geográfica não podiam ter os retornos que os portugueses conseguiam em África, por isso será melhor fazer a comparação com os Açores e a Madeira, que tinham um contrato rígido com o tabaco brasileiro. Se calhar a comparação deva ser feita com os Açores e a Madeira, que tinham um contacto fechado para o tabaco brasileiro. Como referido, os Açores e a Madeira não fizeram parte das rotas Atlânticas do Tabaco. Foram apenas recetores do tabaco brasileiro, via Lisboa, e a distribuição do tabaco apenas se fazia nas ilhas, entre as ilhas e segundo a organização dos três ramos açorianos. O tabaco chegava em rolos, ia para as fábricas e depois era distribuído pelos vários estanqueiros concelhios que vendiam em suas lojas, devidamente assinaladas e reconhecidas pelo contratador geral da Ilha, o tabaco ao povo açoriano. Não era possível abastecer qualquer outro mercado, até porque, para além do estipulado pelo Contrato Geral, as quantidades enviadas para as Ilhas 151 IDEM, p.162. 86 eram poucas, o suficiente para prover os ilhéus. Podemos apenas falar de uma rede de estancos entre os vários Concelhos de cada Ramo e com menor frequência entre as várias Ilhas açorianas e o arquipélago da Madeira. 4. A estrutura organizativa e as regras do jogo Nas Canárias podemos resumir a instauração e o desenvolvimento do estanco de tabaco em três grandes fases: um período de implantação que iria desde 1636 até 1717 e que podemos resumir no seguinte esquema: 1. Tentativas falhadas de gestão municipal e de administração direta: implanta-se para fazer frente ao donativo de 60.000 ducados de 1642. 2. Arrendamento privado por 3 anos (1642-1648): Antonio Costa (2º) 3. Administração direta do Capitão-General (26.000 rs.vn/Tenerife) 4. Privatização da Renda 1650-1717: arrendamentos e subarrendamentos 1. Baltasar Vergara e Grimón (14/10/1650) (falecido en 1675) 2. Marmaduke Randón (1650-1658) 3. Diego Alvarado Bracamonte (1658-1661) confronto com Acialcazar. Herda o estanco de Canárias 4. Benito Viña Vergara (1661) 5. Mariana Alvarado, Marquesa da Breña 6. Recuperação do estanco pela Coroa (Real Cédula de 1701-1707). De modo efetivo em 1717 5. Organização administrativa: realengo e senhorio 1. Santa Cruz de Tenerife (Cabeça do estanco) 2. Sub-arrendamentos: Gran Canária, La Palma, Fuerteventura e Lanzarote) 3. Gomera e Hierro arrendam-se com Daute Um segundo período, que podemos considerar que abarcaria desde 1717 (implantação da administração direta) até 1852 (liberalização do tabaco pelo Real Decreto de Portos Francos), e que compreende: 1. A partir de 1827: Os ensaios de aclimatação da planta em Porto Rico, Baleares e Canárias (R. D. de 14/XII/1827) 2. O Real Decreto de Portos Francos, significou a supressão do Estanco. A criação de um sector tabaqueiro terá de esperar pela década de setenta 87 (1870), quando a crise da cochinilha reabrir a opção tabaqueira do monopólio foi de comprar a folha e mais tarde o próprio trabalho canário. Nas ilhas dos Açores e da Madeira, a organização do estanco do tabaco poderá ser dividida em duas grandes fases: A 1.ª - que vai desde o início do contrato até 1782 e que se caracterizou por subarrendamentos entre os Contratadores Gerais do Tabaco e os contratadores Insulares ou que residissem nas Ilhas. Como era frequente no Antigo Regime Português, os contratos monopolistas podiam ser arrematados por 3,6 ou 9 anos, sendo o de 3 anos, o mais usual. No caso do contrato do Tabaco era este último que predominava, embora em muitos casos e, segundo João Paulo Salvado, nesta fase nem sempre se cumpriram os três anos por falência das sociedades. Também era possível que um contratador que tinha arrematado por 3 anos pudesse ser reconduzido no triénio seguinte. Por exemplo na Madeira o contratador Ayres Ornelas de Vasconcelos, arrendou o contrato para aquele arquipélago para o triénio iniciado em 1677, tendo sido reconduzido no triénio seguinte. O mesmo aconteceu com o contratador Jacinto Siqueira que arrendou o contrato para todo o arquipélago dos Açores em 1688 e em 1691 foi reconduzido no Ramo de S. Miguel e Santa Maria. Não nos foi possível elaborar uma série completa de contratadores insulares para este período, pois os documentos estão dispersos por várias instituições e notários e por isso muito difícil de encontrar, mas alguns nomes já conhecemos. Assim para a Madeira, além de Ayres de Vasconcelos temos: Domingos do Rego (1692); Gaspar Barreto (1688); Manuel Teixeira Brazão (1717) e António Ribeiro (1719). Quanto aos Açores, há mais documentação que nos permite ter uma maior informação. Aqui e como o arquipélago é constituído por 9 ilhas, os subarrendamentos tanto podiam ser feitos num só ramo que abrangia todo o arquipélago ou, como acontecia muitas vezes, atrevo-me a afirmar mesmo que, a maioria das vezes, era dividido em 3 ramos: Faial, Terceira e S. Miguel e anexas. Depois os contratadores insulares dividam as vendas por estanqueiros concelhios ou mesmo por freguesias. Assim temos para o Ramo de S. Miguel contratos arrendados a: Luiz Antunes Viana (1676); João Oliveira (1685); Jacinto Siqueira (1691); José de Azevedo (1768) 88 que foi reconduzido no triénio seguinte. Contratadores do Ramo da Terceira: António Ribeiro e Sebastião Garcia (1679); Francisco Garcia Lima (1681); Diogo Pereira (1681). Por enquanto não conseguimos nenhum nome para a primeira metade de setecentos. Quanto ao Faial apenas temos referência a um contratador: Jean Chamberlain (1753). Podemos concluir que há uma certa volatilidade nos homens que arrematam no contrato até à segunda metade do século XVIII. A 2.ª - abrange os anos de 1782 a 1864, altura da abolição do contrato. Este período ainda pode ser subdividido em dois períodos: 1.º - até 1825 em que os contratadores insulares eram mais administradores do contrato geral nas ilhas, com muito pouca independência administrativa e financeira. As ordens eram dadas por Lisboa e os contratadores/administradores limitavam-se a cumpri-las. Na verdade e segundo João Paulo Salvado, a estratégia dos contratadores da segunda metade de setecentos tinha mudado152. Ao contrário da 1ª época, nesta fase os contratadores gerais do tabaco faziam parte da elite dos negociantes de Lisboa e deram um aspeto mais “capitalista” aos seus arrendamentos, fazendo ressentir esta estratégia nas Ilhas. Assim, preferiam ter nas suas delegações insulares gentes de sua confiança, que cumprissem suas ordens e por um tempo maior. Para S. Miguel, Joaquim Barradas que administrou o contrato entre 1785 e 1800, seguido de António José de Vasconcelos que abrangeu toda a primeira parte de oitocentos. Na ilha Terceira caberá a administração a Francisco Teixeira de Sampaio e no Faial a Estolano Ignacio Oliveira Pereira. Quanto à Madeira e para oas primeiras décadas de oitocentos temos o contratador/administrador Paulo Malheiro de Mello. É, também, neste período, que as relações entre os administradores insulares se tornam mais frequentes e mais intensas, não só entre as ilhas açorianas como com a Madeira, com particular destaque para as relações entre o administrador de Ponta Delgada (José António de Vasconcelos) e o do Funchal (Paulo Malheiro de Mello). O 2.º – entre 1825 a 1864, e em que encontramos um clima crescente de descontentamento com a atividade dos contratadores/administradores e o nascimento de um desejo de produzir em solo Açoriano o tabaco. É uma luta que começa oficialmente em 1825 com um relatório do desembargador Vicente Cardoso e que se vai intensificar através da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, por toda 152 SALVADO, João Paulo, (2014),”O estanco do tabaco em Portugal: contrato-Geral e consórcios mercantis (1701-1755)”, in LUXÀN MELÉNDEZ Santiago de, dir., Política y hacienda del...ob.cit., p.134. 89 a segunda metade do século XIX até à abolição total do contrato em 1864. O mesmo acontecerá na Madeira, embora a luta se sinta em menor escala. 5. A regulação monopolista implica a existência de fraude e do contrabando O comércio fraudulento foi importante como se demostrou nos inícios do século XVIII, quando se tratou de estabelecer a Intendência (1717–1720)153. Em épocas anteriores a 1660, Canárias, Açores e Madeira formaram parte, no seu conjunto, do que rapidamente chegaria a ser um sistema integrado de comércio de contrabando, escreve Elliott154, em torno dos escravos, do açúcar e da prata e, acrescentamos nós, também do tabaco. Estudámos o peso do contrabando entre 1717-1722 e conhecemos, com certo detalhe que, durante o reinado de Carlos III e através da correspondência oficial cruzada entre os administradores centrais da Renda e a instância central do monopólio, uma das preocupações fundamentais do seu governo foi o contrabando. Deste modo passar-se-à de uma atitude de impotência a uma posição beligerante contra o contrabando e a corrupção155. A liberalização de 1852156 criou uma desconfiança relativamente ao tabaco canário, o qual não se deixou entrar no mercado peninsular até à Ditadura de Primo de Rivera em 1923. Sempre foram difíceis as relações entre o Arrendatário de tabacos (1887) e Tabaqueira (1944) com os produtores das Canárias, devido à desconfiança e ao contrabando. O que é que se passou nos arquipélagos portugueses? A situação geoestratégica dos arquipélagos de Medio Atlântico foi desde o início do seu povoamento bem sentida, podendo mesmo dizer-se que, as Ilhas foram placas giratórias do Atlântico, contribuindo assim, para a construção do Mundo Atlântico. 153 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2003), “La Renta de tabacos en Canarias. Del arrendamiento a la administración directa”, in Anuario de Estudios Atlánticos, V. 49, 2003, pp. 447-473. 154 ELLIOTT, John H. (2012), “El atlántico español y el atlántico luso: divergencias y convergencias”, en XX Coloquio de Historia Canario-Americana, http://coloquioscanariasamerica.casadecolon.com/index. php/CHCA/issue/view/269. p. 27. 155 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago (1998), ”El funcionamento del estanco del tabaco en Canaria y Navarra. Um ejercicio de historia comparada” in Actas del XIII Coloquio de Historia Canario-Americana, Las Palma de Gran Canária, Cabildo de Gran-Canaria. 156 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias, Una perspectiva institucional.Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA. 90 Contudo a sua pequenez física implicou uma subordinação económica com os impérios europeus em geral e com a metrópole em particular. Esta dependência é bem notória quando associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos157, como foi o caso do Tabaco em relação aos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Esta situação gerou, muitas vezes, revolta/ luta, que por diversas vezes se configuraram com o recurso ao contrabando. Evidentemente que contabilizar a prática do contrabando é difícil e no caso do tabaco, para os dois arquipélagos portugueses, ainda não foi muito estudado. Todavia temos vários documentos que nos falam que este foi constante, até porque, antes do contrato/ monopólio, no Reino e Ilhas era possível produzi-lo assim como obtê- lo por via do comércio com outros países, como, por exemplo, no caso do Reino com Castela e nas ilhas com os outros países que, habitualmente sulcavam as suas águas. Não foi fácil impor o monopólio e para isso foi preparada muita legislação de forma a serem punidos os infratores, que à maneira do Antigo Regime, estavam hierarquizados segundo a condição social de cada um. Foi, ainda, criada a Junta da Administração do Tabaco, instituição onde todos os assuntos do tabaco eram tratados. As consultas feitas à Junta da Administração do tabaco mostram a complexidade de toda esta problemática. Não foi por acaso que o reverendo John Colbacth, que visitou Portugal nos finais de seiscentos, achou que o rigor que se tinha em Portugal com os que pisavam tabaco para consumo próprio só era comparável com o que se tinha em Inglaterra para com os falsificadores de moeda158. A análise dos documentos compilados nas “consultas” à Junta da Administração do Tabaco, mostram que são muitos e contínuos os protestos dos contratadores do estanco de tabaco das ilhas dos Açores e Madeira, denunciando o fabrico e venda de tabaco em vários conventos das ilhas, assim como em casa de nobres e que, apesar das devassas feitas, ficavam impunes, o que levava a constantes descaminhos com grande prejuízo para os contratadores159. O mesmo acontecia com o tabaco ilegal que vinha por mar. Como referimos anteriormente os Açores e Madeira estavam bem integrados nas rotas comerciais do império Português. Na verdade, apesar de algumas restrições, as 157 VIEIRA, Alberto (2014), Nova História Económica da Madeira, Lisboa, Esfera do Caos Editores, APCA e Autor, p.40. 158 HANSON, Carl A. (1982), “Monopoly and Contraband in the Portuguese Tobacco trade, 1624-1702”, Luso-Brazilian Review, XIX, 2, p.154. 159 ANTT - Junta da Administração do Tabaco, Consultas, maço nº1, doc. 88, Março de 1678; doc. 99, Outubro de 1678; doc nº. 161, Abril de 1685; doc. nº 172, Julho de 1685; maço nº 3, doc. Março de 1689, entre outros. 91 relações comerciais entre os Açores e o Brasil eram comuns. Podemos mesmo afirmar que, no século XVIII, o Brasil era um dos destinos mais dinâmicos dos portos açorianos, chegando diretamente às ilhas vários produtos daquela colónia. Era, pois, mais do que provável, que a restrição feita à vinda do tabaco brasileiro fosse contornada, lançando – se ao mar o tabaco clandestino, antes da chegada aos portos principais. Temos várias notícias deste procedimento e foi devido a esta prática que os contratadores das Ilhas tinham o privilégio de poderem enviar aos barcos que chegavam do Brasil, guardas (pagos por eles) e lhes mandar dar buscas ou outras diligências sem que os senhorios ou mestres dos navios os impedissem. Todavia as queixas continuam por toda a vigência do contrato. Apreensões de tabaco vindo em barcos Espanhóis, de tabaco vindo da Virgínia eram frequentes. A pesar de haver pedidos da Junta da Administração do Tabaco ao Rei para uma ação mais efetiva dos governadores, dos ouvidores, juízes de fora e mais funcionários régios, assim como ao Bispo e ouvidores clericais, para punirem exemplarmente os infratores, fazendo buscas a casas, convento e barcos 160, a verdade é que o contrabando continuava, como mostra várias referências do contratador de S. Miguel, António José de Vasconcelos, que nas suas cartas aos Administradores Gerais, refere a pouca vigia que os guardas faziam ao contrabando, não só do tabaco nacional como, também, estrangeiro, nomeadamente da Virgínia. Era usual a entrada destes tabacos, pela calada da noite, nas muitas reentrâncias da costa. Segundo António José de Vasconcelos este era um problema grave que muito prejudicava o contrato161. Na Madeira o panorama é idêntico e o facto do contratador Ayres de Ornelas Vasconcelos ter arrematado o contrato do tabaco para aquele Arquipélago, em 1680, por um preço considerado alto - 2:300$000 réis - teve como contrapartida a anulação de uma decisão do Provedor da Fazenda da ilha da Madeira contra o arrematante e seus familiares, pelo crime de descaminho de tabaco162. Em conclusão penso que podemos afirmar que o contrabando nas ilhas portuguesas em relação ao tabaco era considerável, corroborando a teoria acima expressa por Santigo Luxan Mellendez. 160 ANTT - Junta da Administração do Tabaco, Consultas, maço no 1, doc. 73, 29 de Junho de 1671; maço nº 2, doc. 34, Março de 1681, doc. nº 105 de 4 de Agosto de 1683, entre outros. 161 AP - A. F.V, Copiadores de Correspondência com o Contrato Geral do Tabaco, Carta de António José Vasconcelos a Pedro Quintela, 28 de Março de 1804. 162 ANTT - Junta da Administração do Tabaco (JAT), maço nº2, 17 de Abril de 1680. 92 6. A resposta dos afetados perante o estabelecimento do Estanco do Tabaco: a dinâmica histórica dos estancos Como temos assinalado a implantação da administração direta nas Canárias foi traumática e uma boa prova disso foi a revolta contra o prefeito Cavallos, que acabou com sua vida e que foi paralela às revoltas de vegueras contra a Fábrica de Havana en 1717. No processo de mudança de Império a Nação, a liberalização do tabaco na Ilha de Cuba (Real Decreto de 23/06/1817) quebrou a dependência com a instituição do monopólio e deu entrada a uma nova realidade. Tentou-se cultivar tabaco em Espanha, especialmente entre 1824-1833, e foi difícil encontrar novas fórmulas para abastecer o estanco, uma vez que a dissolução da Fábrica de Havana ocorreu e o processo de independência das colônias americanas foi concluído. A proibição do cultivo do tabaco em Espanha, — não esqueçamos que é um dos fundamentos do sistema —manter-se-á, mas abrir-se-ão fendas: liberalização das Cortes de Cádis de 1813 e do Triénio Constitucional em 1820, Porto Franco de Cádis em 1828, ensaios de cultivo em diversas partes da Península e nas Ilhas Canárias — que foram valorizados de forma contraditória (1824- 1840) — ou, finalmente, o Real Decreto de Portos Francos de Canárias de 11/07/1852, ao qual já nos referimos163. No século XIX as relações entre o poder político e económico foram enunciadas, no que se refere ao tabaco em Portugal, por Esteves dos Santos e por Maria Filomena Mónica. Como no caso espanhol estudado ultimamente por Galván Rodríguez, a questão da abolição do estanco foi muito discutida nas Cortes e na Imprensa, e apenas em alguns breves momentos posta em prática. No início do século XIX e em particular na sua segunda metade, as ilhas passam por problemas económicos graves. Nos Açores foi o declínio da produção dos citrinos, devido a uma doença nos laranjais, e consequente queda do seu comércio exportador, e na Madeira a difusão da filoxera pelos vinhedos que prejudicou a produção de vinho, na altura a grande exportação Madeirense. Era necessário arranjar alternativas. Estávamos numa época em que a industrialização começava a dar os primeiros passos em Portugal, ainda que 163 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), “Cultivo, abastecimiento y estanco del tabaco en España en el tránsito del Antiguo Régimen al Estado Liberal”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de y FIGUEIROA- REGO, João, coord., (2018), El tabaco y la esclavitud en la rearticulacíon imperial ibérica/o tabaco e a escravatura ma rearticulação imperial ibérica, séculos XVII-XX), CIDEHUS, Universidade de Évora. 93 timidamente. Nos Açores e Madeira a solução encontrada foi a de aliar-se o desenvolvimento da tradicional agricultura com a introdução de plantas passíveis de industrialização. Dentro deste grupo de agroindustriais, nos Açores o tabaco foi um dos elementos de eleição e, embora, se tivesse feito sentir pouco na Madeira, a luta pela sua produção e manipulação também, se verificou. Em S. Miguel, desde o início do século XIX, por volta de 1810, ou seja, em plena vivência do monopólio do tabaco, que se iniciaram experiências de produção da planta tabaqueira. Estes primeiros ensaios foram bem-sucedidos, mas a oportunidade de serem conhecidos só apareceu em 1825, altura em que a conjuntura política de Portugal mudara e o liberalismo, não só político como económico começava a fazer-se sentir. Em 1820, com a revolução liberal, a monarquia Portuguesa passara a constitucional, e o novo governo mandou fazer um relatório sobre os problemas económicos das Ilhas. O encarregado deste relatório foi o Desembargador José Vicente Cardoso, precisamente o proprietário dos terrenos onde se tinham feito os primeiros ensaios da cultura do tabaco. Aparecera, finalmente, a altura propícia para apresentar, oficialmente os resultados obtidos nas experiências com a planta do tabaco. Assim no relatório de 1825, Vicente Ferreira Cardoso, não só dá conta dos resultados positivos como desenvolve a hipótese de que se deveria expandir esta cultura na ilha de S. Miguel, de modo a que não só o tabaco servisse para consumo próprio, como também punha a possibilidade de S. Miguel passar a exportar o tabaco para o Reino, deixando este de estar dependente das importações estrangeiras (não esquecer que o Brasil obtivera a sua independência em 1822)164. Apesar de algumas diligências feitas por alguns deputados açorianos nas Cortes ou por dirigentes locais, a verdade é que pouco foi conseguido. A Lei de 25 de Abril de 1835 parecia abrir alguma possibilidade ao cultivo do tabaco nos Açores, mas a cláusula que dava ao Governo e aos Contratadores do tabaco, o direito de se pronunciarem primeiro, impediu qualquer desenvolvimento. Só mais tarde, com a ação dinamizadora da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, criada em 1843, que se iniciou uma verdadeira luta em prol da produção do Tabaco. Um dos primeiros passos, foi a publicação do relatório de José Vicente Ferreira Cardoso de 1825, com uma introdução de José do Canto, onde se esplanava a 164 MACHADO, Margarida Vaz do Rego (2014), ”O contrato do tabaco nos finais do Antigo Regime ... ob. cit.”, pp.171 e 172. 94 ideia de: sublocar o Exclusivo do Tabaco nesta ilha, ficando assim libertos da proibição, ou alcançar do Corpo Legislativo aquela faculdade, mediante uma indemnização anual ao tesouro na importância do exclusivo, repartida esta quantia pela produção num sistema de dízimos ou cobrado pelas alfandegas na ocasião de exportação165. Solicitou-se ao Governo e aos Contratadores do Tabaco permissão para se cultivar alguns terrenos, à experiência, mas as respostas foram o completo silêncio. Para além de pedidos oficiais dos Deputados como, por exemplo, o de 1848, levado à Câmara dos Deputados por José Silvestre Ribeiro, ou a carta enviada pelo presidente da SPAM, Jàcome Correia, ao Ministro e Secretário do Estado dos Negócios do Reino ou ainda alguns pedidos do Governador Civil, será o Jornal O agricultor Micaelense o palco principal desta luta, nomeadamente na década de 1850, quando finalmente os Contratadores Gerais do Tabaco se pronunciaram contra qualquer liberalização da produção. A luta endureceu, muitas vezes contra os próprios contratadores insulares. Os jornais da época estão cheios de artigos e caricaturas contra a pouca consideração que o Contrato tinha para com os consumidores insulares, principalmente quando o preço se elevava ou quando o tabaco não chegava às ilhas a tempo. Na Madeira, num relatório da Junta Geral, ainda em 1864, refere-se o excessivo preço porque eram vendidos os tabacos na Madeira, situação que ia contra todos as condições estabelecidas nos contratos de arrematação, desde o início do século XVIII166. Finalmente o decreto da abolição do contrato chegou em 1864. Todavia se agora era possível cultivar e manipular tabaco nas ilhas, os entraves não acabavam e logo de início se exigiu uma contrapartida: adicionais às contribuições diretas e a imposição de um novo imposto sobre o consumo. Protestaram os Açorianos, protestaram os Madeirenses mas os obstáculos continuavam, o que não impediu que, os insulares tudo fizessem para contornar os entraves. No primeiro ano de cultura autorizada, produziu- se 5 066Kg de tabaco em S. Miguel, 5 anos mais tarde, a produção elevava-se para 43 564,954 Kg e em 1890 a cifra aumentou para 200 000Kg. Na ilha Terceira, verificava-se o mesmo, e na década de noventa produzia-se cerca de 80 000Kg167. Segundo vários 165 BPARPD - Fundo da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, Artigo sobre o Tabaco de José do Canto in O Agricultor, Abril de 1848. 166 MACHADO, Margarida Vaz do Rego, (2017),”Ponta Delgada e o Funchal: entre o contrato … ob. cit.”, p.156. 167 JOÃO, Maria Isabel, (1991) Os Açores no século XIX. Ob. cit., p. 54. 95 testemunhos dos proprietários das fábricas, não se produzia mais por falta de mercado de consumo. Paralelamente ao desenvolvimento da produção agrícola,foram-se fundando várias fábricas. A primeira surgiu em S. Miguel, em 1866, havendo, em 1890, 6 fábricas nos Açores: três no Concelho de Ponta Delgada, uma no da Ribeira Grande e duas no de Angra. No Faial, nos anos setenta fundaram-se 3 fábricas, todavia a sua laboração foi efémera, tendo apenas a Fábrica Boa Viagem durado um pouco mais, até 1880168. Na Madeira, nos finais de oitocentos, embora a maioria dos seus habitantes preferisse apostar em outras culturas, os jornais dão conta, nomeadamente em 1878, de experiências feitas, em diversos locais da Ilha, da cultura do tabaco, informando que este era de ótima qualidade e que os resultados eram deveras animadores. No mesmo jornal, noticiava-se a abertura de uma fábrica de tabaco, dando bastante relevo á sua inauguração169. Apesar de toda este otimismo havia um grande problema: o tabaco insular só podia ser vendido nos Açores, pois os impostos alfandegários, tanto para a folha como para o consumo tornavam os tabacos açorianos pouco competitivos. Em 1885, há uma pequena vitória por parte dos insulares ao conseguirem que o tabaco manipulado no arquipélago passasse a pagar apenas direitos sobre a matéria- prima. Todavia esta vitória foi efémera pois, a lei de 18 de Agosto de 1887 anulava a anterior e determinava que os “tabacos manipulados que fossem das ilhas para o continente, também reciprocamente os que viessem do continente para as ilhas, pagariam como estrangeiros”170. Era, novamente, retirada a possibilidade da venda do tabaco fora do arquipélago, realidade esta, que se agravou com a lei de 22 de Maio de 1888 e que criou o regime da règie ou seja: O Estado voltava a administrar o fabrico do tabaco, comprando nas ilhas 5% do tabaco consumido no continente. A 20 de Novembro do mesmo ano, nova ordem baixava os direitos sobre o tabaco estrangeiro, pagando os açorianos direitos sobre a folha estrangeira superiores aos do que pagava a régie no continente. Os problemas continuarão na última década 168 IDEM, p. 54. 169 MACHADO,Margarida Vaz do Rego (2017),”Ponta Delgada e o Funchal: entre o contrato ... ob. cit., p.156. 170 BENSAÚDE, José, (1888), A questão do tabaco nas ilhas, S. Miguel, Typ. dos Açores, p.3. 96 do século XIX, nomeadamente com a criação do Contrato no continente e a fundação da Companhia dos Tabacos. O ambiente político e social nas ilhas era tenso, assistindo-se na última década de oitocentos à criação do Primeiro Movimento Autonómico onde o lema era: O estado não só gasta pouco com os Açorianos como gasta mal, por isso lutemos pela livre administração dos Açores pelos Açorianos. Um dos aspetos usados para exemplificar esta situação foi precisamente o do tabaco: Estudou-se e desenvolveu-se a cultura do tabaco; estudaram-se também os melhores processos de fabrico e estabeleceram-se fábricas, […] e, quando tudo estava preparado com muito trabalho, estudo e dispêndio de capitais, para que aproveitando-se o benefício que nos fora concedido, pela lei de 1885, de se aplicar no continente ao nosso tabaco manipulado o mesmo direito que pagava a folha estrangeira, abrindo-se-lhe os mercados continentais ao consumo, tudo cai por terra, morto pela régie e pelo monopólio e ficamos reduzidos ao consumo das ilhas que não excede a 150000K171. O sonho da exportação para o continente ficou adormecido. No início do século XX, o seu mercado eram as ilhas (Açores e Madeira), apenas a Fábrica de Tabaco Micaelense conseguia exportar para as Colónias de África. Conclusões Os estancos ibéricos tiveram estruturas diferenciadas, marcadas, em primeiro lugar, pela sua inserção no Atlântico: Brasil sempre esteve à margem do estanco, enquanto a Monarquia espanhola tentou construir um monopólio imperial. Do outro lado, a renda do tabaco em Portugal praticamente sempre esteve arrendada e neste sentido se parece mais com o modelo francês, no entanto no caso espanhol, de um modo geral a partir de 1730, esteve em administração direta. Numa outra prespetiva, do Brasil e em termos de intercâmbio, trocou-se tabaco por escravos. Os fluxos de 171 Representação do povo micaelense em julho de 1891. 97 câmbio no caso Espanhol foram o inverso, já que o tabaco era pago por escravos pelas empresas que realizavam esse tráfico, principalmente nas Antilhas. Os arquipélagos portugueses e espanhóis do Atlântico médio estiveram imersos, desde a restauração portuguesa de 1640, em dois mundos diferentes.Enquanto que na península o estanco espanhol recebeu tabaco principalmente de Cuba juntamente com tabaco brasileiro e virginiano, no arquipélago das Canárias só se importou tabaco das Antilhas.Mesmo depois do Real Decreto de Portos francos de 1852, apesar de ter havido uma fase prévia de ensaios, não se cultivou nem se elaborou. Por outro lado a Madeira e os Açores dependeram exclusivamente da planta cultivada na Bahia, até que, como nas Canárias, iniciou-se o seu cultivo século XIX. Até 1717 o mercado das Canárias dependeu quase exclusivamente de Havana. Depois os acréscimos foram distribuídos pela Fábrica de Havana e pela Fábrica de Sevilha, ainda que numa proporção de 2/3 a favor da Ilha antilhana. Porém, entre o Brasil e os Arquipélagos portugueses, não houve conexão direta embora, se realizassem intercâmbios diretos com outros produtos. O tabaco do Brasil que chegava às Ilhas, tinha de vir, necessariamente, do Jardim de Lisboa e era controlado pelos Contradores-Gerais. Os subarrendadores das Ilhas nos finais de setecentos eram meros administradores do contrato-geral. O tabaco cubano consumido nas Canárias era quase exclusivamente em pó de mediana qualidade, portanto as Ilhas estiveram fora da órbita do tabaco fumado. Na Madeira e nos Açores, usava-se mais o tabaco fumado,uma vez que o tabaco chegava, maioritarimanete, em rolos embora, também, cheirassem tabaco em pó. Houve relações de intercâmbio entre Açores e Madeira, mas pelo menos no caso do tabaco não nos chegou informação que este comércio se estendesse às Canárias. Ponta Delgada (S. Miguel) foi o porto que recebeu maior número de tabaco, embora também chegasse tabaco aos portos de Angra (Terceira) e da Horta (Faial). Nas Canárias a receção esteve concentrada em Santa Cruz de Tenerife, ainda que antes da administração direta, també, chegasse a outras Ilhas. Os navios que transportavam tabaco das Índias para as Canárias eram de registo insular. De Cádis, além de barcos espanhois, chegavam holandeses, portugueses, fran- ceses, genoveses, etc. Porém os navios de Portugal eram maioritariamente estrangeiros. Açores trocavam tabaco por cereais, necessários para suprir o déficite cerealífero de Portugal continental. Por seu turno, as Canárias contribuiram com uma receita fiscal muito importante, em termos relativos, para os cofres da monarquia. 98 Outra diferença fundamental foi a existência ou não de fábricas nas Ilhas, embora a sua produção deva ter sido muito limitada e quase não haja referências documentais até ao século XIX. As portuguesas contaram desde finais do século XVII com manufaturas (uma na Madeira e duas nos Açores). As espanholas não fabricaram tabaco até ao último terço do século XIX, sendo o seu mercado principal a península e o secundário a vizinha costa africana.Quanto às açorianas, apenas no século XX, exportaram, mas em pequena quantidade, para as colónias africanas portuguesas. Nas Canárias antes de 1852 podemos assinalar duas etapas na história da economia tabaqueira. Uma fase de fundação do estanque, principalmente em mãos de arrendadores privados – que, por sua vez, subarrendavam a renda pelas ilhas até 1717 e um período de administração direta de 1717 a 1852, altura em que o se extinguiu o estanco, originando um progresso na economia tabaquera insular que, durante o século XX, alcançou o seu máximo desenvolvimento, convertendo-se numa especialidade regional. Nos arquipélagos portugueses a primeira etapa alargou-se até finais do século XVIII e caracterizou-se por um sistema de subarrendamentos insulares por parte dos contratadores gerais. O segundo período alargou-se desde esta data até 1864, altura em que se aboliu o contrato em Portugal. O sistema monopolista levou a que ambos os arquipélagos ficassem inseridos nas redes do contrabando.No caso canário, com o sistema de administração direta,tentou- se acabar com este problema mas sem êxito. Nas ilhas portuguesas, apesar de ainda ser um tema pouco estudado, há algumas notícias que reproduzem o que acontecia em Portugal continental, sendo frequentes as apreensões de barcos espanhois e virginianos. Finalmente, devemos assinalar que, será no século XIX, que os caminhos iniciados pelas Canárias e os arquipélagos portugueses parecem convergir, quando se desenham estratégias semelhantes que têm no tabaco, especialmente entre o Arquipélago espanhol e os Açores, pois a Madeira ficará pela cana do açúcar, como uma das principais alternativas par o crescimento económico. 99 O açúcar na vida quotidiana insular: o caso dos Açores nos séculos XVIII e XIX Sugar in everyday island life: the case of the Azores in the 18th and 19th centuries Susana Serpa Silva (CHAM/ UAc) susana.pf.silva@uac.pt Resumo Na sequência das descobertas ultramarinas portuguesas, a produção de cana de açúcar também chegou às ilhas dos Açores, na segunda metade do século XV. Com alguma relevância nas ilhas de S. Miguel e de Santa Maria (Grupo Oriental), acabou por não ser uma cultura de longa duração, devido a múltiplas vicissitudes. Não obstante, o consumo de açúcar entrou, gradualmente, nos hábitos quotidianos insulares, com diversas utilizações, entre as quais destacamos a produção da doçaria conventual e popular. Com base em estudos e fontes diversificadas – desde o Arquivo dos Açores à literatura de viagens e à imprensa – iremos apresentar algumas notas sobre a presença deste produto na vida diária dos açorianos, nos séculos XVIII e XIX, sem esquecer a implantação da fábrica de açúcar micaelense. Palavras-Chave: cana de açúcar; produção açucareira; doçaria; hábitos do quotidiano; Açores; séculos XVIII e XIX. Abstract Following the Portuguese overseas discoveries, sugar cane production also reached the islands of the Azores, in the second half of the 15th century. With some 100 relevance on the islands of S. Miguel and Santa Maria (Eastern Group), it ended up not being a culture of long duration, due several vicissitudes. Nevertheless, sugar consumption gradually entered the island’s daily habits, with different uses, among which we highlight the production of conventual and popular pastry. Based on diverse studies and sources — from the Archive of the Azores to travel literature and the press — we will present some notes on the presence of this product in the daily lives of Azoreans, in the 18th and 19th centuries, without forgetting the implantation of the S. Miguel island sugar factory. Keywords: sugar cane; sugar production; pastry; everyday habits; Azores; 18th and 19th centuries. 1. A efémera produção de cana de açúcar nos Açores Segundo o cronista Gaspar Frutuoso — cuja obra é considerada, por Avelino Meneses, como “o melhor meio de entendimento dos Açores no século XVI”172 —, na centúria de quinhentos, as ilhas de S. Miguel e da Terceira encontravam-se cobertas de campos de trigo e de pastel, que geraram inúmeros proveitos. Enquanto a produção cerealífera se destinava ao abastecimento do reino e dos presídios de Marrocos, devido à insuficiência frumentária de Portugal e à especialização sacarina da Madeira, a exploração de plantas tintureiras era incentivada pela procura da indústria têxtil europeia que necessitava do fornecimento de corantes. No entanto, outros cultivos também surgiram nas ilhas dos Açores, desde tempos bem remotos. Com o propósito de granjear mais receitas e de garantir subsistências, o próprio poder político incentivava novas culturas e, por isso, ainda no século XV, também se cultivou a cana de açúcar173. Como refere Avelino Meneses: À margem das culturas predominantes, que geram o enriquecimento dos particulares e o proveito da coroa, persiste sempre uma pluralidade 172 MENESES, Avelino de Freitas de (2005), “[Açores] A Economia e as Finanças”, in Artur Teodoro de MATOS, coord., A Colonização Atlântica, Tomo I, direção de Joel SERRÃO e Oliveira MARQUES, Nova História da Expansão Portuguesa, Lisboa, Ed. Estampa, p. 333. 173 GOMES, Augusto (1997), Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel, 2ª edição, Angra do Heroísmo, SREAS / Direção Regional da Cultura, p. 21, [ed. original: 1987]. 101 de produções, mais adequada à diferenciação dos solos e à salvaguarda das subsistências. (...) entre os cultivos secundários, tanto individualizamos os frutos mais tradicionais, indispensáveis ao quotidiano das gentes, como os bens mais inovadores, susceptíveis da conquista dos mercados. As experiências vinícola e sacarina, com evoluções bem distintas, constituem talvez os melhores exemplos174. As ilhas atlânticas foram, então, laboratórios de novas e diferentes culturas, a par de inovadores modelos de administração. De acordo com a crónica frutuosiana, foi na ilha de Santa Maria que se introduziram as primeiras canas sacarinas, à semelhança da Madeira. Para o efeito, terá vindo, desta ilha, um “mestre António Catalão, o qual as prantou e fez prantar logo no princípio, e deram-se muito boas”175. Na descrição que fez da mesma ilha, Gaspar Frutuoso refere-se aos lugares — situados adiante da Vila, para os lados de Nossa Senhora dos Anjos — do Ginjal e dos Canaviais “porque, antigamente, estiveram ali de açúcar”176. Ainda nas palavras do cronista, as canas foram a moer nesta ilha de São Miguel, em Vila Franca, e fez-se delas muito bom açúcar; mas, pela pouca curiosidade dos homens, ou por não haver regadias, ou pelo pouco poder, cessou a granjearia delas177. Como se depreende, a cultura sacarina conheceu maior expressão nas ilhas de Santa Maria e de S. Miguel, ou seja, no Grupo Oriental, onde terá sido introduzida no século XV, embora com uma duração muito curta. Segundo Carreiro da Costa, são vários os factos e os documentos que nos permitem inferir que a introdução do açúcar, nos Açores, em particular na ilha de S. Miguel, ocorreu na 2.ª metade do séc. XV. Em primeiro lugar, a vinda do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, proveniente da Madeira, por ter comprado a capitania desta ilha a João Soares de Albergaria. Em segundo lugar, o depoimento de Gomes Eanes de Zurara ao afirmar que o Infante D. Pedro, antes de 174 MENESES, Avelino de Freitas de (2005), “[Açores] A Economia e as Finanças”, in ob. cit., p. 343. 175 FRUTUOSO, Doutor Gaspar (1971), Livro Terceiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Ed. do Instituto Cultural de Ponta Delgada, p. 14. 176 IDEM, p. 96. 177 IBIDEM, p. 14. 102 falecer em 1449, fizera plantar açúcares nas ilhas de S. Miguel e Santa Maria e, por fim, o teor do Foral das Alfândegas das Ilhas dos Açores, de 1499, que determinava que todo o açúcar aqui carregado para o reino, em navios portugueses, não pagasse dízimo178. Apesar da prevalência do Grupo Oriental, terá havido alguma cultura sacarina na ilha do Faial, por volta de 1490, como atesta uma nota da lavra de Martim Behaim179, enquanto, na Terceira, tudo indica que não terá passado de uma intenção do então Provedor das Armadas, Pero Anes do Canto180. A introdução do açúcar nos Açores não traduz nada de inusitado. Em Portugal, registaram-se experiências de cultivo de cana sacarina, precisamente, no século XV, em terras algarvias181, seguindo-se a ilha da Madeira que, na segunda metade da centúria, já assumia um papel central nesta produção, quer pela qualidade do açúcar, quer pelos preços acessíveis, exportando para o reino, a Flandres, Castela e Inglaterra182. Logo, o cultivo nos Açores deu-se também, pela mesma altura, em virtude da forte procura europeia. Não obstante, o fabrico do açúcar remonta à Antiguidade, em regiões da Ásia (como a Índia e a Pérsia) ou o Egipto, onde a produção açucareira atingiu grande qualidade. Foi através dos árabes que se deu a introdução da cana sacarina na orla do Mediterrâneo, incluindo a Península Ibérica, contribuindo, depois, os genoveses para a sua difusão. A utilização do açúcar era muito variada: com fins medicinais, como adoçante e alimento dos mais ricos, como moeda-padrão, oferta de embaixadas reais ou objeto de disposições testamentárias. No entanto, ainda em finais da Idade Média este era considerado um produto de luxo sendo, por isso, apetecível, mas raro 178 COSTA, Carreiro da (1949), “A cultura da cana de açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua história”, in Boletim da Comissão Reguladora dos Cereais do Arquipélago dos Açores, Ponta Delgada, Ano V, n.º 10, 2.º sem., pp. 20-21. 179 “Martim Beheim e o seu Globo de Nuremberg”, in Arquivo dos Açores, ed. fac-simile, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1981, vol. I, p. 443. 180 COSTA, Carreiro da (1949), ob. cit., pp. 28-29. Avelino Meneses refere que, em 1552, Pero Anes do Canto solicitou o uso de águas das ribeiras públicas nas plantações sacarinas a constituir na Agualva e nas Lajes. Mas, este intento não se terá concretizado. Cf. MENESES, Avelino de Freitas de (2005), ob. cit., p. 352. 181 As primeiras experiências em território luso ocorreram, por iniciativa árabe, nas regiões de Silves e Tavira, ainda antes da reconquista cristã, devido às condições propícias do clima algarvio. Em 1404, voltaram a surgir canaviais na Quarteira, pela mão de um mercador genovês. Cf. MIGUEL, Carlos Frederico, “Açúcar”, in SERRÃO, Joel, dir. (1985), Dicionário de História de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas, vol. I, p. 24. 182 IDEM, pp. 24-25. 103 e dispendioso183. Os médicos recomendavam-no como um reconstituinte e fonte de energia184. Na ilha de S. Miguel, o primeiro indivíduo que mandou pisar e espremer canas de açúcar terá sido Lopo Anes de Araújo, que as terá adquirido a Sebastião Pires, ambos habitantes de Vila Franca do Campo. Uma vez mais, a crónica frutuosiana narra como este último obteve as canas: Vindo da Ilha da Madeira uns mercadores que se agasalharam em sua casa, deram a sua mulher algumas canas de açúcar que traziam, das quais ela, como coisa por demais ou por curiosidade, plantou em um quintal pequeno de casa uns pedaços, que em pouco tempo arrebentaram e cresceram (...). D’ali começaram de espalhar e repartir por muitas pessoas da dita vila (...)185. Segundo Urbano de Mendonça Dias, que nos seus estudos sobre Vila Franca do Campo se reportou também à cultura da cana sacarina, os bons resultados que se alcançaram com a cana madeirense, levaram um tal de Fernão Vaz, da ilha da Madeira, a montar um engenho de moer cana, — que deu nome ao lugar (Engenho), — muito semelhante ao usado no pastel. A mó é que era diferente, por ser uma pedra grande e cavada, furada no fundo, para sair o sumo da cana. De acordo com o mesmo autor, por meados do séc. XVII, ainda se encontravam engenhos nesta região da ilha de S. Miguel, como comprovam as próprias correições. Os engenhos tinham-se difundindo por Água d’Alto e Ribeira Seca186 e, em 1635, o município de Vila Franca tentava proteger a cultura da cana, chegando a câmara a proibir o transporte desta para fora do concelho (o que motivou furtos e desvios, obrigando, de novo, a câmara a legislar). A venda do açúcar não era livre, pois uma parte era tomada aos cultivadores ou arrolada pela Câmara, para o consumo público, com a 183 IBIDEM, p. 24. 184 RITCHIE, CARSON I. A. (1995), Comida e Civilização. De como a História foi influenciada pelos gostos humanos, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 161. Veja-se também: BRAUDEL, Fernand (1992), Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII. As Estruturas do Quotidiano, Lisboa, Teorema, pp. 191-192; MINTZ, Sidney W. (1986), Sweetness and Power. The Place of Sugar in Modern History, Viking, Elisabeth Sifton Books, pp. 78 e ss. 185 FRUTUOSO, Doutor Gaspar (1971), Livro Quarto das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Ed. do Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. II, pp. 58-59. 186 DIAS, Urbano de Mendonça (1944-1948), A Vida dos Nossos Avós, Vila Franca do Campo, Tip. A Crença, vol. 4, p. 168. 104 designação de exames: em média, consistiam em um ou dois pães de açúcar e em uma a três botijas de mel187. Ao longo da 1.ª metade do século XVI, há noticias da vinda de mestres de açúcar, oriundos da Madeira e das Canárias, para a ilha de S. Miguel. No arquipélago açoriano, a produção anual rondava as 20.000 arrobas, sobressaindo, porém, o contributo da ilha de S. Miguel e, em especial, de Vila Franca do Campo188. Não foi mera coincidência que, em 1551, um dos argumentos aduzidos para a edificação do forte de S. Brás, em Ponta Delgada, se relacionasse com o resguardo do açúcar face à cobiça de corsários e de piratas189. Por meados de quinhentos, uma arroba de açúcar, produzida na Ribeira Grande, na costa norte da ilha, para onde se estendera a produção, custava 800 réis190 o que faz estimar, como receita média anual, o montante de 160.000 réis. Chegaram a construir-se engenhos no lugar das Furnas e houve alguns bastantes extensos nos arredores de Ponta Garça, mas os elevados custos, as pragas e alguma ganância ditaram a rápida queda da produção de cana191. Apesar de alguns sinais de vitalidade, que se terão prolongado, modestamente, em terras vilafranquenses, até ao século XVII, de acordo com Avelino Meneses, já no século XVI se assistiu ao declínio irreversível da cana do açúcar nos Açores, em boa parte por condicionalismos internos, mas também como consequência da concorrência da Madeira, de S. Tomé e do Brasil. Para Arlindo Cabral e Carreiro da Costa foram numerosas as causas da quebra desta produção, entre elas: as características dos solos, que não aguentaram esta esgotante cultura; a escassez de lenhas para os engenhos; os vendavais (e talvez o terramoto de Vila Franca do Campo); a praga que devastou os canaviais, nomeadamente, o bicho da cana (Nonagria Sacchari) — uma espécie de larva que logo na primeira metade do século XVI começou a atacar as plantações, formando galerias no interior dos caules que começavam a fermentar — e, por fim, o abuso das falsificações que terão afastado os compradores externos192. 187 IDEM, pp. 168-172. 188 MENESES, Avelino de Freitas de (2005), ob. cit., p. 352. 189 IDEM. 190 “Produção d’Assucar em S. Miguel em 1554”, in Arquivo dos ... ob. cit., 1983, vol. XI, pp. 305-306. 191 Veja-se FRUTUOSO, Doutor Gaspar (1971), Livro Quarto das Saudades ... ob. cit., vol. II, pp. 58-61. 192 CABRAL, Arlindo (1950), “Agricultura e Economia do Distrito de Ponta Delgada”, in Boletim da Comissão Reguladora dos Cereais do Arquipélago dos Açores, Ponta Delgada, Ano VI, n.º 11, 1.º sem., p 25; COSTA, Carreiro da (1949), ob. cit., pp. 25-27. 105 Por meados do século XVIII, quer em S. Miguel, como na Terceira, terá sido tentada, novamente, esta cultura, embora sem sucesso. No decurso de oitocentos, alguma opinião pública persistiu, ainda, no sentido de incentivar o regresso do cultivo da cana sacarina. Por exemplo, no jornal O Açoriano Oriental, encontra-se um artigo, dirigido aos proprietários micaelenses, escrito por António Maria da Silva, continental que se encontrava há três meses na ilha e que defendia o seguinte: O clima desta ilha, a natureza do seu terreno, a humidade, que sempre conserva a nutrição das terras e os abrigos dos muros e arvoredos, tudo isto proporciona meios vantajosos à cultura da cana d’açúcar. A Madeira já não oferece tantas e tão boas vantagens (…)193. No mesmo artigo, também se afirmava que a cana queria boa terra, preparada e adubada, pelo que, querendo os proprietários, esta poderia ser uma cultura de futuro e uma fonte de riqueza. Sugeria-se a formação de uma sociedade e a aquisição de cana na Madeira. Considerava, ainda, o autor que esta era uma cultura com muito potencial, dado que podia levar à produção de aguardente e até a própria palha, depois de seca, servia para queimar nos engenhos e para adubar a terra. Contudo, o rumo da produção açucareira viria a ser muito diferente e, até aos novos investimentos nesta área, restou a importação do açúcar do Brasil, como demonstra a tabela I. Tabela I – Comércio Import / Export nos Açores (década de 20 do século XIX)194 Exportações Importações Laranja e limão -150.000 caixas Vinho – 14.000 pipas Aguardante – 600 pipas Carne (Vaca e porco) Milho – 8.000 moios Trigo – 6.000 moios Fava, feijão e outras leguminosas Manteiga e toucinho Panos de linho – 12.000 varas Peles e queijos DESTINOS – Inglaterra, Portugal, Brasil, EUA, Hamburgo, Rússia e França. Inglaterra – panos de toda a qualidade e tecidos de seda, loiças, papel e ferro. Portugal – sal, pedra de cal, pinho de figueira, chá, imagens, relíquias, brasões, diplomas, livros e outros. Brasil – algodão, madeiras, arroz, açúcar, café e anil, alguma aguardente de cana. Estados Unidos – azeite de peixe, pinho, aduelas e linhaça. Hamburgo, Rússia e França – vidros, ferro bruto e em obra, lonas, brins, cobre, cordame, alcatrão, resinas e linho. Somente nos alvores do século XX, a produção de açúcar voltaria a despontar, na ilha de S. Miguel, através da Fábrica de Açúcar de Santa Clara que fora convertida, desde Outubro de 1884, em destiladora de álcool de batata doce. Em 1906, iniciou 193 O Açoriano Oriental, n.º 1.135, de 26 de Dezembro de 1857. 194 SOUSA, João Soares de Albergaria e (1995), Corografia Açórica. Descrição física, política e histórica dos Açores, Ponta Delgada, Jornal de Cultura [Ed. Original: 1828]. 106 a laboração de açúcar de beterraba, enquadrada na União de Fábricas Açorianas de Álcool, consórcio estabelecido em 1902, com a fusão de cinco indústrias congéneres, devido às rigorosas e protecionistas medidas governamentais que colocavam entraves à entrada do álcool açoriano no continente195. A Fábrica de Santa Clara, a par da indústria açucareira do Torreão, na Madeira, passaram a constituir as únicas do género no país, ainda que cada uma extraísse o açúcar de matérias-primas diferentes: a beterraba196 e a cana. Segundo Augusto Gomes (sem referência a qualquer fonte), o cultivo da beterraba, na ilha de S. Miguel, para aproveitamento forraginoso, parece datar dos inícios do século XIX, embora exista a possibilidade da sua introdução ter ocorrido em finais do século XVIII, por iniciativa de João Carlos Scholtz, prussiano que se fixara na ilha e procedera à aclimatação de diversas espécies197. Não obstante, foi necessário aguardar pelas experiências do agrónomo José Canavarro de Faria e Maia, para que se procedesse à extração de açúcar, à moda da França e, com a fábrica, arrancasse a produção açucareira198. A produção de beterraba passou a ocupar vasta área da ilha de S. Miguel, tornando- se uma importante fonte de receita para muitos agricultores micaelenses, bem como um fertilizante natural dos solos e fonte alimentar para o gado. A época de laboração fabril ia de julho a novembro, motivando intenso tráfico de carroças carregadas de beterraba, entre os campos de cultivo e o portão sul da fábrica, situada em Ponta Delgada. À chegada, os tubérculos eram tombados nos silos-canais de água corrente, operando-se, em seguida, a transformação em polpa e depois em açúcar de elevado poder adocicante199. A 195 “Fábrica de Açúcar de Santa Clara”, in Madeira-Açores, n.º 2, 30 de Junho de 1951, p. 43. Segundo o Eng. Vasconcelos Raposo, autor de um opúsculo intitulado Breve Resenha Histórica do Fabrico de Açúcar de Beterraba, em S. Miguel, editado pela Sociedade Industrial Agrícola Açoriana, o grande impulsionador desta nova indústria foi o decreto de 1901, que proibiu o emprego de álcool no tratamento do vinho do Porto, pondo em causa a sobrevivência de muitas das fábricas de álcool dos Açores (as duas da Terceira e as três de S. Miguel: Lagoa, Ribeira Grande e Santa Clara). Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 160. 196 Em 1744, Andreas Marggraf publicou um artigo sobre a possível extração de açúcar a partir da beterraba. As suas ideias foram aperfeiçoadas e desenvolvidas, mais tarde, por um químico francês, Benjamin Delessert que veio mesmo a produzir açúcar de beterraba em Passy. Em 1812, Napoleão visitou a fábrica de Delessert e ficou tão bem impressionado que lhe atribuiu a cruz da Legião de Honra. Cf. RITCHIE, CARSON I. A. (1995), ob. cit., pp. 184-185. Sobre as origens da produção de açúcar a partir da beterraba, veja-se: AUSTIN, Harry A. (1928), History and Development of the Beet Sugar Industry, Washington D. C., National Press Building. 197 GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 160. 198 IDEM, p. 160. 199 “Fábrica de Açúcar de Santa Clara”, in ob. cit., p. 44. 107 implementação desta fábrica está associada à intervenção do micaelense Hintze Ribeiro, enquanto primeiro-ministro de Portugal. Tratou-se da única fábrica açucareira dos Açores, não obstante os insistentes pedidos das forças vivas da ilha Terceira200. Acontece que aquando do encerramento das fábricas de álcool, foram extintas as duas desta ilha, bem como a da Ribeira Grande, em S. Miguel, tendo-se mantido a da Lagoa e promovido a transformação da de Santa Clara em fábrica de açúcar de beterraba. Esta indústria ainda hoje subsiste, mormente as dificuldades financeiras enfrentadas. Anteriores dificuldades ocorreram em contexto da Grande Guerra, e suas consequências, quando a escassez deste produto afetava as famílias de Ponta Delgada, obrigando à organização e racionamento do consumo, por intermédio da intervenção da própria Administração do Concelho201. 2. A utilização do açúcar na vida quotidiana insular O consumo do açúcar é indissociável da confeção de doçaria, embora em pleno século XIX ainda fosse, por vezes, ministrado por prescrição médica, devido às suas qualidades energéticas. A grande novidade deste período, residiu numa certa democratização do consumo açucareiro, uma vez que já não se circunscrevia à alimentação dos ricos. A exploração da beterraba e a industrialização muito contribuíram para esta realidade. Além disso, desde o século XVII, a sua produção, com base na cana sacarina, tornara-se mais rentável devido à descoberta de um novo tipo de bebida, proveniente do processo de destilação: o rum. Nos Açores, as receitas de doçaria chegaram nos tempos do povoamento, particularmente por via dos mais abastados e das ordens religiosas femininas. Entre estas, terão sido a professas, oriundas de boas famílias, a desenvolver e a aprimorar a confeção de doces. Como explicam Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, na Europa, desde o século XVI, a cozinha era uma atividade servil, mas a feitura de confeitaria e de gulodices era do interesse das damas e das senhoritas das elites sociais. Daí o surgimento dos primeiros livros de receitas que eram autênticas “compilações de segredos”202. Muitas receitas, aliás, ficaram na posse de conventos ou de algumas famílias durante séculos. 200 BPARDP – Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro – Documentos sobre produção de açúcar – 8.35.6. 201 Correio dos Açores, n.º 279, 17 de abril de 1921. 202 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998), História da Alimentação, São Paulo, Estação da Liberdade. 108 De acordo com Augusto Gomes203, na ilha de S. Miguel, os marcantes contrastes sociais existentes, deste longa data, refletiam-se na própria cozinha, podendo-se distinguir a cozinha rica, a burguesa e a pobre. A primeira diversificou-se e aprimorou-se, nas casas solarengas, graças às múltiplas viagens das grandes famílias micaelenses, à passagem de inúmeros viajantes estrangeiros e nacionais, a receitas vindas da Inglaterra, no tempo áureo do comércio da laranja e ainda aos receituários oriundos dos conventos, muito ricos no domínio da doçaria. Já a cozinha burguesa, que nasce da chamada classe média, terá raízes nos diferentes períodos económicos, do trigo aos citrinos, traduzindo-se em pratos substanciais com características regionais. A sua doçaria abrange alguns doces conventuais, bolos de confeção vulgar, biscoitos, doces de frutas e licores caseiros204. Segundo Luís Arruda, até meados do século XX, a confeção de doces mais elaborados manteve-se restrita às cozinhas das casas mais abastadas e, a seu tempo, também às dos conventos. Muitas das receitas foram levadas daquelas casas pelas professantes, que as modificaram ou aperfeiçoaram durante o tempo passado na clausura. Posteriormente, estas melhorias foram transmitidas a familiares e alargaram- se às comunidades, em especial depois da extinção dos conventos205. O relevante papel das ordens religiosas femininas na elaboração de sobremesas e na intrínseca utilização de açúcar é, assim, reconhecida por diferentes historiadores. Luís Mendonça sublinha mesmo que a doçaria açoriana foi impulsionada pelas freiras, que emprestavam um enorme primor à confeção de doces, caracterizados pelo uso de grandes quantidades de açúcar e de gemas, como acontecia, aliás, por todo o país. Além disso, o mesmo autor destaca ainda a variedade da doçaria regional, indissociável das famílias mais prósperas e das festividades religiosas206. Desde longa data, pois, a difícil “arte de fazer doces” integrava a vida quotidiana das ordens religiosas, associada, por vezes, a ocasiões ou datas especiais e, ainda, à arrecadação de receitas, muito importantes para a própria sobrevivência das freiras e dos seus conventos. Leite Ataíde descreve o que considerava uma “praxe” própria da 203 GOMES, Augusto (1997), ob. cit. 204 IDEM, p. 22. 205 ARRUDA, Luís (2003), “Doçaria”, in Enciclopédia Açoriana, Governo dos Açores / Direção Regional da Cultura, disponível em: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=2762 206 MENDONÇA, Luís (1998), Aspectos da Vida Quotidiana nos Açores (perspectiva histórica), Ponta Delgada, Nova Gráfica, pp. 53-54. 109 vida monástica: Presentear o afeiçoado, o protector do convento, ou as famílias das freiras com guloseimas, dando por esta forma uma prova de reconhecimento aos eclesiásticos e aos colaboradores das festividades religiosas, era uma praxe, um uso seguido nos mosteiros (...). A estas prendas, tão agradáveis pelo sabor como finas pela intenção, deram as freiras a graciosa denominação de mimos, termo que encerra todo o sentido da vida conventual (...). A arte de fazer doces era complicada, tinha os seus segredos, receitas misteriosas exigindo cuidados infinitos e particular perícia. Os doces apareciam a propósito de tudo, nas profissões, nas visitas dos Bispos, nas festas da igreja, nas procissões e constituíam uma importante fonte de receita (...)207. Alguns dos estrangeiros que visitaram os Açores, no século XIX, legando, à posteridade, relatos e descrições das paisagens e dos costumes insulares, refletem nos seus testemunhos apreciações sobre a vida conventual e, por consequência, também sobre a própria doçaria. O britânico Briant Barrett, que percorreu sete ilhas do arquipélago entre 1812 e 1814, relata, assim, a visita que fez ao convento de Vila Franca do Campo, em S. Miguel: O Padre Secretário levou-nos, nessa mesma tarde, a fazer uma visita à Abadessa do Convento das Freiras; ela recebeu-nos, afavelmente e, como era habitual, fez-nos imensas perguntas. A Abadessa era uma senhora bonita, fina e distinta que tinha cinquenta e seis anos de idade, mas o seu rosto aparentava uma juventude e saúde de quarenta anos. (...). O Convento das Freiras, em Vila Franca, era grande e nele habitava muita gente, tendo cerca de 200 freiras professas e não professas. O seu rendimento, de acordo com o preço do cereal em Ponta Delgada, no ano de 1812, era equivalente a 6.000 libras por ano. 207 ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), Etnografia, Arte e Vida Antiga dos Açores, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, vol. I, pp. 387-389. 110 A Abadessa abriu os grandes portões para que pudéssemos apreciar o primeiro pátio que tinha um fontenário (...). As freiras cantavam e trabalhavam nas suas respectivas celas (...). Fomos obsequiados pela Abadessa que nos ofereceu uma grande variedade dos melhores doces ali confecionados, bem como um grande pudim de arroz que foi muito apreciado (...)208. No final da passagem anterior, Barrett refere-se, certamente, ao conhecido “arroz doce”, feito à base de arroz, leite, açúcar, gemas e canela (polvilhada) e que, ainda nos nossos dias, é muito popular nestas ilhas. Aliás, o consumo de arroz vulgarizou-se, em Portugal, desde inícios de oitocentos, sendo aplicado em inúmeros pratos e receitas209. Aquando da sua estada na ilha do Faial, o mesmo viajante também registou o elevado montante de rendimentos dos conventos de freiras, lamentando, porém, que os síndicos os administrassem mal e a seu favor, remetendo as religiosas para situações de autêntica pobreza. Segundo Barrett, o que então lhes valia era o auxílio de familiares, bem como a confeção e venda de flores artificiais, velas de cera, bolos e doces, bem como a fiação de linhos210. Quer isto dizer que as freiras eram mulheres empreendedoras, procurando, com os seus dotes manuais e culinários, obter os proventos necessários ao seu sustento. Em 1821, John Webster, médico norte-americano, também se referiu, nos seus escritos, às visitas que as freiras recebiam nos conventos e nos respetivos locutórios (grades), as quais incluíam, naturalmente, diferentes familiares, mas também amigos, conhecidos e até estrangeiros. No interior das instalações, as religiosas preparavam chá, que colocavam numa bandeja, juntamente com inúmeros bolos e doces, que passavam, às visitas, por uma abertura na parede. Os criados que as acompanhavam serviam-nas e depois serviam-se a si, “comendo sem cerimónia alguma”211. Já para Walter F. Walker (1885), a inutilidade dos conventos só era atenuada pelo mérito de 208 BARRETT, Briant (2017), Relato da Minha Viagem aos Açores, 1812-1814, 1.ª edição, Ponta Delgada, Letras Lavadas, pp. 123-124. 209 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), Portugal à Mesa. Alimentação, etiqueta e sociabilidade, 1800-1850, Lisboa, Hugin Editores, p. 44. 210 IDEM, P. 248. 211 WEBSTER, John (1983), “Descrição da Ilha de S. Miguel em 1821”, in Arquivo dos Açores, ed. fac-si- mile, Ponta Delgada, 1983, vol. XIII, p. 144. 111 fornecerem ao público flores de penas ”de feitura primorosa” e numerosas compotas e doces elaborados ”com notável perfeição” e cujo produto das vendas revertia a favor da subsistência das próprias212. De um modo geral, a oferta de frutas e doces, incluindo bolos e malassadas, integrava os hábitos da população insular, como sinal de gratidão ou como recompensa por serviços ou favores que se deviam. Em sociedades onde prevalecia o setor primário, era natural que estas dádivas fossem sustentadas em animais domésticos, produtos agrícolas e outros de confeção artesanal e da natureza gastronómica. Assim testemunhou Webster: O costume de presentear amigos e conhecidos em certas ocasiões do ano é cumprido com grande pontualidade por todas as classes. Assim, pela Páscoa, seria considerado altamente vergonhoso não mandar ao médico da família, galinhas, porcos, frutas, doces, etc. A pessoa mais pobre, por ele tratada, empenha-se em lhe oferecer qualquer lembrança, e considerar-se- -ia ofendida se ela não fosse aceite. Pelo Natal, e algumas outras festas, as famílias fazem uns bolos especiais, que mandam ao marchante, alfaiate, sapateiro, lavandeira e outras pessoas, por elas empregadas durante o ano. Na terça-feira de Carnaval as freiras presenteiam todas as pessoas das suas relações com grandes quantidades de amêndoas, doces secos e malassadas. Nestes dias fazem-se, às vezes, presentes de grande valor a funcionários públicos; e outros de menor importância aos empregados da casa213. Entre a doçaria conventual, podemos destacar as queijadas de Vila Franca, na ilha de S. Miguel e o pudim do Conde da Praia da Vitória, na ilha Terceira. As primeiras, estão ligadas ao convento de Santo André, da 1.ª Regra de Santa Clara, edificado em 1533, em Vila Franca do Campo, no qual também se confecionavam os biscoitos de aguardente e os bolos de D. Adélia. As queijadas remontam ao século XVII e começaram por ser feitas por ocasião da procissão do Santíssimo Sacramento214. Nos finais do 212 WALKER, W. Frederick (1967-1968), “Os Açores ou Ilhas Ocidentais”, in Insulana, ICPD, vol. XXIII, 1.º sem., p. 54. 213 WEBSTER, John (1983), “Descrição da Ilha....”, in ob. cit., p. 46. 214 Cf. ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., pp. 390-391. 112 séc. XVIII vieram para o convento freiras de origem holandesa e espanhola, que confecionavam as queijadas em conformidade com uma receita secular. Trata-se de uma “queijada macia, suculenta e doce, com larga tradição e de grande qualidade”215. Fig. 22 – Queijada da Vila. Fonte: https://www.noticiasdecoimbra.pt/vila-franca-do-campo O pudim do Conde da Praia da Vitória é igualmente um doce conventual, feito à base de puré de batata, dúzias de gemas e açúcar. Remonta ao século XVII e está ligado às religiosas do Convento de S. Gonçalo, em Angra do Heroísmo. Tomou o nome do Visconde de Bruges, 1.º Conde da Praia da Vitória, Teotónio Ornelas de Bruges, por ser o seu pudim favorito, servido habitualmente nos banquetes que oferecia em sua casa. Posteriormente, o pudim terá sido levado para outras casas da nobreza terceirense, acabando por dar origem a queijadas, mais apreciadas nas festas216. De acordo com o estudo de Isabel Drumond Braga, no século XIX, o recurso à batata, na culinária, abrangia inúmeras receitas e ia dos pratos principais às sobremesas. Numa obra publicada em 1849, e que a autora refere217, aparecem duas receitas de pudim 215 Veja-se: http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/docaria-regional/queijadas-de-vila-franca/. Veja-se ainda: Confederação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas – Região Autónoma dos Açores. Disponível em: https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/zona-geografica/regiao-autonoma-dos- acores?start=20 216 Cf. https://cozinhaacoriana.pt/pudim-conde-da-praia/. Veja-se também: http://www.jornaldapraia. com/noticias/ver.php?id=890 217 Collecção de Verdadeiras e Proveitosas Receitas que servem para fabricar com Economia e Facilidade varias Qualidades de Doces, Bolachinhas e Liquores, com o Conhecimento dos Pontos do Assucar, e o Modo 113 de batatas (uma do reino e outra das ilhas) e em ambas, ao puré do tubérculo, depois de cozinhado, juntavam-se muitas gemas, poucas claras, açúcar e uma boa porção de manteiga, levando-se este preparado ao forno218. Fig. 23 – Pudim do Conde da Praia da Vitória. Fonte: https://cozinhaacoriana.pt/pudim-conde-da-praia/ Já em 1824, por carta que enviou ao seu amigo de Ponta Delgada, António José de Vasconcelos, o desembargador Vicente José Ferreira Cardoso da Costa, que se encontrava em Mafra, solicitava o envio de batatada, um doce que ainda era diferente dos pudins anteriores219. Na missiva, dizia assim: Envie-me batatada e venha feita com açúcar refinado para ser mais clara. Há um modo de a fazer mais singular, que é assando a batata no forno, em vez de a cozer e depois ralando-a como se faz à cozida. Quero algumas dúzias dela assim, são para as Senhoras Infantas. Se viesse em copos de dois ou três ou quartilho era melhor. Da ordinária quero sessenta dúzias de canecas. Quero também batatas em raposas ou barricas. No Cabouco deixei muita plantada. (...). Como me dizem que eu quero pôr Sua Majestade um mangericão e que me de preparar as Bandejas de Doces, por B.A.B., Lisboa, Tipografia e A. Rebelo e Irmãos,1849. 218 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), ob. cit., pp. 47-48. 219 ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., p. 392. 114 querem fazer a vontade é necessário adoçar-lhe a boca220. A batatada também fazia parte da doçaria conventual que era, porém, muitíssimo variada, incluindo ainda: especiones, morgados221, bolos de esperança222, biscoitos cobertos, lágrimas e repentes, raivas, fatias da China223, suspiros, bocas de dama, barrigas de freira224, bolos de amor225, pingos de tocha226, maçarocas e flores de massa de ovos e amêndoa, estas duas últimas verdadeiras obras de arte executadas pelas freiras mais habilidosas do Convento da Esperança, em Ponta Delgada227. De um modo geral, entre os ingredientes predominantes contam-se açúcar, em abundância, e que é fundamental pelos diferentes pontos de calda que propicia. Acresce o elevado número de gemas (as claras eram pouco utilizadas porque serviam para outros usos, tais como engomar os hábitos das religiosas ou os fatos dos homens mais prósperos) 220 Ao adoçar a boca de D. João VI, das Infantas e da Corte, o desembargador procurava conseguir bons negócios da administração pública a favor da ilha de S. Miguel e dos Açores. Cf. ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., p. 393. 221 Estes doces, com recheio de doce de ovos, eram muito característicos da então vila da Ribeira Grande, sendo confecionados pelas freiras Clarissas do Convento de Jesus, desta localidade, e muito apreciados em Ponta Delgada. Depois da extinção das ordens religiosas e do encerramento de conventos, algumas pessoas (leigas e religiosas) começaram a fazê-los em suas casas, mas a receita acabou por ser um pouco adulterada. Em vez da massa tenra muito fina, coberta por um calda de açúcar, passaram a ser cobertos apenas por uma calda grossa de açúcar. Veja-se GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 184. 222 Além do açúcar em ponto de pasta, leva-se ao lume miolo de pão, cidrão picado, canela, amêndoas pisadas e manteiga. Fora do lume, adiciona-se uma dúzia de gemas e volta a cozer. Cobrem-se com massa fina e então vão ao forno. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 170. 223 Desconhece-se a origem deste doce, mas há quem o atribua ao Convento de Santa Iria em Tomar, pelo que além da designação de fatias da China, também são conhecidas como fatias de Tomar. São feitas à base de dúzias de gemas, muito bem batidas e cozinhadas em banho-maria. Depois de cortadas, são mergulhadas numa calda de açúcar. Disponível em: https://lifecooler.com/artigos/fatias-da-china- ou-de-tomar/7539 224 Pudim atribuído à Ordem das Ursulinas, do Convento de Vale da Mó, no concelho de Anadia. É feito à base de grande quantidade de gemas, açúcar, água e manteiga. No entanto, existem várias versões, algumas das quais utilizam fatias de pão de trigo, sem côdea ou de pão de ló. Disponível em: https://ncultura.pt/-5receitas-divinais-da-docaria-conventual-portuguesa/. Veja-se também: GOMES, Augusto (1997), ob. cit., pp. 191-192. 225 Também eram confecionados à base de batata cozida e ralada, muito açúcar, gemas de ovos e algumas claras, juntando-se ainda canela, casca de laranja e farinha suficiente para que a massa permita moldar os bolos com forma arredondada. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 169. 226 São doces feitos à base de fios de ovos e calda de açúcar e, em S. Miguel, eram muito característicos do Convento de Santo André, em Ponta Delgada. Atribui-se a origem dos fios de ovos ao Mosteiro de S. Bento de Avé Maria, no Porto. Disponível em: https://confeitarianacional.com/portfolio/pingos-de-tocha/ 227 ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., pp. 389 e ss. 115 e, por vezes, a amêndoa, o fruto seco que mais se destacava228. O elevado teor calórico desta doçaria atesta uma particularidade gastronómica que se fez sentir a partir dos séculos XVII e XVIII, pois a pretexto de um novo gosto, as preocupações dietéticas deram lugar à gulodice. Os refinamentos da cozinha deixaram de buscar a boa saúde, em prol da satisfação dos mais gulosos229. Se alguma desta doçaria terá vindo, para as ilhas, pela mão de famílias proemi- nentes, outra terá sido adaptada ou terá mesmo surgido nas próprias ilhas, tornando- -se típica da região. O alfenim, por exemplo, que se crê ser de origem árabe (al-fenid), terá sido introduzido, na região, através de habitantes do reino, mas tornou-se numa antiga guloseima tradicional da ilha Terceira, associada a festividades religiosas, sen- do confecionada com água, vinagre e açúcar. O segredo reside no ponto do açúcar e, com esta massa, ainda quente, moldavam-se animais ou partes do corpo humano, as- sumindo assim também um carácter simbólico (ex-voto)230. Fig. 24 – Pombinha de alfenim, muito usada pelas Festas em honra do Divino Espírito Santo. Fonte: http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/docaria-regional/alfenim/ Fig. 25 – Queijadas D. Amélia. 228 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), ob. cit.,p. 42. 229 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998), ob. cit., p. 549. 230 Cf.: http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/docaria-regional/alfenim/ 116 Fonte: https://medium.com/made-in-azores/dona-am%C3%A9lia-um-doce-de-rainha-6128784d4211 Também oriundas da ilha Terceira são as queijadas D. Amélia, pequenos bolos, de aspeto simples, textura melada e sabor exótico, por incluírem muito açúcar e várias especiarias (como canela e noz moscada). São tidos como uma homenagem da sociedade angrense à rainha D. Amélia, na sequência da visita régia de 1901. Há quem considere que estas queijadas terão resultado de uma adaptação do chamado Bolo das Índias, cuja receita, surgida na época das descobertas ultramarinas portuguesas, refletia o abundante comércio de especiarias, repletas de propriedades conservantes que asseguravam o consumo deste bolo durante muito tempo231. Segundo Eduardo Justo Nobre, foi no gigantesco piquenique da feira pecuária, realizada na planície do Paúl (onde se reuniram mais de 30.000 pessoas), que D. Amélia provou estes bolinhos, feitos com base nos tradicionais “pudins terceirenses”, repletos de ovos, açúcar, manteiga, farinha de milho, mel de cana, cidrão e especiarias e aos quais ainda se adicionava o não menos tradicional doce de laranja. Porém, a frágil consistência dos bolos e o acidentado do percurso, em carros de bois, levou alguém a sugerir que se retirasse o doce de laranja, aumentando a consistência dos mesmos. Uma vez que a rainha elogiou e apreciou os bolinhos, as queijadas batizadas com o nome de D. Amélia, tornaram-se, até hoje, uma especialidade da doçaria da ilha Terceira232. A população açoriana, em geral, não tinha meios para poder confecionar receitas 231 Cf. Rogério Sousa, in https://medium.com/made-in-azores/dona-am%C3%A9lia-um-doce-de- rainha-6128784d4211 232 Eduardo Justo Nobre (2001), “A Visita Régia à Madeira e aos Açores”, in Notícias Magazine. Diário de Notícias, n.º 483, agosto, pp. 25-26. 117 elaboradas ou para usar a doçaria para além de datas festivas. Como refere Braudel, a “revolução do açúcar” teve lugar precocemente, mas progrediu muito devagar e não chegava a todas as mesas233. Entre as classes populares este ingrediente continuava a ser, ainda no século XIX, um produto de luxo e, como tal, usado em ocasiões especiais. De acordo com Urbano Mendonça Dias, os batizados, por exemplo, celebravam-se, desde oitocentos, dentro de 30 dias após o nascimento, motivando a realização de uma pequena festa, em família: um almoço em casa dos pais, com a presença dos padrinhos, dos avós e da parteira. Os padrinhos, conforme as suas posses, contribuíam para o almoço, além de oferecerem o vestido e uma lembrança. Alguns davam o vinho, outros ofereciam as galinhas ou carne de vaca e não podiam faltar pão e massa sovada234, uma espécie de pão macio e doce, cuja designação se deve ao processo de amassar, ou seja, muito sovado. Esta gulodice era e ainda é muito apreciada no meio rural açoriano, sendo caracterizada por um miolo amarelo e uma côdea acastanhada. Assume diferentes designações consoante o formato e a época festiva, não obstante estar particularmente associada aos festejos em louvor do Espírito Santo, profundamente arreigados entre o povo açoriano235. Fig. 26 – Bolo de massa sovada. Fonte: https://www.iloveazores.net/2020/04/aprenda-receita-da-massa-sovada-para.html No tocante às crianças, nos primeiros dias após o nascimento, as mais abastadas eram alimentadas com o leite materno ou da ama ou, na falta deste, com 233 BRAUDEL, Fernand (1992), ob. cit., p. 193. 234 DIAS, Urbano de Mendonça (1949), A Vida dos Nossos Avós, Vila Franca do Campo, Tip. A Crença, vol. 9, p. 47-48. No século XVIII haviam sido proibidas, pelo Bispo da Diocese, a oferta de velas de alfenim, por ser contra as cerimónias próprias da Igreja. IDEM, p. 50. 235 Veja-se GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 31. 118 leite de vaca desnatado e cortado com água. As crianças mais pobres, comiam sopas de pão de trigo, fervidas em água e envolvidas com um pouco de açúcar. Também era habitual, para sossegar as crianças, meter-lhes na boca uma chucha de sopas de trigo, enroladas com açúcar, tudo atado a um pano ralo, a que davam o nome de boneca236. Quanto aos casamentos, tanto para os pobres, como para os ricos, representavam uma importante festa de família. Entre as camadas populares, depois da cerimónia, seguia-se a boda que, habitualmente, se realizava em casa dos pais da noiva. A comida era abundante e não podiam faltar carnes de vaca, galinhas, massa sovada e arroz doce. Consoante a ilha, podiam servir-se também espécies, rosquilhas de aguardente, bolo de coalhada, doce branco (S. Jorge), queijadas de leite, pastéis de arroz e encharcados de ovos (Graciosa), os melindres (Terceira), as rosquilhas e os bolos de véspera (Pico), os biscoitos encanelados, biscoitos de orelha, as cavacas e orelhas de abade (Santa Maria). De toda esta variedade, destaquemos apenas alguns exemplos típicos. Fig. 27 – Espécies. Fonte: https://radiolumena.com/especies-de-sao-jorge-sao-o-doce-mais-tradicional-da-ilha-caudio/ Fig. 28 – Cavacas. Fonte: http://oqueenosso.blogspot.com/2008/11/receitas-marienses-cavacas.html 236 DIAS, Urbano de Mendonça (1949), ob. cit., vol. 9, pp. 52-53. 119 As espécies, características da ilha de S. Jorge, terão a sua origem nos tempos de abundância das especiarias, razão, aliás, da sua própria designação. É possível, pois, que remontem ao tempo dos povoadores, com influências do Alentejo e da Flandres237. Entre as especiarias que condimentam o recheio encontram-se ervas doces, canela e pimenta. Em forma de pequenas rosquilhas de massa tenra, transversalmente golpeadas na parte superior, deixam sobressair o recheio contrastante de cor castanha. Na ilha da Pico, os bolos de véspera estão muito associados às tradições em torno dos Impérios e das festividades do Espírito Santo. Em todas as freguesias, e desde tempos recuados, era hábito distribuir, pelos habitantes ou forasteiros, a massa sovada que, conforme as localidades, assumia a forma de pão, de rosquilhas ou de vésperas. Estes bolos, feitos à base de farinha, açúcar e muito leite, depois de levedarem são sovados até a massa ficar macia. Em seguida, são estendidos e ficam com uma forma redonda. Têm direito a chavão, ou seja, a serem marcados com as insígnias do Espírito Santo, pelo que são marcados seis a nove vezes, no centro e à volta e, depois de cozidos em forno de lenha, são benzidos e distribuídos três dias antes da festa. É esta a razão da sua designação238. De origem portuguesa e popular, as cavacas tornaram-se muito típicas da ilha de Santa Maria. Cobertas com uma calda de açúcar, a sua massa é confecionada à base de farinha, ovos, azeite e água. Não obstante, também se designam como cavacas, confecionadas de modo diferente, doces de origem conventual, como as cavacas de 237 “Espécies de S. Jorge”, disponível em https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/cat/doces-e-produtos-de- pastelaria/698-especies-de-s-jorge 238 “Bolos de Vésperas”, disponível em https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/cat/doces-e-produtos-de- pastelaria/683-bolos-de-vesperas 120 Resende (distrito de Viseu)239. Entre as classes média e popular era costume o fabrico caseiro de licores de leite, de café ou de cacau ou ainda aromatizados por frutos, como a tangerina e a laranja ou por ervas, como o anis ou o poejo. Ao longo do verão, como afirma Mendonça Dias, era hábito, entre as camadas média e alta da população açoriana, confecionar doces ou compotas como meio de conservar a fruta e para consumir durante o inverno. Assim, eram comuns os doces de amora, batata-doce, figo, marmelo e tomate-de- capucho, mas também de araçá, goiaba, nêspera, groselha, entre outros e que incluíam uma considerável quantidade de açúcar, que permitia a conservação. Também no continente a conserva de frutas passava pela confeção de marmeladas, geleias, caldas, doces e compotas, num processo de adição de açúcar (e, por vezes, de aguardante) e de cozedura, a qual implicava a redução do primeiro, através do calor240. Ainda de acordo com Mendonça Dias, entre as guloseimas obrigatórias nos arraiais, casamentos e outras festividades, contavam-se os rebuçados, os confeitos e os caramelos artesanais. Os primeiros eram feitos com açúcar em ponto e aromatizados com raspa de limão ou laranja, sendo depois talhados em pequenos pedaços ou em forma de estrelas, de pequenos animais ou de pequeno bastão e, por fim, embrulhados em papéis de cores vivas. Os caramelos eram confecionados com uma mistura de açúcar, leite, manteiga e cacau levada ao lume, a ferver, e depois de arrefecida convenientemente, partida aos bocadinhos241. O calendário litúrgico também marcava a culinária insular no que concerne à doçaria. No Natal desde há muito que se cozia a massa sovada, pelo Carnaval fritavam- se as malassadas242 (em que podemos encontrar algum paralelismo com as farturas do continente), pela Páscoa consumiam-se os folares (massa sovada com ovos cozidos semi-envolvidos no preparado) e as fatias douradas (modo de aproveitamento de fatias 239 Ver: https://maisresende.pt/cavacas-de-resende 240 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), ob. cit.,p. 90. 241 Na confeção de caramelos também se podia adicionar natas, mel, leite ou açúcar rosado. Dependia do tipo de caramelo, fosse ele de chocolate, de leite, rosados ou melados. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., pp. 242-243. 242 Segundo Augusto Gomes, embora existam interpretações que defendem a existência da designação de melassadas, por em tempos mais remotos se adicionar melaço da cana de açúcar, no seu entendimento não faz muito sentido pois, assim, a grafia devia ser melaçadas. Na opinião deste estudioso da gastronomia açoriana, a versão correta está na palavra mal-assadas, tomando por base o seu processo de confeção. Existe mesmo a palavra mal-assada como referência a ovos batidos e fritos, cobertos com açúcar. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 181. A base das malassadas está na farinha, no açúcar, ovos, leite, fermento e alguma gordura, sendo o maior segredo o amassar muito bem e aguardar a levedura. 121 de pão, embebidas em leite e gemas, fritas e polvilhadas com açúcar e canela) e no dia de Santa Maria de Agosto, os bolos lêvedos243, ainda hoje muito característicos da ilha de S. Miguel e, em particular, da freguesia das Furnas. Enquanto na doçaria conventual abundava o emprego do açúcar, na doçaria popular avolumava-se o uso da farinha. Fig. 29 – Malassadas cobertas de açúcar. Fonte: https://www.mulherportuguesa.com/receita/malassadas/ Ocasiões importantes em que as populações não dispensavam a confeção de doçaria residiam nas Festas do Espírito Santo, a que já aludimos. Segundo descrição de Francisco Afonso de Chaves, relativa às ilhas das Flores e do Corvo, em finais do século XIX e inícios do século XX, decorriam assim as celebrações: No sábado, pelas oito horas da manhã, vai o Rei da Coroa e mais pessoal, levar uma posta grande de carne a casa de cada um dos Padres da freguesia, e às do sacristão e sineiro, depois voltam para a casa do Espírito Santo (...). Nas casas de pessoas da freguesia que por pobreza não puderam contribuir para o Império é também dada uma posta de carne. Na ocasião em que se faz a distribuição da carne, recebe-se dos Irmãos o pão que queiram servir (dar). Nalgumas casas convidam para entrar todas as pessoas que andam na distribuição das arreliques244, a quem dão vinho, aguardente e farelórios (designação genérica de bolos, suspiros e massa sovada). (...). 243 MENDONÇA, Luís (1998), ob. cit., p. 54. 244 Nome de planta (Vicia angustifólia). 122 Acabada a distribuição das arreliques voltam todos para a casa do Espírito Santo com o pão obtido. Dão então a cada Folião cinco quilogramas de carne. (...)245. Como se pode verificar, além da carne e do pão, os farelórios incluíam múltipla doçaria, desde bolos, suspiros à massa sovada. Não obstante, também nestas ilhas não podiam faltar rosquilhas e arroz doce, como testemunha esta Cantiga da Folia habitual, durante o jantar dos domingos, em casa dos Imperadores: Ora toma, do manjar toma, O manjar foi de vitela Ela estava bem adubada, Tinha gosto de canela. Ora toma, do manjar toma, O manjar foi de rosquilha Ela estava bem temperada, Era mesmo uma maravilha. Ora toma, do manjar toma, O manjar foi boa sopa. Ela estava bem adubada Ficou o gosto na boca. Ora toma, do manjar toma, O manjar foi de pão leve. O Senhor Espírito Santo Paga bem a quem o serve. Ora toma, do manjar toma, O manjar foi arroz doce. O Espírito Santo é meu Assim eu do Divino fosse246. Sendo certo, pois, que o uso do açúcar na vida quotidiana da população açoriana 245 CHAVES, Francisco A. (1983), “Festas do Espírito Santo nos Açores”, in Arquivo dos ... ob. cit., vol. XIII, p. 15, [ed. original: 1903]. 246 IDEM, pp. 32-33. 123 se destinava, preferencialmente, ao fabrico de sobremesas, compotas, guloseimas e licores, ainda existiam outras finalidades em que era aplicado este produto. Umas de cariz religioso, medicinal e beneficente. Outras mais perversas e até mesmo de natureza criminal. Segundo o norte-americano Lyman Weeks, durante o século XIX os emigrantes açorianos, no Brasil, faziam dádivas de açúcar, joias e outras bens valiosos ao Senhor Santo Cristo dos Milagres247, imagem inspiradora de enorme devoção, particularmente entre a sociedade micaelense, e que se encontrava — como se encontra ainda hoje — no coro baixo do Convento da Esperança de Ponta Delgada. As oferendas de açúcar, a par de joias e outras bens valiosos, atesta bem o valor atribuído a este produto alimentar que, de certo, muito concorreria para a confeção da doçaria conventual. Por outro lado, o açúcar e o mel continuavam a ser considerados como remédios para diversas doenças e, por isso, eram aplicados com finalidades medicinais. O açúcar era tido como um cicatrizante, que servia para sarar ferimentos e infeções nos olhos, na garganta e noutros órgãos. Assim, desde longa data, faziam-se grandes doações ou pagamentos em açúcar às Misericórdias e aos respetivos hospitais. Em 1730, por exemplo, a Alfândega de Ponta Delgada pagou 2 arrobas de açúcar, no valor de 5$120 réis, ao Tesoureiro da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada, como igualmente pagou a conventos franciscanos248. Dadas as características deste produto, havia também utilizações delituosas, quando se recorria ao “nobre” açúcar para práticas de envenenamento. Em 1862, por exemplo, algumas mulheres internadas numa enfermaria do Hospital da Misericórdia de Ponta Delgada tiveram de ser examinadas por suspeita de estarem envenenadas. Confirmado o diagnóstico, veio a apurar-se que o marido de uma delas, através de um filho que a fora visitar, enviara uma porção de açúcar “para a consolar”, estando este, porém, misturado com veneno (arsénico). Como a doente resolveu partilhar a oferta com outras internadas, o caso ia-se tornando ainda mais grave, não fosse a rápida intervenção médica ter-lhes poupado a vida249. Precisamente no mesmo ano, um indivíduo das Capelas, na ilha de S. Miguel, visitou também a esposa no mesmo 247 WEEKS, Lyman H. (1959), “Nos Açores”, in Insulana, ICPD, vol. XV, 1.º sem., p. 54, [ed. original: 1882]. 248 “Despeza paga pela Alfandega de Ponta Delgada em 1730”, in Arquivo dos Açores, ed. fac-simile, Ponta Delgada, 1983, vol. XII, p. 29. 249 BPARPD – Fundo Judicial da Comarca de Ponta Delgada, Processos Penais, Maço 26, Proc. n.º 3207, 30 de julho de 1862. 124 Hospital, recorrendo, malevolamente, a idêntica estratégia. Ao oferecer-lhe açúcar a pretexto de lhe suavizar o sabor dos medicamentos, misturou-o com uma dose de arsénico, acabando a vítima por falecer. Segundo noticiou a imprensa o homicida “vivia mal com a mulher e a sua vida era escandalosa”250. O arsénico consistia num pó branco, altamente letal e impercetível precisamente quando misturado com sal, farinha ou açúcar. Vulgarmente era conhecido como “açúcar de ratos”, por ser muito utilizado, ao longo do século XIX, para extermínio destes roedores251. Se, nos Açores, o consumo de açúcar fez parte da vida quotidiana, desde os primórdios do povoamento e com diversas aplicações, já a produção sacarina foi assaz efémera, persistindo, muito esparsa, ainda no século XVII, mas já sem grande significado para a economia local. Apenas nos inícios do século XX, a extração da polpa de beterraba veio impulsionar a produção fabril de açúcar, na ilha de S. Miguel, perpetuando-se, somente, na toponímia os ténues sinais da presença de cana de açúcar nestas ilhas. Alguns locais apresentam-se, ainda hoje, com o nome de Engenho, como são exemplos os lugares da freguesia de S. Roque (Rosto de Cão), concelho de Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel; da freguesia dos Altares, no concelho de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira; da freguesia do Topo, concelho da Calheta, na ilha de S. Jorge e, por fim, da Vila da pequena ilha do Corvo252. Notas Finais De acordo com Carson Ritchie, o “desejo de comer” não é fisiológico, mas psicológico e, por isso, embora alguns hábitos alimentares se tenham alterado ao longo dos tempos, o desejo de açúcar persistiu inalterável253. Nos finais do século XVI, a produção açucareira provinha essencialmente da cana de açúcar, cujo cultivo e consequente produção representavam uma tarefa árdua. Acrescida das pragas e de outras dificuldades, esta produção não atingiu grande dimensão nas ilhas dos 250 O Correio Michaelense, n.º 840, 2 de Julho de 1862. 251 SILVA, Susana Serpa (2012), Violência, Desvio e Exclusão na Sociedade Micaelense Oitocentista, Ponta Delgada, CHAM, vol. I, p. 226. Sobre adulteração de alimentos, veja-se GRENHA, Paula Andreia Magalhães (2011), Transformações do Consumo Alimentar na Época Contemporânea, Coimbra, Faculdade de Letras [dissertação de Mestrado], pp. 25 e ss. 252 RIBEIRO, José Rodrigues (1979), Dicionário Corográfico dos Açores, Angra do Heroísmo, SREC / DRAC. 253 RITCHIE, CARSON I. A. (1995), ob. cit., pp. 161-162. 125 Açores, embora tenham existido engenhos com alguma expressão, em especial, na ilha de S. Miguel. Muito mais tarde, por inícios do século XX, começou a aproveitar- se, também nesta ilha, a polpa de beterraba para o fabrico açucareiro, dando mesmo origem a uma fábrica, em Ponta Delgada. Ainda assim, desde longa data, o açúcar fazia parte do quotidiano insular, sendo utilizado com fins medicinais e culinários. Desde os séculos XVII e XVIII destacou- se a doçaria conventual, marcada pelo requinte e pela abundância de açúcar e de gemas de ovos. Ao longo do século XIX e no tocante às classes populares, ainda que circunscrito a datas festivas e a ocasiões especiais, o consumo de açúcar fazia-se através de doces, compotas e licores, não obstante predominarem, entre os primeiros, os pães de massa doce, os farináceos e os biscoitos. Algumas receitas remontarão aos tempos do povoamento das ilhas e ao surgimento dos antigos engenhos, passando de geração em geração, em especial entre as famílias mais prósperas. Porém, muitas delas terão sido adaptadas ao condicionalismo do meio insular e outras ainda terão surgido por iniciativa popular. Bebidas como o café e o chá — introduzido em S. Miguel por esforços envidados pela Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense — também levaram à adição de açúcar, algo que veio a suceder apenas após a introdução destes produtos na Europa, pois nos territórios de origem não eram adoçados254. As muitas utilizações do açúcar, nestas ilhas atlânticas, acabaram por ficar plasmadas no próprio cancioneiro popular, com um exemplo do qual terminamos este contributo para a história da via quotidiana e da gastronomia nas ilhas dos Açores: Ninguém se fie nos homens, Nem no seu doce falar, Que eles têm falas de açúcar Coração de resalgar255. Os olhos do meu amor 254 IDEM, p. 168. 255 Segundo Augusto Gomes trata-se de um cogumelo de cor vermelha e muito venenoso. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 287. 126 São grãozinhos de confeito, São bolas com que me atiram Ao meu delicado peito. Minha terra, minha terra, Mais doce do que o mel, Quem voltasse àquela terra Do meu rico S. Miguel256. 256 IDEM, p. 287. 127 Imagens dos promotores do cultivo do tabaco e representações plásticas do hábito prazenteiro nas Canárias (Séculos XIX-XX)257 Images of tobacco cultivation promoters and plastic representations of the pleasant habit in the Canaries islands (19th-20th centuries) María de los Reyes Hernández Socorro (ULPGC) mariadelosreyes.hernandez@ulpgc.es Santiago de Luxán Meléndez (ULPGC) santiago.deluxan@ulpgc.es Resumo Este estudo é uma contribuição para o conhecimento da cultura do tabaco nas Canárias, durante os séculos XIX e XX. As Ilhas ficam fora do monopólio do tabaco espanhol desde 1852, e empreendem um caminho próprio. A imagem entendida de modo amplo, como projeção social, como signo de identidade, ajuda-nos a compreender este percurso. Palavras-chave: História das Canárias, economia do tabaco, representação plástica da cultura do tabaco 257 Este estudo insere-se no projeto de investigação La configuración de los espacios atlánticos ibéricos. De políticas imperiales a políticas nacionales en torno al tabaco (siglos XVII-XIX) [A configuração dos espaços atlânticos ibéricos. De políticas imperiais a políticas nacionais em torno do tabaco (séculos XVII- XIX)], HAR2015- 66142-R 128 Abstract This study is a contribution to the knowledge of tobacco culture in the Canary Islands, during the 19th and 20th centuries. The Islands have been out of the Spanish tobacco monopoly since 1852, and take their own path. The broadly understood image, as a social projection, as a sign of identity, helps us understand this travel. Keywords: Canary history, tobacco economy, plastic representation of tobacco culture Introdução Neste artigo, realizamos um exercício de contextualização baseado em investigações anteriores (principalmente Luxán 2006 e 2018), no qual traçamos as grandes linhas da introdução do cultivo e desenvolvimento da indústria do tabaco nas ilhas, colocando uma especial ênfase no Real Decreto dos Portos Francos de 1852 como ponto de partida, na mudança do modelo do monopólio de tabaco espanhol ao arrendar-se em 1887, na entrada com menos entraves no mercado peninsular dos produtos canários nos anos imediatamente posteriores à Grande Guerra, no novo Regime económico-fiscal de 1972 e, finalmente, como ponto de chegada na nova grande mudança institucional que significou a entrada na Comunidade Económica Europeia, na qual o arquipélago apostou pela plena integração. De seguida, fazemos uma pequena reflexão necessária para compreender a construção da imagem do tabaco, sobre o percurso da nicotiana tabacum, desde a sua exaltação pelas suas virtudes medicinais, até à sua má consideração (o tabaco mata), passando pela sua vasta presença como parte da cultura ocidental, entendido o seu uso como um hábito prazenteiro. A terceira parte centra-se na apresentação da imagem construída pelos artistas, que vai desde os rostos dos primeiros produtores, aos usos prazenteiros, sem nos esquecermos da diferenciação social perante o seu consumo. Por último, fazemos um pequeno apontamento sobre o que chamámos imagem industriosa do tabaco, o que nos recorda que esta linha da economia canária que começa no siglo XX foi um dos sectores mais importantes da sua atividade produtiva. O cartaz do pintor Néstor do pássaro canário a fumar um puro canário é a melhor síntese que se pode fazer desta mensagem. 129 1. O contexto histórico e institucional do tabaco nas Canárias 1636-1986 A história do tabaco nas Canárias pode ser estruturada em duas grandes etapas.258 Na primeira delas (1636–1852), o arquipélago foi uma área consumidora com certas sin- gularidades, derivadas essencialmente da sua posição geográfica, mas sujeita à regula- mentação geral do monopólio espanhol, que esteve em vigor até 1986. Entre 1636-1717, a Renda esteve arrendada a particulares —Baltasar Vergara e Grimón, primeiro marquês de Acialcazar e seus descendentes— e, posteriormente, como no resto do país, sujeita à administração direta por parte da Monarquia259. Devem destacar-se como características principais do mercado do tabaco nas ilhas durante este longo período: 1. Uma transição tardia para o “tabaco de fumo”, em primeiro lugar, que ao ORQJRGRV«FXOR;9,,,VHPDQWHU£ķ¢YROWDGRVGRFRQVXPRVHQGRSUHGRPLQDQWH então, o hábito de consumir tabaco em pó, ainda que de média e baixa qualidade. 2. A distância em relação ao território do estanco, em segundo lugar, que condicionará de modo significativo o abastecimento do produto: desde Sevilha, Cádis ou Havana. 3. A difícil estruturação do mercado regional, em terceiro lugar, que de- terminará a configuração, tanto da administração do estanco, como do próprio mercado, sujeito a preços discriminatórios por ilhas até estar o século XVIII muito avançado. 4. A posição estratégica na “Carreira das Índias”, em quarto lugar, que pos- sibilitará o abastecimento direto desde Cuba e, consequentemente, a via do comér- cio fraudulento, como se demostrará de modo palpável em inícios do século XVIII, quando se trate de estabelecer a Intendência (1717–1720).260 5. A divisão em ilhas reais e senhoriais, em quinto lugar, deixou aos senho- res uma parte importante do controlo da Renda do tabaco. 258 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA. 259 MELIÁN PACHECO, Fátima (1986), Aproximación a la renta del tabaco en Canarias 1636-1730. Tabacanarias, Santa Cruz de Tenerife. 260 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de: (2003), “La Renta de tabacos en Canarias. Del arrendamiento a la administración directa” in Anuario de Estudios Atlánticos, vol. 49, pp. 447-473. 130 6. Os problemas de falta de moeda fracionária (equivalente a uma fração da unidade monetária), por último, juntamente com a existência de um numerá- rio diferente do de Castilha — ambos os fatores destacados pelos responsáveis da administração do tabaco—, que resultarão em práticas de câmbio no consumo do tabaco e em atividades fraudulentas de difícil controlo. Na segunda etapa (1852–1986), o arquipélago canário ficou fora da economia tabaqueira nacional, ao transformar-se, não sem dificuldades, em zona produtora, tanto de folha de tabaco, como de tabaco processado261. 261 MILLARES CANTERO, Agustín (1975), Aproximación a una fenomenología de la Restauración en la Islas de Gran Canaria. Las Palmas de Gran Canaria, Boletín nº 19 do Centro de Investigación Económica y Social de la Caja Insular de Ahorros de Gran Canaria (CIES). BRITO GONZÁLEZ, Oswaldo (1979– 1980), “La industria tabaquera. La frustración de la alternativa cubana”, in Rumbos, 3–4, pp. 13–20 y 9–18 y 5–6, pp. 15–34. RODRÍGUEZ Y RODRÍGUEZ DE ACUÑA, Francisco (1981), Formación de la economía canaria. Madrid, Biblioteca del Banco Occidental. RODRÍGUEZ BRITO, Wladimiro; CABRERA ARMAS, Luis e HERNÁNDEZ HERNÁNDEZ, Jesús (1988), “Cultivos de América Tropical en Canarias”, in VVAA, Canarias y América, Madrid, pp. 191–204. 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Efetivamente, durante a sua história contemporânea, o arquipélago canário esteve “à margem” do monopólio e, consequentemente, a economia produtiva e consumidora do tabaco teve as suas regras específicas e o seu próprio desenvolvimento, muito condicionado, contudo, pelo grau de relação mantido com o mercado do monopólio. Até à integração na Comunidade Europeia, simultaneamente com o desapare- cimento do monopólio de tabacos em Espanha, o arquipélago dispôs de três marcos institucionais diferentes: 1. O Real Decreto de Portos Francos de 11/VII/1852 (revisto em 1870 e 1900), em primeiro lugar, trouxe como consequência mais relevante, para o que aqui nos ocupa, a liberalização do tabaco e, portanto, uma posição diferenciada das Canárias dentro do mercado tabaqueiro nacional. Podemos considerar que esta situação se manteve, com as reformas a que aludimos, até à Guerra Civil de 1936. 2. A Guerra significou um parêntesis que mergulhou o arquipélago, como ocorreu no resto do país, num regime autárquico (“El Mando Económico”), do qual não se sairia até 1948 e só se saiu, definitivamente, depois do Plano de Estabilização de 1959. 3. Por último, o terceiro enquadramento regulamento institucional começa em 1972, data em que se aprovou o REF (Regime Económico e Fiscal), que significou a atualização e melhoria do Decreto de Portos Francos, possibilitando que se pudessem concertar os interesses comerciais com os industriais, ainda vigente quando ocorreu a entrada na Comunidade Europeia, momento no qual se iniciou o desmantelamento do monopólio de tabacos (1986). Nestes três cenários, o ramo do tabaco teve um destino específico relativamente à economia canária na sua generalidade, uma vez que, desde o princípio, surgiu como 132 uma iniciativa especialmente dirigida ao território nacional, o seu mercado natural segundo García de Torres262. Depois do período de provas iniciado em finais do reinado de Fernando VII263, em 1852 ocorreu a liberalização e, com ela, uma aparente libertação do monopólio. Nada mais distante da realidade. As Canárias tentarão com pouco êxito, especialmente a partir da década de 1870, quando a crise da cochinilha é previsível, aproveitar as suas condições privilegiadas relativamente ao território da Renda (livre cultivo e livre processamento) para negociar com a administração central — a sua interlocutora inicial era a Direção Geral de Rendas do Estanco — a colocação no mercado nacional, primeiro da folha apanhada e, de seguida, dos seus tabacos processados. Por um lado, o enquadramento institucional (Portos Francos), que não contemplava a entrada do tabaco, e tão pouco do açúcar, como produtos nacionais na Península e nas Baleares, e por outro lado, sobretudo na última década do século XIX, a nova alternativa, muito mais favorecida pelo capitalismo internacional (leia- se britânico), da trilogia canária (bananas, tomates e batatas), tornarão inviável esta solução. A experiência agrícola tinha aberto as portas, todavia, à atividade industrial. Como consequência mais imediata irão se estabelecendo uma série de pequenas fábricas — será melhor dizer fabricantes—, que começarão a fazer as suas misturas com matéria-prima local, mas muito rapidamente, aproveitando os fluxos mercantis e o próprio enquadramento dos Portos Francos, trabalharão com produtos importados, como ocorre, por outro lado, no resto do país, nos estabelecimentos do estanco. O certo é que o desenvolvimento desta atividade industrial esteve desde o início condicionada pelas relações com a área do monopólio, que oscilou, depois dos ensaios de 1875–1879, entre as compras regulares de produtos canários a partir de 1885 —momento em que se constitui o “Grémio de fabricantes de tabaco processado com folha da Província de Canárias” (22/06/1885), – a redução drástica das mesmas entre 1906–1922 – e a etapa dos novos contratos que iria até ao começo da Guerra Civil espanhola. 262 GARCÍA DE TORRES, Juan (1879), Los tabacos de Canarias y otras nebulosidades en la Historia de la Hacienda Pública en España. Santa Cruz de Tenerife, Imp. de Vicente Bonnet. 263 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2018), “Cultivo, abastecimiento y estanco del tabaco en España en el tránsito del Antiguo Régimen al Estado Liberal”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (dir.); FIGUEIRÔA-RÊGO, João (dir.), El tabaco y la esclavitud en la rearticulación imperial ibérica (s. xv-xx). Nouvelle édition [en ligne]. Évora: Publicações do Cidehus, 2018 (généré le 14 février 2019). Disponível em: . DOI: 10.4000/books.cidehus.5987. 133 Como referimos, desde o monopólio, a posição face a esta nova opção industrial, que surgia na sua periferia, oscilou entre uma atitude negativa, contrária ao desenvolvimento da mesma e uma postura mais complacente, motivada pelas decisões dos governos vigentes e a capacidade de negociação dos tabaqueiros canários. Não devemos esquecer, por exemplo, que o contrato entre o governo e a Arrendatária (Lei de Bases do Monopólio de Tabacos de 22/06/1887), obrigava esta a admitir e vender em comissão os tabacos processados nas províncias e possessões do Ultramar e Canárias264. Ao contratista exigia-se que adquirisse, anualmente, pelo menos 6 milhões de kg. de tabaco em folha das Filipinas, 3 milhões de Cuba, 1,5 de Porto Rico e 0,4 de Canárias. A indústria canária alcançará um certo desenvolvimento e uma presença importante no tráfico fraudulento. Depois da Grande Guerra, deve ter representado uma ameaça para a Companhia Arrendatária de Tabacos, sociedade que, com a intervenção do Estado, se tinha encarregado da Renda a partir de 1887. Por outro lado, tentou-se utilizar os produtores canários para contrariar outros interesses, como os que representava Juan March265, já que, em 1921–1922, decidiria assinar um contrato com os fabricantes insulares para os deixar entrar na área do monopólio. Primeiro parcialmente, pois o seu propósito era que as vendas se reduzissem às praças espanholas do Norte de África, e depois, de modo geral, ao conduzir os seus produtos para o território peninsular. Face ao que sustentou a historiografia canária — que, sobre este tema, nos deu uma imagem excessivamente vitimizadora —, os anos da Ditadura de Primo de Rivera e a Segunda República significaram a primeira expansão e a autêntica criação da indústria tabaqueira canária, para a qual foi sempre óbvio que o seu mercado fundamental era o nacional. Posteriormente à Guerra Civil, a indústria atingirá um enorme desenvolvimento, consolidando-se como uma especialização regional das Canárias, dentro da economia nacional, que se manteve até à atualidade. 264 COMÍN COMÍN, Francisco. Y MARTÍN ACEÑA, Pablo (1999), Tabacalera y el estanco del tabaco en España 1636–1998, Madrid, Fundación Tabacalera, p. 102. 265 GARCÍA CABRERA, Mercedes (2011), Juan March 1880-1962, Madrid, Marcial Pons Historia. 134 2. Do “hábito prazenteiro” e a boa imagem do tabaco até à sua condenação social Desde a introdução do chamado “hábito prazenteiro”, pelo historiador do tabaco Rodríguez Gordillo, os diversos governos de todos os países com monopólios fiscais, ou no seu caso as empresas, realizaram políticas ativas para incrementar o consumo do tabaco aumentando deste modo a sua dependência dos impostos da venda deste produto. Não seria descabido, inclusivamente, sustentar que a grande proliferação de estudos sobre as virtudes medicinais da planta que acompanharam a extensão do seu consumo no Velho Mundo foram, em parte, propiciadas pelos poderes públicos. Os historiadores da cultura e da economia consideraram que é na época da 2ª Revolução Industrial (1870-1930) que o surgimento do cigarro abriu a porta ao consumo massivo. As empresas implementaram então políticas de comunicação e marketing que tiveram como objetivo maximizar os benefícios ou, o que é o mesmo, aumentar as quotas de mercado dos produtores. Terá que esperar-se pelos últimos anos do século XX para que, a partir do Estado, se inicie uma política conducente à redução do seu consumo: o tabaco mata. O “hábito prazenteiro” do tabaco e o seu uso social sem condenações morais pode dizer-se que se prolonga até aos anos finais do século XX. Ou seja, que os consumidores, não obstante as referências históricas que possamos encontrar em anos anteriores sobre as consequências negativas para a saúde, não foram conscientes do perigo que representava o seu consumo266. A partir destas datas considera-se um problema social267. No estudo do consumo, uma fonte pouco explorada até agora foi a representação plástica dos artistas268, perspetiva que nos propomos abordar. 266 Para um ponto de vista histórico sobre estas questões GÁLVEZ, Lina (2006), “Adición, regulación y publicidad de marcas. El consumo de tabaco en España en el primer tercio del siglo XX”, ALONSO ÁLVAREZ, Luis (2006), “Pautas de Consumo y cambio tecnológico. La evidencia del tabaco en España 1735-1886”, in Luis ALONSO ÁL- VAREZ, Lina GÁLVEZ MUÑOZ e Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ (ed.), Tabaco e Historia Económica. Estudios sobre fiscalidad, consumo y empresa, Madrid, Fundación Altadis-Ediciones El Umbral, pp. 367-388 y 246-270. 267 Uma linha frutífera do ramo da economia da saúde está a ser o estudo dos efeitos sociais e económicos do consumo do tabaco. Veja-se, por exemplo, PINILLA DOMÍNGUEZ, Jaime (2001), “Demanda de consumos nocivos para la salud: caso particular del consumo de tabaco en Canarias”, in Vector Plus, pp. 12-18. 268 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes; LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2018), Las imágenes como fuente histórica para el estudio del consumo del tabaco: La pintura flamenca y holandesa del siglo XVII In: El tabaco y la esclavitud en la rearticulación imperial ibérica (s. xv-xx) [en ligne]. Évora: Publicações do Cidehus, (généré le 20 septembre 2019). Disponível em: . I DOI: 10.4000/books.cidehus.6042. 135 3. Aproximação a uma tipologia das representações plásticas do tabaco nas Canárias Nesta secção vamos referir-nos, por um lado, aos promotores da introdução do seu cultivo e elaboração nas Canárias e, por outro, a consumo prazenteiro, através de uma série de artistas representativos da história da pintura nas ilhas. 3.1. Os promotores: políticos prestigiados, aristocratas, terratenentes e estudiosos do tabaco Podemos considerar homens do tabaco os promotores, políticos prestigiados, aristocratas terratenentes e estudiosos, uma vez que promoveram o cultivo, plantaram- no nas suas quintas, ou estudaram a sua produção e a sua história. Vamos referir- nos a diversos personagens, sem pretensão de ser exaustivos, dos quais encontrámos imagens. É o caso do general Francisco Morales y Afonso (1783-1845), retratado pelo pintor cubano Vicente Escobar y Flores (1762-1834) em 1824269, que foi o último capitão geral da Venezuela antes da independência e comandante geral das Canárias entre 1827 e 1834. O pintor pôde fazer-lhe o retrato antes de embarcar para o seu novo destino quando passou por Havana [Figura 30]: 269 Câmara Municipal de Santa Cruz de Tenerife. Foi cedido à câmara pela sua viúva Josefa Bermúdez: óleo sobre tela de 110 x 80 cm., assinado e datado em Habana no 4 de Março de 1824 por Vicente Escobar. COLA BENÍTEZ, Luis, “Los otros retratos del Consistorio (Retales de la Historia - 137)”, La Opinión 1/12/2013. http://amigos25julio.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1383:los-otros-retratos- del-consistorio-retales-de-la-historia-137&catid=20:artculos-propios-sobre-otros- temas&Itemid=99. [Consultado em 24/09/2019]. HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (2014): “Contribución al estudio de la prosopografía del estanco imperial español: galería de retratos de los gobernadores-capitanes generales de la isla de Cuba”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, Política y Hacienda del Tabaco en los Imperios Ibéricos (Siglos XVII-XIX), Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, pp. 378-415. 136 Fig. 30 – General Francisco Morales y Afonso (Carrizal 1783 - Las Palmas 1845), por Vicente Escobar Flores, 1824, Câmara Municipal de Santa Cruz de Tenerife. Óleo sobre tela, 110 x 80 cm., assinado e datado em Havana, a 4 de março de 1824. Trata-se de um óleo de meio corpo, em tamanho natural. Ao seu lado vemos um soldado mulato, que entrega militarmente ao general Morales uma carta, porque este retrato foi feito durante a estadia deste chefe em Cuba.270 Na carta pode ler-se “Ao General Don Francisco Tomás Morales”. Aprecia-se igualmente a assinatura do pintor antilhano na margem inferior esquerda (“Vicente Escobar fecit, Havana 4 de março de 1824”). 270 MORALES PADRÓN, Francisco (1977), “Francisco Tomás Morales “, in Historia General de las Islas Canarias, Las Palmas de Gran Canaria, Edirca, t.IV, p. 304. FRAGA GONZÁLEZ, Carmen (1992), Arte hispanoamericano en Canarias (Exposición), Comisión del V Centenario del descubrimiento de América, Diócesis de Tenerife, Instituto de Estudios hispanoamericanos de Canarias, Ayuntamiento del Puerto de la Cruz. TARQUIS RODRÍGUEZ, Pedro (2001), Desarrollo del Museo Municipal de Bellas Artes de Santa Cruz de Tenerife, edição, introdução e notas de GONZALEZ REIMERS, Ana Luisa, Santa Cruz de Tenerife, pp. 283-287. ABAD RIPOLL, Francisco, Don Francisco Tomás Morales y Afonso, Comandante General de Canarias (1827-1834), Conferência (Pronunciada a 12 de Novembro de 2014 na Sala de Conferências do Centro de Historia y Cultura Militar de Canarias, Almeyda, Santa Cruz de Tenerife).) http://amigos25julio.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1551:don-francisco- tomas- morales-y-afonso-comandante-general-de-canarias-1827-1834&catid=65:conferencias&Item id=105. [Consultada em 22/09/2019]. 137 Podemos considerar de seguida o terratenente e aristocrata natural de Tenerife Luis de León-Huerta y González-Grillo, VII Marquês de Villafuerte (1797-1862) [Figura 31]271, que acolheu, como o general Morales, a Real Ordem de 26/1/1829, permitindo- lhe, como àquele, o cultivo de 40.000 pés. O seu retrato foi realizado em Madrid por Luis de la Cruz y Ríos, pintor de corte de Fernando VII. Fig. 31 – Luis de León-Huerta y González-Grillo, VII Marquês de Villafuerte, por Luis de la Cruz y Ríos. Óleo sobre tela. Coleção López de Ayala, de Garachico (Tenerife). 271 Don Luis de León-Huerta foi Governador Real de Icod em 1829 y 1835, Deputado provincial em 1841, Presidente da Câmara de Garachico em 1848 e Presidente de la Assembleia provincial das Ilhas Canárias e Governador Civil interino das mesmas em 1854. http://www.racba.es/index.php/listado-alfabetico/368- de-leon-huerta-y- gonzalez-grillo-luis-viii-marques-de-villafuerte [Consultado 30/05/2019]. 138 Ao referir-se a esta tela escreveu Rumeu de Armas: Veste fraque abotoado, com calças e meias brancas, sapatos pretos e como complemento, a cartola, com umas luvas sobre a mesa. A tela completa-se com uma janela envidraçada, com viva luz e paisagem em transparência, prateleiras com livros, cortinas e cadeira estilo Carlos IV forrada de vermelho272. Outro personagem de interesse é o proprietário Manuel de Lugo que foi retratado pela sua filha Pilar de Lugo Eduardo (1820-1851), discípula — falecida precocemente na epidemia de cólera-morbus de 1851— do pintor de Gran Canária, Manuel de León y Falcón [Figura 32]273. Fig. 32 – Manuel de Lugo y Herrera Leyva, pela sua filha Pilar de Lugo Eduardo (assinado e datado em 1844). Propriedade particular, Las Palmas de Gran Canaria. 272 RUMEU DE ARMAS, Antonio (1997), Luis de la Cruz y Ríos, Gobierno de Canarias, Litografía Romero, pp. 130-132. CONTRERAS, Juan, marqués de Lozoya (1945), “Luis de la Cruz y Ríos, pintor de Cámara de Fernando VII”, in El Museo Canario no 16 p. 11, considera este retrato de feitura inglesa. O seu retrato encontra-se na Coleção López de Ayala, de Garachico (Tenerife). 273 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (1990), “La mujer y las bellas artes en Las Palmas a mediados del siglo XIX: Pilar de Lugo Eduardo, una pintora romántica malograda”, in IX Coloquio de historia canario - americano, t. II, pp. 1414-1442. 139 Este proprietário recebeu sementes de Cuba, em 1850, para semear tabaco e continuar, assim, os ensaios de cultivos anteriores. Manuel de Lugo tinha feito plantações — segundo um relatório da Junta de Agricultura de Las Palmas— na quinta de Agazal e nos Cercados de Montemayor (jurisdição de Gáldar), perto de Guía e no Molino de Viento e em Huesas, dentro do município de Las Palmas. As circunstâncias da Cólera-morbus impediram que este último ensaio, imediatamente anterior à declaração de Portos Francos, tivesse o êxito esperado. Deste modo, o anteriormente citado Manuel de Lugo, escrevia à Junta dando conta da interrupção do processo: O seu cultivo, se bem que o principiei com esmero, não o pude continuar do mesmo modo porque os acontecimentos desgraçados que a cólera-morbus me trouxe, não mo permitiram, mas no final reuni algumas plantas de que estou a beneficiar e, a seu tempo, colocarei à disposição de V. Sª. Também acabei de cortar outras poucas plantas de um tabaco que não é da Vuelta de Abajo, e cuja semente colhi aqui do que nasce espontaneamente, e que também quando chegar a ocasião entregarei a V. Sª274. Mas, sem dúvida que, o político mais influente foi Francisco María de León y Falcón, comissário régio de Canárias, que esteve à frente da Junta de Agricultura de Las Palmas e foi um dos personagens chave no fomento do cultivo do tabaco nas ilhas. O seu retrato, cerca de 1845, foi pintado pelo seu irmão, Manuel Ponce de León y Falcón275, o pintor de Gran Canária mais relevante do século XIX [Figura 33]276. 274 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de: (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, pp.29-35. 275 Propriedade da Fundación Caja de Canarias. 276 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (1996), Manuel Ponce de León y Falcón, pintor grancanario del siglo XIX, Las Palmas de Gran Canaria, Real Sociedad Económica de Amigos del País. Arte en Canarias [siglos XV-XIX]. Una mirada retrospectiva. Tomo I y Tomo II. Expo, La Regenta, LPGC Junho a Julho de 2001. María de los Reyes Hernández Socorro (Comissária). Governo de Canarias. 140 Fig. 33 – Francisco María de León y Falcón por Manuel Ponce de León, ca.1845. Óleo sobre tela, 89 x 68,5 cm. Fundación La Caja de Canarias, Las Palmas de Gran Canaria. Contemporâneo do político de Gran Canária foi Pedro Mariano Ramírez Alenza (1799- 1886), defensor do livre cultivo nas ilhas e grande polemista em torno da questão dos Portos Francos de 1852, que significaram a saída do monopólio espanhol do arquipélago canário. Dele, só encontrámos a imagem que reproduz Marcos Guimerá Peraza no seu estudo clássico sobre o litígio insular [Figura 34]277. 277 GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1987), El Pleito Insular1808-1936, Madrid, Instituto de Estudios de Administración Local. 141 Nesta discussão entrou também Juan Antonio Cologán y Franchi, VIII Marquês do Sauzal278, o qual defendeu que para que os ensaios de cultivo tivessem sucesso deveriam ser realizados na mais completa liberdade, o que se alcançou com o decreto de Portos Francos [Figura 35]279. 278 GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1992), “Los Cólogan, alcaldes del Puerto de la Cruz de la Orotava (siglos XVIII Y XIX)”, in Anuario de Estudios Atlánticos, pp. 229-236. Especialmente a estampa VIII. https://dbe. rah.es/biografias/91805/juan-antonio-cologan-de-franchi-y-ponte [Consultado em 30/05/2019]. 279 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, p. 25. Fig. 34 – Pedro Mariano Ramírez Alenza, retirado do livro de GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1987), El Pleito Insular1808-1936, Madrid, Instituto de Estudios de Administración Local. Fig. 35 – Juan Antonio Cologán y Franchi VIII, Marqués del Sauzal, Retirado de GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1992): “Los Cólogan, alcaldes del Puerto de la Cruz de la Orotava (siglos XVIII Y XIX)”, in Anuario de Estudios Atlánticos, lâmina VIII. 142 A figura de Domingo J. Navarro (1875)280 deve associar-se às de Juan Bautista Melo (1873) e ao marquês de Guisla Guiselín (1877), já que os três propuseram que a atividade tabaqueira nas ilhas só poderia ser realizada mediante a criação de sociedades. O médico de Gran Canária também seria retratado pelo citado pintor Ponce de León281 [Figura 36]. Foi autor de umas memórias de grande interesse para o conhecimento da sociedade de Gran Canária da sua época282. Desconhecemos quem foi o autor do retrato de Víctor Pérez González (1827- 1892) [Figuras 37, 38 e 39]283. 280 Memoria sobre los nuevos colores extraídos de la hulla. Lida na Ilustre Sociedade Económica de Amigos do País de Las Palmas, pelo Censor da misma Exmo. Sr. Dr. D. ...Gran Canaria, Imprenta La Verdad, pp. 20–23. Lida na Ilustre Sociedad Económica de Amigos del País de Las Palmas, pelo Censor da mesma, Exmo. Sr. D. ... Gran Canária, Imprenta La Verdad, pp. 20-23. 281 Em 1862 apresentou um retrato do médico na Exposição Provincial de 1862 (Memoria...p. 125). 282 DOMINGO J. NAVARRO (1991), Recuerdos de un noventón, Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo Insular de Gran Canaria. 283 HERNÁNDEZ PÉREZ, Manuel (1992), “Cien años de la muerte del Dr. Víctor Pérez (1827-1892)” in El Día. GONZÁLEZ LEMUS, Nicolás (1995), Las islas de la ilusión. (Británicos en Tenerife. 1850-1900), Las Palmas de Gran Canaria, Ediciones del Cabildo Insular de Gran Canaria, pp. 63 e 369; GONZÁLEZ LEMUS, Nicolás (1998), Viajeros victorianos en Canarias, Las Palmas de Gran Canaria, Ediciones del Cabildo Insular de Gran Canaria, p. 117. GARCÍA NIETO, V, (1896): “La medicina en Tenerife en el último tercio del siglo XIX”, in Revista Médica de Canarias (Facsímil), Santa Cruz de Tenerife, Fundación Canaria Salud y Sanidad, 2001, pp. 48-50. Disponível em: http://dbe.rah.es/biografias/70346/victor-perez-gonzalez. PÉREZ GARCÍA, Jaime (1985), Fastos biográficos de La Palma. Tenerife, Tomo I, pp. 138-139. HERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Manuel, “Víctor Pérez Un médico palmero que impulsó la botánica canaria”. Disponível em: http://www.rinconesdelatlantico.com/num2/victor_perez.html. [Consultado em 24/09/2019]. Fig. 36 – Domingo J Navarro. Óleo de Manuel Ponce de León (ca. 1858-1860). El Museo Canario (Las Palmas de Gran Canaria). 143 Fig. 37 – Victor Pérez González (Santa Cruz de La Palma 1827- Puerto de La Cruz 1892). http://www. palmerosenelmundo.com/index.php/historia/personajes-destacados-de-la-palma. Fig. 38 – Página extraída da Memoria Histórica y oficial de la Exposición provincial de Canarias de Agricultura, Industria y Artes celebrada en las Casas Consistoriales de la ciudad de Las Palmas de Gran Canaria en 1862, Gran Canaria, Imprenta de Tomás B. Matos, 1864. Fig. 39 – Capa da Memoria. 144 Este médico, que exerceu no Puerto de la Cruz (Tenerife), mandou uma Memória sobre o cultivo do tabaco nas Ilhas Canárias284 à Exposição Provincial (embora tenha chegado fora do concurso), celebrada na Câmara Municipal de Las Palmas de Gran Canária em 1862: A classe onde houve mais empenho de exposição – podemos ler na Memoria- foi na do tabaco, em cujo cultivo estima a Província uma nova fonte de riqueza para o futuro. Todas as ilhas, exceto Gomera e Hierro, concorreram com afã e entusiasmo; e os vários e multiplicados objetos apresentados, provam até à evidência que o plantio e laboração do tabaco é um empreendimento levado a cabo com ardor, com constância e inteligência pelos primeiros proprietários e lavradores destas ilhas, com cujos elementos os resultados definitivos, e mais ou menos próximos, não deixarão de ser favoráveis ao fim proposto285. Juan de León y Castillo (1834-1912)286, engenheiro ligado à construção do Porto de La Luz de Las Palmas, esteve muito relacionado, tanto com o renascimento do cultivo da cana e da produção de açúcar, como com a laboração do tabaco. O engenheiro León y Castillo, para além de ser agricultor e dono de uma fábrica de tabacos, deixou escrito, em 1870, um Guia do cultivo do tabaco, saído das oficinas da Imprensa La Verdad (Las Palmas de Gran Canaria). Dos seus numerosos retratos e fotografias apresentamos, neste estudo, dois retratos do pincel de Santiago Tejera Quesada, que se encontram no Museu Canário da capital de Gran Canária [Figuras 40 e 41]287. 284 Memoria sobre el cultivo del tabaco en las Islas Canarias, por el Dr. — apresentada na Exposição de Las Palmas de Gran Canária no mês de Maio de 1862. Santa Cruz de Tenerife, Imprenta y Litografia de J. N. Romero, p. 41. 285 Memoria Histórica y oficial de la Exposición provincial de Canarias de Agricultura, Industria y Artes celebrada en las Casas Consistoriales de la ciudad de Las Palmas de Gran Canaria en 1862, Gran Canaria, Imprenta de Tomás B. Matos, 1864, p. 35. Nessa exposição apresentou duas obras Benito Pérez Galdós sob o título La Magdalena (nº 223 de la Memoria) e Boceto sobre un asunto de la historia de Gran Canaria (nº 224) que mereceram uma menção honrosa (p. 122). 286 MARTÍN CASTILLO, Juan Francisco (1995), “Juan de León y Castillo (1834-1912): ingeniero y político. Apuntes para una biografía”, in Anuario de Estudios Atlánticos, pp. 369-382. 287 GAVIÑO DE FRANCHY, Carlos (2014), Apuntes para una biografía del pintor Santiago Tejera de Quesada [1880-1916]. Disponível em: http://lopedeclavijo.blogspot.com/2014/06/santiago-tejera- quesada_2.html [Consultado em 21/09/2019]. 145 Figs. 40 e 41 – Esquerda: Juan de León y Castillo por Santiago Tejera Quesada, Museo Canario (Las Palmas de Gran Canaria). Direita: Juan de León y Castillo por Santiago Tejera Quesada, Museo Canario (Las Palmas de Gran Canaria). 2FXOWLYRGRWDEDFRVHU£ķEHQ«ˋFRSDUDWRGRVRVVHFWRUHVGDHFRQRPLD'DU£YLGD à agricultura de subsistência — devendo ser alternado com leguminosas e milho — e à criação de gado, escreve no guia citado. O seu rival não era, portanto, o subsector produtor de alimentos, mas sim a cochinilha. O tabaco, prossegue León y Castillo, tem a vantagem, para além disso, de necessitar de menos capital e força de trabalho. Na análise dos custos que se adianta, tendo em conta a experiência cubana e os ensaios canários, incide-se mais sobre o abonado (71%), do que sobre o fator trabalho (29%). O preço barato deste último é uma das vantagens comparativas das ilhas. Mas o SULQFLSDOLQWHUHVVHGHVWDSODQWDYLU£GRODGRGDLQG¼VWULDHGRFRP«UFLRRFXOWLYRWHU£ķ como principal consequência o desenvolvimento de “uma indústria muito lucrativa”. Mas, para além disso, equilibrará a balança comercial e aumentará o tráfico portuário, devido às vantagens comparativas que temos no custo dos fretes relativamente a Cuba, principal concorrente no mercado nacional. O seu irmão, Fernando de León y Castillo (1842-1918), que teve uma longa trajetória como político e juntou à volta da sua pessoa o partido liberal nas Canárias, pode ser incluído nesta lista de promotores deste ramo da economia local. Entre 1877/1878 e 1878/1879 colocaram-se no mercado peninsular 1.000.000 de cigarros, 146 resultado da pressão da “Liga de Agricultores e Fabricantes de tabaco”, formalizada, como tal, em Novembro de 1877, que contou com o apoio deste político. Entre a numerosa iconografia de León y Castillo, escolhemos o retrato que se conserva na Casa Museu León y Castillo de Telde, da autoria do pintor catalão Mateo Balasch Mateu (1870-1936) [Figura 42]. Fig. 42 - Fernando de León y Castillo por Mateo Balasch Mateu, Casa Museo León y Castillo de Telde (Gran Canaria). Nesta apresentação dos rostos dos homens do tabaco interessa-nos assinalar Alfonso Gourié Álvarez (1810-1890)288 que, como outros personagens desta história, acreditaram que a modernização do arquipélago canário viria através do investimento na cana de açúcar e no tabaco, que tinham a vantagem de poder pôr a funcionar uma 288 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2009), “La imagen de los hombres del azúcar en Canarias”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de y VIÑA BRITO, Ana (dirs.), La empresa azucarera en Canarias. Siglos XV-XX, Sevilla, Destilerías Arehucas (Gran Canaria) -Ayuntamiento de Los Llanos de Aridane (Isla de La Palma), pp. 308-310. 147 potente indústria fabril e que permitiriam aos canários enfrentar a crise da cochinilha. Gourié apostou, para além disso, na criação de uma sociedade “O Futuro Agrícola de Canárias 1873–1878”, experiência frustrada – como assinalámos noutro estudo289 — pela falta de realizações no mercado do monopólio espanhol. O historiador de Gran Canária, Agustín Millares Torres, que participou neste projeto, resumiu-o desta maneira: Seduziam então os insulares os ensaios frequentes que para a aclimatação do tabaco se empreendiam isoladamente ou por meio de ações. Geralmente acreditava-se que a cobiçada planta encontraria no Arquipélago um terreno e um clima igual ao de Cuba, que constituiria uma fonte de riqueza mais lucrativa do que a da cochinilha. Para apoiar com mais eficácia este cultivo especial, fundou-se em Las Palmas uma sociedade por ações dedicada exclusivamente a fomentar esta indústria, organizando uma fábrica e solicitando ao governo a compra daquele produto para o consumo nacional. A sociedade estabeleceu-se com grande luxo de empregados e escritórios, detalhes de marcas e contramarcas e promessas de grandes benefícios para os acionistas. Depois de muitas dificuldades e dilações, compraram-se (1875) algumas partidas de tabaco elaborado e em folha, que, levadas a Madrid, foram desfavoravelmente classificadas, porque no seu desejo de agradar aos sócios vendedores, o diretor da fábrica não se atreveu a recusar os fardos inutilizáveis. Com esta triste deceção e com o GHSORU£YHOUHVXOWDGRGDVRSHUD©·HVˋQDQFHLUDVGLVVROYHXVHDDVVRFLD©¥R não obtendo os indivíduos que a compunham outro benefício para além de alguns maus lotes de uma indústria desacreditada290. Deste empresário realizou um austero retrato, o já citado Santiago Tejera Quesada291 [Figura 43]. 289 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, pp. 176-186. 290 MILLARES TORRES, Agustín (1893–1895, 1977), Historia General de las Islas Canarias, Las Palmas de Gran Canaria, Edirca, T. V, pp.75-76. 291 HERNÁNDEZ PADRÓN, Alicia (2008), “La rehabilitación de las Casas Consistoriales: un proyecto de puesta en valor como edificio institucional”, in Programa de la fiesta de San Juan. Excmo. Ayuntamiento de Arucas y Construcciones CLR, Arucas p. 18. Foi doado pelo artista em Fevereiro de 1905 à Câmara Municipal para se expor na chamada “sala de atos públicos”. 148 Fig. 43 - Alfonso Gourié Álvarez por Santiago Tejera Quesada, óleo realizado em grisaille (1905) (Casas Consistoriales de Arucas). De outro dos grandes publicistas do tabaco, o senador e deputado do partido conservador Felipe Pérez del Toro, que foi catedrático da Escola Central de Comércio em Madrid, apenas encontrámos a fotografia que reproduz a Enciclopédia Espasa e a sua assinatura [Figuras 44 e 45]292. Fig. 44 - Felipe Pérez del Toro. Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, Barcelona, José Espasa, cop. 1924, t. 43, p. 698. 292 Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana. %DUFHORQD -RV«ķ (VSDVD FRS  W  S  Publicou em 1881 El tabaco canario y las pesquerías en África. Madrid, Imprenta y Litografía de La Guirnalda. Para além disso escreveu um Compendio de Historia general del desarrollo del Comercio y de la Industria (1898). 149 Fig. 45 – Capa do livro de Felipe Pérez del Toro, El tabaco canario y las pesquerías de África. Devemos mencionar também o senador vitalício293 pelas Canárias, Juan García de Torres [Figura 46] que foi diretor geral de impostos do rendas estancadas e autor, em 1879, de um ensaio intitulado Os tabacos de Canárias e outras nebulosidades da história da Fazenda Pública em Espanha, publicado em Santa Cruz de Tenerife pela Imprensa de Vicente Bonnet, do qual não conseguimos encontrar uma imagem. Fig. 46 – Folha de rosto do livro de Juan García de Torres, El tabaco. Consideraciones sobre el pasado, presente y futuro de esta Renta, Madrid 1875. 293 Para o seu trabalho como senador http://www.senado.es/web/conocersenado/senadohistoria/ senado18341923/senadores/fichasenador/index. html?lang=es_ES&id1=1178 [Consultado em 21/09/2019]. 150 Antonio López Botas, advogado que foi presidente da câmara da cidade de Las Palmas entre 1861-1868 [Figuras 47 y 48]294, solicitou ao governo da nação em 1887 que se implantassem nas Canárias feitorias e sucursais das fábricas nacionais para a aquisição e venda do tabaco canário, o que traria grandes vantagens aos interesses do tesouro e redundaria num maior benefício do consumo de tabaco canário, muito superior e mais barato do que a maior parte do que consomem as fábricas nacionais. Foi seu retratista o pintor grã-canário Tomás Gómez Bosch295. Figs. 47 e 48 – Esquerda: Antonio López Botas, retirado de Marcos Guimerá Peraza, “Antonio López Botas 1808-1888”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 35. Direita: Antonio López Botas por Tomás Gómez Bosch, retirado do livro de BORDES BENÍTEZ, Rosa María (1989), El pintor Tomás Gómez Bosch, Las Palmas de Gran Canaria, Fundación Mapfre Guanarteme. Por último, vamos referir-nos ao grande investigador e pioneiro dos estudos GHWDEDFRHP(VSDQKDQDWXUDOGH/DV3DOPDV-RV«ķ3«UH]9LGDO 1986-1922)296, autor 294 GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1989), “Antonio López Botas 1808-1888”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 35, pp. 291-362. 295 BORDES BENÍTEZ, Rosa María (1989), El pintor Tomás Gómez Bosch, Las Palmas de Gran Canaria, Fundación Mapfre Guanarteme. ALEMÁN GÓMEZ, Ángeles; ALLEN Jonathan; BALSALOBRE GARCÍA, Juana María; BETANCOR QUINTANA, Gabriel; HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y MONTESDEOCA GARCÍA-SÁENZ, Daniel (2008), Tomás Gómez Bosch. Pintor y fotógrafo, Las Palmas de Gran Canaria, Ediciones del Cabildo de Gran Canaria. 296 «Los cigarros canarios y los transportes marinos». Mundo tabaquero: revista profesional y técnica de las rentas y de agricultura / Habla Canarias, año 2, no 10 (Março 1953), pp. 13-14. «Hace un siglo». 151 fundamental, juntamente com o mencionado Juan García de Torres. Pérez Vidal trouxe à bibliografia do tabaco uma História do cultivo do tabaco em Espanha (1956) e Espanha na história do tabaco (1959). Dispomos de uma fotografia do autor, da Biblioteca Pérez Vidal de Santa Cruz de La Palma [Figura 49]. Mundo tabaquero: revista profesional y técnica de las rentas y de agricultura / Habla Canarias, año 2, no 14 (Julho-agosto de 1953), pp. 13-14. Catálogo de la colección de tabaqueras y de utensilios de fumador. Madrid: Museo del Pueblo Español, Dirección General de Bellas Artes [1956]. 33 p., [1] h.; [16] p. de lám. (Trabalhos e materiais do Museo del Pueblo Español). Reed.: España en la historia del tabaco (1959), pp. 135-179. Historia del cultivo del tabaco en España. Prólogo de Horacio Torres de la Serna. Madrid: Servicio Nacional de Cultivo y Fermentación del Tabaco, 1956. 157 p., [2] h. pleg. de map. y gráf. Reed.: Habano: revista tabacalera, v. 25, n. 2 (Fevereiro de 1959), pp. 8-10 y 29-32; v. 25, n. 3 (Março de 1959), pp. 20-26; v. 25, n. 5 (Maio de 1959), pp. 20-22 y 30-31; v. 25, n. 6 (Junho de 1959), pp. 20-23; v. 25, n. 8 (Agosto de 1959), pp. 20-24; v. 25, n. 9 (Setembro de 1959), pp. 20-23 y 27; v. 25, n. 10 (Outubro de 1959), pp. 20- 22. Rec.: JIMÉNEZ SÁNCHEZ, Sebastián (1956), Falange / Plumas de las islas (Las Palmas de Gran Canaria, 29 de Dezembro), pp. 4 y 6. MANRIQUE, Gervasio (1957), Revista de dialectología y tradiciones populares, t. 13, cuaderno 1-2, pp. 219-220. RODRÍGUEZ [PÉREZ], Violeta Alicia (1958), Revista de historia canaria, año 31, t. 24, n. 123-124 (Julho-Dezembro), pp. 376-378. Veja-se, para além disso: España en la historia del tabaco (1959), pp. 183-203. “Historia del cultivo del tabaco en España: resumen”, in Boletín de la Real Sociedad Geográfica, t. 92, no 1-12 (1956), pp. 228-233. Reed.: “Historia del cultivo del tabaco en España”, in Universal tabacos, año 2, no 9 (enero- febrero 1956), pp. 9-11. Separata: Historia del cultivo del tabaco en España: (resumen). [S. l.: s. n.], 1956 (Madrid: S. Aguirre Torre, impresor). 7 p. (Publicaciones de la Real Sociedad Geográfica. Serie B; 371). Texto de uma conferência pronunciada na Real Sociedad Geográfica a 12 de Dezembro de 1955. Veja- se, para além disso: España en la historia del tabaco (1959), pp. 183-203; e na epígrafe Conferencias: Historia del cultivo del tabaco en España. “La minúscula historia del cigarrillo”, in Habano: revista tabacalera, v. 26, nº 1 (Janeiro de 1959), pp. 8 y 24. Na nota de rodapé: «A documentação probatória das afirmações deste artigo e uma mais ampla informação, poderão ser vistas no livro España en la historia del tabaco, que surgirá brevemente». «El régimen laboral de la industria tabaquera española durante el siglo XVIII», in Anales de la Asociación Española para el Progreso de las Ciencias, año 24, n. 3 (1959), pp. 635-639. Resumen: XXIV Congreso luso-español para el progreso de las ciencias: 14-20 de noviembre de 1958. Madrid: Asociación Española para el Progreso de las Ciencias, D. L. 1958, pp. 119-120. Veja-se, para além disso: España en la historia del tabaco (1959), pp. 249- 253. España en la historia del tabaco. 1a ed. Madrid: Centro de Estudios de Etnología Peninsular, 1959. XVIII, 392 p. (Biblioteca de dialectología y tradiciones populares; 11). Reed.: Actualidad tabaquera: revista mensual del mundo del tabaco, no 9 (enero de 1965), p. 11; n. 11 (Março de 1965), p. 13; n. 27 (Julho de 1966), pp. 10-15; n. 29 (Setembro de 1966), pp. 21-23; n. 33 (Janeiro de 1967), pp. 15-21; n. 34 (Fevereiro de 1967), pp. 18-20; n. 35 (Março de 1967), pp. 21-24; n. 36 (Abril de 1967), pp. 23-24; n. 37 (Maio de 1967), pp. 25-27; n. 38 (Junho de 1967), pp. 21-23; n. 39 (Julho de 1967), pp. 19-21; n. 40 (Agosto de 1967), pp. 19-21; n. 41 (Setembro de 1967), pp. 21-24; n. 42 (Outubro de 1967), pp. 18-21; n. 43 (Novembro de 1967), pp. 19-[21]; n. 51 (Julho de 1968), pp. 27-31; n. 52 (Agosto de 1968), pp. 31-35; n. 53 (Setembro de 1968), pp. 27-33; n. 54 (Outubro de 1968), pp. 27-33; n. 55 (Novembro de 1968), pp. 23-29; n. 56 (Dezembro de 1968), pp. 55-61; n. 57 (Janeiro de 1969), pp. 23-27. Rec.: CARO BAROJA, Julio (1959), Revista de dialectología y tradiciones populares, t. 15, cuaderno 4, pp. 539-540. CHAVES, Luís (1961), Revista portuguesa de filologia, v. 11, t. 2, pp. 485-486. Boletín del Instituto Nacional de Investigaciones Agronómicas, v. 20, n. 43 (Dezembro de 1960), p. 401. De um dos exemplares da sua obra España en la historia del tabaco, propriedade da família de JPV, deixa-se testemunho de uma dedicatória autógrafa: «Ainda que tenha escrito este livro, não sou homem de fumos; já sabes». Veja- se, para além disso: Pfeife und feuerzeug = Pipe and lighter = La pipe et le briquet, n. 5-6 (Maio-Junho, 1967). 152 Fig. 49 – Fotografia do investigador palmero José Pérez Vidal. 3.2. A imagem plástica do “hábito prazenteiro” nas Canárias Nesta secção vamos debruçar-nos sobre escritores e artistas retratados a fumar, do artista como fumador e de diversas cenas relacionadas com o “hábito prazenteiro”. Incluímos óleos, desenhos, caricaturas e alguma fotografia. 3.2.1. Escritores e artistas Benito Pérez Galdós297 foi retratado em diversas ocasiões, ou com o cigarro na mão, ou no ato de fumar. A sua imagem de fumador passou também para as caricaturas. Talvez o quadro mais representativo seja o de Joaquín Sorolla (1894), da Casa Museu do autor em Las Palmas de Gran Canária [Figura 50], ao que parece com 51 anos de idade298. Luis Bagaría (1882-1940) representa numa tertúlia de artistas e escritores em 297 ELORZA, Antonio (1988), Luis Bagaría. El humor y la política, Barcelona Anthropos, p. 63. GONZÁLEZ PADRÓN, Antonio, “Galdós en las artes plásticas”, in actascongreso.casamuseoperezgaldos.com › index. php › cig › article › view. [Consultado em 23/09/2019]. 298 TORRES GONZÁLEZ, Begoña (2005), Sorolla. Madrid: LIBSA. pp. 244-245. O quadro foi adquirido pelo Cabildo (Governo da ilha) de Gran Canária aos descendentes do autor em 1973. 153 1918 a um Galdós ancião com o seu inevitável cigarro [Figura 51]. Do artista barcelonês que desenhou o autor de Fortunata e Jacinta, celebrou uma exposição a Fundación Mapfre de Las Palmas de Gran Canária no Outono de 2018299. Fig. 50 – Benito Pérez Galdós. Joaquín Sorolla, 1893. Óleo sobre tela, 73 x 98 cm. Casa- Museo Pérez Galdós. Cabildo de Gran Canaria. Fig. 51 – Caricatura de Pérez Galdós por Luis Bagaría (1918). Casa Museo Pérez Galdós. 299 Ver:https://www.fundacionmapfreguanarteme.org/guanarteme/exposiciones-conciertos/ exposiciones/2018/dibujos-bagaria-sol.jsp [Consultado em 23/09/2019]. 154 Um exemplo de artista fumador é o do pintor surrealista Óscar Domínguez (1906-1957) que nos deixou, em 1926, um autorretrato assinado na parte inferior esquerda da tela, quando estava a realizar a sua primeira estada em Paris300. Foi exposto em O Museu Imaginado. Arte Canário 1930-1990. Expo CAAM, 3/12/1991 – 26/01/1992, comissariada por Fernando Castro Borrego301. O pintor recém-chegado a Paris, com apenas 20 anos, representa a sua figura de meio corpo, com sobretudo e chapéu de aba larga e um sofisticado cachimbo que parece apagado [Figura 52]. Fig. 52 – Autorretrato. Óscar Domínguez, 1926. Óleo sobre tela. Caja Canarias, Tenerife. O pintor da paisagem da ilha de La Palma, Francisco Concepción Pérez (1929- 2006), uns anos mais tarde, em 1949, autorretrata-se também com cachimbo e de meio corpo, num óleo dedicado à sua mãe (“À minha mãe carinhosamente Quico”) [Figura 53]302. 300 Autorretrato. Óscar Domínguez, 1926. Óleo sobre tela. Caja Canarias, Tenerife. 301 CASTRO BORREGO, Fernando (1978), Óscar Domínguez y el surrealismo, Madrid, Ediciones Cátedra. 302 Catálogo de la Exposición Antológica de Francisco Concepción, Março-Maio de 2003. Excmo. Cabildo Insular de La Palma. 155 Fig. 53 – Francisco Concepción, Óleo sobre tela, 1949. Vicki Penfold (1918-2013), pintora polaca estabelecida em Puerto de la Cruz (Tenerife), na última parte da sua agitada vida, retratou o casal formado pelo pintor e crítico de Arte Eduardo Westerdahl y Oramas (1902-1983) e Maud Bonneaud (1921- 1991), em 1981 e 1970, respetivamente. O fundador da Gazeta de Arte (1932- 1936), foi captado pelo pincel de Penfold numa atitude serena, sentado, com os braços cruzados, segurando o cachimbo com a mão esquerda e com um fundo de livros. Por seu lado, Bonneaud, autora de diversos textos para catálogos de arte, é retratada com a mesma atitude complacente do marido, mas o cigarro substituiu o cachimbo. Podemos apreciar como nos usos sociais, o cachimbo é identificado com os homens e os cigarros com as mulheres. Álvaro Ruiz refere-se ao seu vibrante cromatismo ao comentar estas obras303 [Figuras 54 e 55]. 303 RUIZ RODRÍGUEZ Álvaro (2006), Vicki Penfold, vol. 45 de la Biblioteca de Artistas Canarios, Tenerife, Litografía Romero. En 1963 foi acolhida por Oscar Kokoschka, protagonista do expressionismo austríaco, como aluna da sua “Escola da Visão ou da Vista” no castelo de Salzburgo. 156 Figs. 54 e 55 – Eduardo Westerdahl (1981) e Maud Bonneaud (1970) por Vicki Penfold (Coleção privada, Santa Cruz de Tenerife). A própria Vicki Penfold oferece-nos outro retrato de artista, neste caso o pintor de La Laguna, Pedro González304, no qual, segundo o historiador da Universidade de La Laguna, a artista combina “a soma das suas virtudes técnicas juntamente com a sua elevada capacidade intuitiva”305. A composição é muito parecida às obras anteriores, ainda que Pedro González tenha entre os dedos um cigarro aceso. Parece que os tempos mudam [Figura 56]. Pedro González deu as boas-vindas, em carta aberta, no jornal La Tarde (18/09/1964), à artista, quando ela chegou a Tenerife, em 1964, onde residiria o resto da sua vida306. 304 CASTRO BORREGO (1994), Fernando. P. González. Biblioteca de Artistas Canarios. Gobierno de Canarias. Islas Canarias. 305 RUIZ RODRÍGUEZ Álvaro, ob. cit.,pp. 86-87. 306 Ibídem, p. 80. 157 Fig. 56 – Pedro González por Vicky Penfold, óleo sobre tela. 75 x 50 cm. 1989. Finalmente, ainda que tenha sido o primeiro retrato realizado ao chegar à ilha de Tenerife, devemos mencionar o do jornalista e crítico de arte Julio Tovar (1964), do qual o seu biógrafo e historiador destaca “as suas excelentes e expressivas mãos com cigarro” [Figura 57]. 158 Fig. 57 – Julio Tovar por Vicky Penfold, óleo sobre tela, 44,5 x 58 cm. 1964. Outro exemplo significativo é o retrato de Emeterio Gutiérrez Albelo (1904-1969), poeta e editor do grupo surrealista de Tenerife, a cargo do pintor de Fuerteventura, Juan Ismael. Esta caricatura é considerada um dos primeiros desenhos do artista307. Nela define o rosto do seu amigo, de modo simplificado, em consonância com os versos do poeta [Figura 58]. 307 Juan Ismael. La obra dibujada. Los retratos (2007), Exposição Centro de Arte Juan Ismael, do 29 de Novembro ao 29 de Dezembro de 2007; CICCA e Gabinete Literario do 10 de Janeiro ao 10 de Fevereiro de 2008. Carlos Eduardo Pinto Trujillo (Comissário). Cabildo de Fuerteventura, Gobierno de Canarias y Obra Social de La Caja de Canarias, pp.13-14 e 137. 159 Fig. 58 - Emeterio Gutiérrez Albelo, Juan Ismael, 1927. Tinta e aguarela sobre papel, 28 x 22,5 cm. O retrato e o Soneto de la pipa, foram publicados na revista Hespérides: artes, ciencias, literatura y deportes em 1926: Soneto de cachimbo Suspensa de meus lábios foste como uma namorada, e hoje rouba-me o cálido eflúvio do teu amor (com um repreender que me aturde e me oprime) muito rígido, muito seco e arrogante, o doutor. E com seus arseniatos e seus hipofosfitos atira-me de mim, minha alegre, quimérica Istambul. ¡Oh loiro cachimbo inglês, já nos meus sensuais ritos não entrançarás ao ar tua cabeleira azul! Por isso, neste ocaso doce e declamatório, em cândidas lãs, meu lírico amuleto, aspiro teu acendido coração ideal. E como num dourado ataúde ilusório, encerro-te no estojo, tão frágil! de um soneto atado com a fita da última espiral. Gutiérrez Albelo Icod308. 308 Santa Cruz de Tenerife, año 1 - n. o 33, 15 de Agosto de 1926, p. 14. 160 Em 1956 o poeta voltou a ser objeto de representação pelo pintor, com o seu inseparável cachimbo, num retrato desenhado a tinta sobre papel [Figura 59]309. Fig. 59 – Emeterio Gutiérrez Albelo por Juan Ismael, 1952. Tinta sobre papel, 23,5 x 17,5 cm. O dramaturgo e escritor Juan Marrero Bosch (1933-2006)310foi plasmado num desenho a tinta sobre papel pelo pintor de Gáldar, Antonio Padrón, en 1959311, que recorda o autorretrato do próprio Padrón (1969). 3.2.2. Retratos de personagens diversos O primeiro que selecionámos é a caricatura que do empresário Fernando Franquet Solé, dono de uma prestigiada indústria tabaqueira em Santa Cruz de 309 Ibídem, p. 151. 310 PADRÓN, Jorge (2019), “Juan Marrero Bosch”, in Revista / Literatura Canaria/ Diccionario de la Literatura en Canarias. 311 Casa-Museo Antonio Padrón. Cabildo de Gran Canaria. 161 Tenerife, traçou o artista Fernando Fresno (1891-1949). O desenho foi realizado numa estadia nas Canárias a caminho da América, em 1933 [Figura 60]312. Fig. 60 – Caricatura de Fernando Franquet Solé por Fernando Fresno, 1933, Museo Canário de Las Palmas. Um dos grandes caricaturistas das Canárias, Francisco González313, deixou- nos uma recriação da fábrica de tabacos La Regenta, de Joaquín dos Santos, na qual aparecem o próprio empresário e Nicolás Socorro, que na altura abriu uma fábrica de tabacos em Arucas [Figura 61]314. Nicolás pilota a embarcação que simboliza a fábrica e o seu proprietário, o industrial de origem portuguesa, dos Santos, aparece sentado na popa a fumar um havano. 312 GÓMEZ-PAMO, Juan (1998), “El cuaderno canario de Fernando Fresno”, in XIII Coloquio de Historia Canario-Americana, pp. 2975-2978. Este personagem foi ainda um político republicano que se envolveu na criação do parque natural do Teide. SIMANCAS CRUZ, Moisés (2007), Las áreas protegidas de Canarias, Santa Cruz de Tenerife, Ideas, pp. 31 e 37. 313 GONZÁLEZ GUERRA, Frank (2003), El humor gráfico en Canarias. Apuntes para una historia (1808- 1998), Las Palmas de Gran Canaria: Ediciones del Cabildo de Gran Canaria. 314 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, p. 232. 162 Fig. 61 – Recreación de la fábrica de tabacos La Regenta, de Joaquín dos Santos por Francisco González. De Francisco González é também a caricatura de Horacio Rojas, funcionário do Porto de la Luz de Las Palmas de Gran Canária, sentado ao leme a fumar um cachimbo como se se tratasse de uma chaminé [Figura 62]. Fig. 62 – Caricatura de Horacio Rojas Vera, práctico del Puerto por Francisco González, Aguarela sobre papel. 163 Igualmente, dentro do género de humor gráfico, inclui-se o retrato que Manuel Padrón Noble realizou de Antonio Limin Ѻana López (1904-1982) [Figura 63], que foi presidente do “Cabildo” de Gran Canária. A obra pertence à coleção da Casa de Colón de Las Palmas de Gran Canária. Fig. 63 – Antonio LiminѺana López, Caricatura de Manuel Padrón Noble, Tinta sobre papel, 30,5 x 24 cm. Casa de Colón. Cabildo de Gran Canaria. “A caricatura é a arte de deformar uma imagem para fazer um retrato mais verdadeiro”, diz o próprio Padrón na entrevista feita por Alfredo Herrera Piqué, e acrescenta: Para mim a cor é fundamental. Cada indivíduo tem uma cor e procuro que a cor reflita a sua personalidade, incluindo a cor dos fundos que hão-de manifestar o “clima”(...) Todas as caricaturas faço-as sempre em cor315. 315 HERRERA PIQUÉ, Alfredo (1986), “Padrón Noble. la caricatura y la percepción de la personalidad”, in Aguayro, La Caja de Canarias, n.º 138, pp. 14-15. 164 De Eduardo Millares Sall (Cho Juaa), incorporamos nesta galeria de retratos de fumadores, as caricaturas de Adolfo Suárez e Fidel Castro, nos momentos iniciais da Transição Democrática espanhola [Figura 64]. Curiosamente, Fidel fuma um cachimbo, enquanto que Adolfo Suárez se deleita com um havano. Fig. 64 – Cho Juáa, Fidel Castro y Adolfo Suárez, 1978, Tinta sobre papel, 23x20 cms. Las Palmas de Gran Canaria, propriedade particular. 9ROWDQGR DR UHWUDWR FRQYHQFLRQDO GHYHPRV PHQFLRQDU R GH -RV«ķ 0LJXHO Sotomayor y Sotomayor — um dos grandes proprietários da ilha de La Palma — do pintor José Aguiar (1895-1976) [Figura 65] e uma obra de um dos retratistas mais importantes destes últimos anos, o pintor Alejandro Reino (1935-2018), que nos deixou uma galeria de umas 400 obras deste género316. Neste caso, consagrado a Antonio Cuyás [Figura 66]317. 316 Obituario de La Provincia de 4/1/2018. Igualmente la nota que le consagró el CAAM: file:///C:/Users/ User/Downloads/sobreAlejandroReino.pdf. [Consultado em 26/09/209]. 317 Rostros de la Isla. El arte del retrato en Canarias 1700-2000 (2002): Cabildos de Gran Canaria y de Tenerife, p. 219. 165 Fig. 65 – José Miguel Sotomayor y Sotomayor por José Aguiar. Óleo sobre tela, 1922 (Propriedade particular). Fig. 66 – Antonio Cuyas por Alejandro Reino. Óleo sobre tela, 200 x 8o cm. Coleção particular, Las Palmas de Gran Canaria. 166 3.2.3. Manolo Millares e Planas de poesía São um bom exemplo relacionado com o hábito de fumar, as ilustrações que Manolo Millares (1926-1972) realizou para Smoking room de Alonso Quesada, em 1949. A capa tem um desenho intitulado “Síntese do inglês colonial” com um cigarro na boca318 [Figura 67]. Por outro lado, há que mencionar O homem do cachimbo, que dá o título ao exemplar de Planas de Poesía, N.ºXIII, de 1951, no qual o artista publica onze desenhos. Precisamente, o único inominado é o homem do cachimbo. [Figura 68]. 3.2.4. Camponeses, pescadores, marinheiros, artesãos e indianos Apresentamos uma relação seguramente incompleta, mas representativa, no caso dos camponeses: Rafael Larena-Avellaneda Rodríguez (1873-1933), Camponês 318 Planas de Poesía IV, Las Palmas de Gran Canaria, Imprenta de Pedro Lezcano. Fig. 67 – Síntesis del inglés colonial por Manolo Millares para o livro Smoking room (Cuentos de los ingleses de la colonia en Canarias) de Alonso Quesada en 1949. Fig. 68 – El Hombre de la pipa por Manolo Millares, en Planas de Poesía, N.º XIII (1951). 167 fumando (ca. 1901)319 [Figura 69]; José Aguiar, Frutos da terra (1924)320 [Figura 70] e Gomeros (1925) [Figura 71]; Cirilo Suárez, O gigante da colheita (1935) [Figura 72]. Foram pintados na primeira época de expansão da banana, que é a grande protagonista, antes da Guerra Civil de 1936. 319 ARROYO FERNÁNDEZ, María Dolores (1992), La pintura contemporánea de paisajes en las Canarias Orientales, Madrid, Universidad Complutense, pp. 43-44. Foi presidente da Câmara de Las Palmas, professor de desenho e proprietário rural. 320 ABAD Ángeles (1991), José Aguiar, Gobierno de Canarias, Biblioteca de Artistas Canarios. Gobierno de Canarias, p. 47. Fig. 69 - Retrato de Campesino fumando por Rafael Avellaneda (ca.1901). Óleo sobre tela. Coleção privada (Las Palmas de Gran Canaria). Fig. 70 - Frutos de la tierra SRU-RVHķ$JXLDU 1924). Óleo sobre tela. 300 x 277 cm. Museo Municipal de Bellas Artes de Santa Cruz de Tenerife. Fig. 71 - GomerosSRU-RVHķ$JXLDU&ROH©¥R particular, 1925. Fig. 72 - El gigante de la cosecha por Cirilo Suárez, 1935. Óleo sobre tela, 208 x 139,5 cm. Fundación de La Caja de Canarias. 168 Entre os pescadores ou “roncotes”321, podemos encontrar O homem do peixe (1907)322, de Francisco Suárez León (1865-1934)323 [Figura 73]: a Apresentação Álvarez realizado por Nicolás Massieu Matos em 1950324 [Figura 74]; Os “roncotes” (1970) de Felo Monzón325 [Figura 75]; ou Três figuras de Francisco Concepción (1972)326 [Figura 76]. Entrariam na denominação de “roncotes”, as fotografias de Francisco Rojas Farin Ѻa327 [Figuras 77 e 78]. 321 “Pescador canário experiente nas lides de pesca que se realizavam na costa de África próxima das Ilhas. Los roncotes se reunían en el bar de la plaza a contar sus aventuras por la costa de África”. Disponível em: http://www.academiacanarialengua.org/palabra/roncote/. 322 ALLEN, Jonathan (2003), Catálogo de la Exposición Francisco Suárez León, Pintor de la realidad, Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo de Gran Canaria, Casa de Colón. Estudio monográfico, p. 75. 323 ARROYO FERNÁNDEZ, María Dolores (1992), La pintura contemporánea de paisajes en las Canarias Orientales, Madrid, Universidad Complutense, pp. 42-43. Foi diretor da Academia Municipal de desenho e interessou-se pelo Bairro de pescadores de San Cristóbal. 324 Nicolás Massieu y Matos, 1950. Óleo sobre tela, 59 x 48,5 cm. Casa de Colón. Cabildo de Gran Canaria. 325 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y MONZÓN BENÍTEZ Marta (2010), El universo plástico de Felo Monzón. Expo CICCA de 16 de Setembro a 23 de Outubro de 2010. Obra Social de La Caja de Canarias. 326 Tres figuras. Francisco Concepción, Óleo sobre tela, 1972. Catálogo de la Exposición Antológica, Março-Maio de 2003. Excmo. Cabildo Insular de La Palma. 327 Francisco Rojas Fariña [fotografías 1958-2003]. Expo, La Regenta y La Granja, 2004. Pedro Almeida Cabrera (comisario). Gobierno de Canarias. Fig. 73 - El hombre del pescado, Francisco Suárez León (1907). Óleo sobre tela, 70 x 51 cm. Coleção particular. Fig. 74 - Presentación Álvarez por Nicolás Massieu y Matos, 1950. Óleo sobre tela, 59 x 48,5 cm. Casa de Colón. Cabildo de Gran Canaria. 169 Fig. 75 – Los Roncotes por Felo Monzón, 1970. Tinta sobre papel, 17 x 26 cm. Coleção particular, Gran Canaria. Fig. 76 – Três figuras por Francisco Concepción. Óleo sobre tela, (1972). 170 Felo Monzón, entre os desenhos que realizou na prisão de Gando, em 1937, deixou-nos Postais enviados do campo de concentração de Gando, entre os quais aparece um marinheiro com um cigarro na boca, acompanhado de um cãozinho, com um vulcão, em erupção, ao fundo328 [Figura 79]. Entre a obra do pintor, natural de Las Palmas, Manuel González Méndez (1843- 1909), resgatamos um Velho construtor de carros, que num momento de sossego do seu trabalho, acendeu um cachimbo329 [Figura 80]. Juan Bautista Fierro Van de Walle deixou-nos um quadro de Os indianos de Las Palmas (1911), no qual o cabeça de família, como signo de distinção, caminha com um havano na boca330 [Figura 81]. 328 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y MONZÓN BENÍTEZ Marta (2010), El universo plástico de Felo Monzón. Expo CICCA de 16 de Setembro a 23 de Outubro de 2010. Obra Social de La Caja de Canarias, p. 147. 329 ALLOZA MORENO, Manuel (1991), Manuel González Méndez, Gobierno de Canarias, Bibliotecas de Autores Canarios, p. 92. 330 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (2001), Arte en Canarias [siglos XV-XIX]. Una mirada retrospectiva. Tomo I (p. 39) y Tomo II (pp. 245-247). Expo, La Regenta, Las Palmas de Gran canaria, Junho a Julho de 2001. Fig. 77 – Francisco Rojas Fariña [fotografías 1958-2003]. Fig. 78 – Francisco Rojas Farin Ѻa [fotografías 1958-2003]. 171 Fig. 81 – Los indianos por Juan Bautista Fierro Van de Walle, 1911. Desenho a tinta e aguarela, 22 x 29 cm. Museo Insular de La Palma, Santa Cruz de La Palma. Fig. 79 – Postais enviados do campo de concentração de Gando, por Felo Monzón, 1937. Tinta e aguarela sobre papel, 15 x 9,5 cm. Fig. 80 – Viejo constructor de carros por Manuel González Méndez. Óleo sobre tela, 231 x 163 cm. Museo Municipal de Santa Cruz de Tenerife. 172 3.2.5. Imagens várias Nesta secção incluímos Jane Millares (1928)331 e o seu Tipo Canário (1958)332 [Figura 82]; O Chiringuito da Praia (1974) de Francisco Concepción333 [Figura 83]; dois atrativos desenhos de Eduardo Millares Sall (1924-1992)334, Cho Juáa, Sem Título (1982) [Figuras 84 e 85] – entre as muitas vinhetas da sua extensa produção – e o seu guache sobre papel, Sem título, de um homem fumando um cachimbo (1965) [Figura 86]. Fig. 82 – Tipo canario por Jane Millares, 1958. Cera sobre cartolina, 23 x 17 cm. Coleção da artista. 331 GARCÍA MORALES, Teresa (Comisaria) (2012), Jane Millares Sall, diario de una pintora. Expo San Martín Centro de Cultura Contemporánea, Las Palmas de Gran Canaria, 14 de junio al 29 de julio de 2012, Cabildo de Gran Canaria, p. 45. GARCÍA MORALES, Teresa (2019), Jane Millares Sall. Madrid, Sílex. 332 Tipo canario. Jane Millares, 1958. Cera sobre cartolina, 23 x 17 cm. Coleção da artista. 333 Catálogo de la Exposición Antológica, marzo-mayo de 2003. Excmo. Cabildo Insular de La Palma. 334 GONZÁLEZ, Franck y HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (2011), Eduardo Millares Sall. Más DOO£ķ GH&KR-XD£ Las Palmas de Gran Canaria: Obra Social de la Caja de Canarias, Hermanos Millares Ley, ed. 173 Fig. 83 – El Chiringuito de la Playa por Francisco Concepción (1974). Fig. 84 – Cho Juáa, Sin título, 1982, Guache sobre papel, 65 x 52 cm., propriedade particular, Las Palmas de Gran Canaria. Fig. 85 – Cho Juáa, Sin título, 1982, Guache sobre papel, 64,8 x 52 cm. propriedade particular, Las Palmas de Gran Canaria. 174 Fig. 86 – Cho Juáa, Sin título, 1965, Guache sobre papel, 917 x 1,181 cm. São inquietantes as imagens de fumadores criadas por Facundo Fierro: O olhar de Facundo Fierro aglutina nostalgia e imaginação à volta de La Palma, a ilha por antonomásia335 [Figura 87]. Fig. 87 – Práctica, Facundo Fierro, gravado a água-tinta, 1987. Instituto de Bachillerato de Santa Cruz de La Palma. 335 RODRÍGUEZ CONCEPCIÓN, Anelio: ¿Es La Palma? Pinturas de Facundo Fierro. Disponível em: http:// www.cajacanarias.com/microsites/facundo-fierro/ [Consultado em 1/10/2019]. 175 La espera del Voyeur, de Hector Vera (2016), está feito com dois pedaços de tela, unidos à altura das pernas. O fumador está espiando a janela esperando que apareça a sua presa, enquanto consome um cigarro [Figura 88]. Fig. 88 – La espera del Voyeur, por Héctor Vera (2016). 3.3. A imagem da indústria tabaqueira A imagem da indústria tabaqueira foi-nos proporcionada pelos folhetos onde se mostra o cultivo do tabaco [Figuras 89 e 90], as fotografias dos secadores de tabaco [Figura 91], os postais das fábricas [Figuras 92 e 93], os cartazes de propaganda — como o de Néstor — [Figura 94], as oficinas onde são elaborados os cigarros e os charutos [Figuras 95 e 96], as fotografias dos antigos estabelecimentos de venda de tabacos (tabacarias) [Figura 97], as habilitações [Figuras 98, 99 e 100] ... 176 Figs. 89 e 90 – Diversas Memórias sobre o Cultivo do Tabaco. Fig. 91 – Secador de tabaco da década de 1880. El Museo Canario (Las Palmas de Gran Canaria). 177 Fig. 92 - DA LUZ PERESTRELLO, JORDAO, 1905-1910, Arquivo da FEDAC. Fig. 93 – Grande Fábrica de Cigarros Florislen Ѻa (propriedade de Santiago Gutiérrez Martín 1905), Arquivo da FEDAC (Las Palmas de Gran Canaria). 178 Fig. 94 – Cartaz encomendado a Néstor Martín Fernández de la Torre pelos industriais tabaqueiros canários (ca. 1922). Fig. 95 – Cigarreiras da Favorita de Eufemiano Fuentes. Postal ilustrado. 179 Fig. 96 – Francisco Concepción, La Gloria palmera. Fig. 97 – BAENA, E. FERNANDO, 1926, Arquivo da FEDAC, Las Palmas de Gran Canaria. 180 Fig. 98 – Habilitações palmeras. Fig. 99 – Habilitações palmeras. 181 Fig. 100 – Habilitações palmeras. 182 Sobre os autores ATOCHE PEÑA, Pablo – Licenciado em Filosofía e Letras (Divisião de Geografia e História. Secção de História) e Doutor em Geografia e História (Secção de História. Área de Pré-História) pela Universidad de La Laguna. É Professor Catedrático da ULPGC na área de Pré-História e faz parte do Grupo de Investigação G9 – “Historia, Economía y Sociedad”,onde trabalha em várias linhas, entre elas a denominada “Islas en la Prehistoria: Bioarqueología, Ecoarqueología y Bioadaptación”. ORCID: 0000- 0001-6608-1585 / ID Autor Scopus: 56613356900. HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes – Catedrática de Historia del Arte de la Universidad de Las Palmas. Miembro del Grupo de Investigación G9 Historia, Economía y Sociedad de la citada Universidad. Pertenece al Seminario Permanente de Historia del Tabaco (CHAM y Universidad de Las Palmas de Gran Canaria). LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de – Professor Catedrático de História e Instituições Económicas da Universidad de Las Palmas de Gran Canaria. Coordenador Geral do Programa de Doutoramento em Ilhas Atlânticas: História, Património e Quadro Jurídico-Institucional e do Grupo de Investigação G9 – “Historia, Economía y Sociedad”. Pertence ao Seminário Permanente de História do Tabaco (CHAM e Universidad de Las Palmas de Gran Canaria). MACHADO, Margarida Vaz do Rego – Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores. Doutorada em História Moderna. Investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades (FCSH – NOVA / Universidade dos Açores). Pertence ao Seminário Permanente de História do Tabaco (CHAM e Universidad de Las Palmas de Gran Canaria). RAMÍREZ RODRÍGUEZ, Mª. Ángeles – Licenciada em Filosofía e Letras (Divisão de Geografia e História. Secção de História da Arte) pela Universidad de La Laguna, faz parte do Grupo de Investigação da ULPGC G9 – “Historia, Economía y Sociedad”, onde trabalha em várias linhas, entre elas a denominada “Islas en la Prehistoria: Bioarqueología, Ecoarqueología y Bioadaptación”. ORCID: 0000-0002-2621-7449. 183 SILVA, Susana Serpa – Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores. Doutorada em História Contemporânea. Investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades (FCSH – NOVA / Universidade dos Açores) e diretora, na Universidade dos Açores, do Doutoramento em Ilhas Atlânticas: História, Património e Quadro Jurídico-Institucional. ORCID: 0000-0003-1357-4196. Ciencia Vitae ID: DE14-5CAF-87B0. VIÑA BRITO, Ana – Professora Catedrática de História Medieval. Professora de História Medieval na Facultad de Humanidades da Universidad de La Laguna – Canárias. Membro do IEMyR - Instituto de Estudios Medievales y Renacentistas e do Grupo de Investigação LexHis da mesma Universidade. 184 Por Convénio celebrado a 23 de julho de 2013, a Universidad de Las Palmas de Gran Canaria (ULPGC), a Universidad de La Laguna (ULL), a Universidade dos Açores (UAc) e a Universidade da Madeira (UMa), criaram o ciclo de estudos, por associação, conducente ao grau de doutor em Ilhas Atlânticas: História, Património e Quadro Jurídico-Institucional que é oferecido, respetivamente, pela Escuela de Doctorado da la ULPGC, pela Escuela de Doctorado y Estudios de Posgrado da ULL, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UAc e pela Faculdade de Artes e Humanidades da UMa. Entre os principais objetivos deste doutoramento, que conta com três linhas de especialização (História, Património e Ciências Jurídicas), destacam-se o desenvolvimento e o aprofundamento de estudos de excelência, no âmbito de investigação avançada, sobre as ilhas e os arquipélagos atlânticos (...). A Comissão Académica do curso decidiu criar a série, genericamente intitulada, Macaronesia: Dinámicas Históricas, Sociales y Económicas, que agora se inicia com o e-book n.º 1, cujo título Povoamento, Tabaco, Açúcar e Arte na História das Ilhas do Atlântico Médio, e os respetivos conteúdos, refletem a diversidade de temas abordados [nos seminários formativos], com enquadramento nos contextos dos Açores e das Canárias.