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2021
DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS
MACARONESIA
POVOAMENTO, TABACO, AÇÚCAR E ARTE
NA HISTÓRIA DAS ILHAS DO ATLÂNTICO MÉDIO
COORDENADORES:
Susana Serpa Silva
Santiago de Luxán Meléndez
POVOAMENTO, TABACO,
AÇÚCAR E ARTE
NA HISTÓRIA DAS ILHAS
DO ATLÂNTICO MÉDIO
COORDENADORES:
Susana Serpa Silva
Santiago de Luxán Meléndez
DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS
MACARONESIA
1
2021
Ficha Técnica:
Série:
MACARONESIA. DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS
Título:
1. POVOAMENTO, TABACO, AÇÚCAR E ARTE NA HISTÓRIA DAS ILHAS DO ATLÂNTICO MÉDIO
Coordenadores:
SILVA, Susana Serpa e LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de
Autores:
ATOCHE PEÑA, Pablo; HERNÁNDEZ SOCORRO, Mª de los Reyes; LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de;
MACHADO, Margarida Vaz do Rego; RAMÍREZ RODRÍGUEZ, Mª. Ángeles; SILVA, Susana Serpa; VIÑA
BRITO, Ana
Revisores Científicos:
AZANZA LÓPEZ, José Javier - Professor Titular da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de
Navarra. Membro do Grupo de Investigación TriviUN. Teatro, Literatura y Cultura Visual da mesma
Universidade. DNI: 29150328J. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0375-7899
VAQUINHAS, Irene - Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura da mesma Universidade. ORCID: https://
orcid.org/0000-0003-1889-165X
Edição:
CHAM Açores, 2021
ISBN:
978-989-33-1426-5
Execução Gráfica:
Nova Gráfica, Lda.
Mapa da capa:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Macaronesia-esp.png
Com Apoio da
O CHAM Açores garante um rigoroso processo de seleção e avaliação do trabalhos que publica.
MACARONESIA. DINÁMICAS HISTÓRICAS, SOCIALES Y ECONÓMICAS
1. Povoamento, tabaco, açúcar e arte na História das ilhas do Atlântico Médio; Susana Serpa
Silva, Santiago de Luxán Meléndez (coordenadores); CHAM Açores, 2021.
p. 183; 21,0 x 29,7 cm.
ISBN: 978-989-33-1426-5
1. As ilhas como laboratórios de observação da mudança cultural e da transformação do
meio natural: a colonização humana de Lanzarote (Ilhas Canárias). 2. O açúcar no Corpus
Documental das Ilhas Canárias. 3. O Tabaco nos Impérios Ibéricos desde os Arquipélagos
Atlânticos nos séculos XVII-XIX. Uma visão comparada. 4. O açúcar na vida quotidiana
insular: o caso dos Açores nos séculos XVIII e XIX. 5. Imagens dos promotores do cultivo do
tabaco e representações plásticas do hábito prazenteiro nas Canárias (Séculos XIX-XX). I.
Serpa, Susana, coord. II. de Luxán, Santiago, coord. III. Universidade dos Açores (UAc).
4Índice
Apresentação ......................................................................................................5
As ilhas como laboratórios de observação da mudança cultural e da transformação
do meio natural: a colonização humana de Lanzarote (Ilhas Canárias) / The islands as
laboratories for the observation of cultural change and the transformation of the natural
environment: The human colonization of Lanzarote (Canary Islands)
Pablo Atoche Peña e Mª. Ángeles Ramírez Rodríguez ..................................................7
O açúcar no Corpus Documental das Ilhas Canárias / Sugar in the Documentary Corpus
of the Canary Islands
Ana Viña Brito ............................................................................................................53
O Tabaco nos Impérios Ibéricos desde os Arquipélagos Atlânticos nos séculos XVII-XIX.
Uma visão comparada / Tobacco in the Iberian Empires from the Atlantic Archipelagos in
the 17th-19th centuries. A compared view
Santiago de Luxán Meléndez e Margarida Vaz do Rego Machado ..............................66
O açúcar na vida quotidiana insular: o caso dos Açores nos séculos XVIII e XIX / Sugar
in everyday island life: the case of the Azores in the 18th and 19th centuries
Susana Serpa Silva .......................................................................................................99
Imagens dos promotores do cultivo do tabaco e representações plásticas do hábito
prazenteiro nas Canárias (Séculos XIX-XX) / Images of tobacco cultivation promoters and
plastic representations of the pleasant habit in the Canary Islands (19th-20th centuries)
María de los Reyes Hernández Socorro e Santiago de Luxán Meléndez ...................127
Sobre os autores ..............................................................................................182
Índice
5Apresentação
Por Convénio celebrado a 23 de julho de 2013, a Universidad de Las Palmas de
Gran Canaria (ULPGC), a Universidad de La Laguna (ULL), a Universidade dos Açores
(UAc) e a Universidade da Madeira (UMa), criaram o ciclo de estudos, por associação,
conducente ao grau de doutor em Ilhas Atlânticas: História, Património e Quadro
Jurídico-Institucional que é oferecido, respetivamente, pela Escuela de Doctorado da
la ULPGC, pela Escuela de Doctorado y Estudios de Posgrado da ULL, pela Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da UAc e pela Faculdade de Artes e Humanidades
da UMa. Entre os principais objetivos deste doutoramento, que conta com três
linhas de especialização (História, Património e Ciências Jurídicas), destacam-se
o desenvolvimento e o aprofundamento de estudos de excelência, no âmbito de
investigação avançada, sobre as ilhas e os arquipélagos atlânticos, da Macaronésia,
bem como das dinâmicas estabelecidas entre estes e os continentes que marginam o
oceano. O estabelecimento de redes de pesquisa e de conhecimento entre instituições
de ensino superior e centros de investigação é outro relevante desígnio deste programa
doutoral.
O curso prevê a realização de Seminários Formativos e de Investigação
que se realizam com a colaboração e participação de docentes e alunos das quatro
universidades. Nestes, não só se debatem problemáticas relacionadas com a investigação
e a elaboração das teses doutorais, como se apresentam e discutem temáticas que fazem
parte dos interesses e da mais recente investigação dos professores, o que permite um
aporte de novidades e inovações metodológicas. Estas atividades são essenciais para
os doutorandos, em formação, como também para os investigadores já consolidados,
que encontram, assim, mais uma oportunidade de expor e discutir os seus trabalhos
com colegas de diferentes universidades.
Embora os seminários sejam preferencialmente ministrados por videoconfe-
rência, por força da geografia insular, tem-se procurado, quando viável, realizar estes
encontros presencialmente, o que aconteceu, em junho de 2019, na Universidade dos
Açores. Este e-book, que agora chega a um leque mais vasto de leitores, reflete o se-
minário que então se realizou, sendo o primeiro de um conjunto de publicações, que
se irão manter, no sentido de compilar e divulgar os trabalhos desenvolvidos nestas
reuniões científicas. Por este motivo, a Comissão Académica do curso decidiu criar
Apresentação
6a série, genericamente intitulada, Macaronesia: Dinámicas Históricas, Sociales y
Económicas, que agora se inicia com o e-book n.º 1, cujo título Povoamento, Tabaco,
Açúcar e Arte na História das Ilhas do Atlântico Médio, e os respetivos conteúdos,
refletem a diversidade de temas abordados, com enquadramento nos contextos dos
Açores e das Canárias. Mais se acordou que a coordenação de cada volume ficará a
cargo do responsável pelo doutoramento na Universidad de Las Palmas de Gran Cana-
ria e na universidade de acolhimento do seminário. Por este motivo, esta publicação
faz-se com a chancela do CHAM Açores, núcleo do CHAM – Centro de Humanidades,
da FCSH da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, ao qual os
coordenadores dirigem o seu agradecimento.
Estima-se, pois, que este seja o primeiro e-book de muitos outros que se
seguirão. Nele colaboram Santiago de Luxán Meléndez, Pablo Atoche Peña, María de
los Reyes Hernández Socorro e Mª. Ángeles Ramírez Rodríguez, todos da ULPGC, Ana
Viña Brito da ULL, Margarida Vaz do Rego Machado e Susana Serpa Silva, da UAc.
Os Coordenadores
7As ilhas como laboratórios de observação
da mudança cultural e da transformação
do meio natural: a colonização humana de
Lanzarote (Ilhas Canárias)1
The islands as laboratories for the
observation of cultural change and the
transformation of the natural environment:
The human colonization of Lanzarote
(Canary Islands)
Pablo Atoche Peña (ULPGC)
pablo.atoche@ulpgc.es
Mª. Ángeles Ramírez Rodríguez (ULPGC)
angelesramirez57@gmail.com
In memoriam
Antonio Rodríguez Rodríguez
1 O presente trabalho insere-se nos estudos que estamos a realizar no quadro do projeto HAR2017-
82792-P «Colonización protohistórica del archipiélago canario: parámetros antropológicos, culturales y
medioambientales», financiado pelo Ministério de Economia, Indústria e Competitividade. Programa
Estatal de Fomento da Investigação Científica e Técnica de Excelência. Subprograma Estatal de Geração
do Conhecimento, no quadro do Plano Estatal de Investigação Científica e Técnica e de Inovação. IP:
Pablo Atoche Peña.
As ilhas como laboratórios ...
8Resumo
As ilhas constituem espaços adequados para experimentar modelos teóricos
destinados a analisar fenómenos de transformação ambiental e mudança cultural,
adquirindo o carácter de laboratórios desprovidos de interferências externas, onde
se podem observar os mecanismos que regem as interações entre o homem e a sua
cultura e os ecossistemas naturais. Neste campo teórico, a colonização humana
das Canárias pressupôs o estabelecimento de povos que implantaram atividades
agropecuárias em ecossistemas que eram virgens e este processo permite-nos delinear
algumas explicações sobre os padrões socioeconómicos vinculados aos habitantes do
continente que se estabeleceram inicialmente, bem como as estratégias de adaptação
que tiveram de implementar para sobreviver nos novos e limitados espaços insulares.
Neste trabalho, combinam-se informações de diferentes disciplinas científicas como
a Arqueologia, a Paleoecologia, a Bioantropologia ou a Linguística para efetuar
uma aproximação à realidade complexa e heterogénea da colonização humana do
arquipélago das Canárias e os intensos efeitos culturais e ambientais que provocou
em ilhas como Lanzarote ou Fuerteventura.
Palavras-chave: Colonização das ilhas; Ilhas Canárias; Lanzarote; Arqueologia;
Protohistória; Bioantropologia; Paleoecologia.
Abstract
The islands constitute appropriate spaces in which to experiment with
theorical models aimed at analysing phenomena of environmental transformation
and cultural change, acquiring the character of laboratories devoid of external
interference in which to observe the mechanisms governing the interactions
EHWZHHQKXPDQVDQGWKHLUFXOWXUHDQGQDWXUDOHFRV\VWHPV,QWKLVWKHRUHWLFDOˋHOG
the human colonization of the Canary Islands involved the establishment of people
who introduced agricultural and livestock activities into hitherto unspoilt for the
socio-economic patterns linked to the continental settlers that were initially
established and adaptive strategies that they had to implement in order to survive in
the new and limited islands spaces. This work combines information from different
VFLHQWLˋF GLVFLSOLQHV VXFK DV $UFKDHRORJ\ 3DOHRHFRORJ\ %LRDQWKURSRORJ\ DQG
Resumo Abstract
9Linguistics, in order to make and approach to the complex heterogeneous reality of
human colonization in the Canary Islands and the intense cultural and environmental
effects that it gave rise to on islands such as Lanzarote and Fuerteventura.
Keywords: Islands Colonization; Canary Islands; Lanzarote; Archaeology;
Protohistory; Bioanthropology; Paleoecology.
1. Introdução
Os espaços insulares marcados pela síndrome da insularidade constituem áreas
bem delimitadas, pelas suas superfícies reduzidas e bem delimitadas para experimentar
modelos teóricos que pretendam analisar fenómenos culturais ligados a sociedades isola-
das. Os primeiros estudos etnográficos do século XIX focados em sociedades insulares pro-
porcionaram alguns princípios explicativos sobre a composição e estrutura das comunida-
des humanas, os quais têm sido usados para definir processos que favoreçam a mudança
cultural2. No terreno da Geoarqueologia, as ilhas são consideradas espaços ecológicos em
equilíbrio instável, especialmente sensíveis à presença humana e à sua capacidade para
alterar as paisagens naturais por serem espaços fechados3, daí que lhes seja atribuído o
carácter de laboratórios onde se podem observar os mecanismos que regem as interações
entre seres humanos e paisagens naturais sem que se produzam interferências externas.
Neste âmbito teórico, a hipótese que defende que as ilhas são capazes de fornecer modelos
apropriados para analisar as possíveis relações entre a transformação do meio natural e
a mudança cultural tem sido amplamente defendida e extensamente matizada. No nosso
caso favoreceu a reflexão sobre os parâmetros que se deveriam ter em consideração para
uma correta aproximação à realidade das sociedades proto-históricas canárias4, às quais
2 Cf. p.e. MALINOWSKI, B. (2001), Los argonautas del Pacífico occidental. Comercio y aventura entre los
indígenas de la Nueva Guinea melanésica, Barcelona, Ediciones Península.
3 GORMAN, M.L. (1991), Ecología insular, Barcelona, Ediciones Vedrá. PÉREZ-OBIOL, R., YLL, E.I.,
PANTALEÓN-CANO, J. & ROURE, J.M. (2000), “Evaluación de los impactos antrópicos y los cambios
climáticos en el paisaje vegetal de las Islas Baleares durante los últimos 8.000 años”, in V.M. Guerrero
& S. Gornés (Coor.), Colonització humana en ambients insulars. Interacció amb el medi i adaptació cultural,
Palma, Universitat de les Illes Balears, pp. 73-98.
4 ATOCHE, P. (2003), “Fenómenos de intensificación económica y degradación medioambiental
en la Protohistoria canaria”, Zephyrus, LVI, 183-206. CRIADO, C. & ATOCHE, P. (2003), “Estudio
geoarqueológico del yacimiento de El Bebedero (siglos I a.C. a XIV d.C., Lanzarote, Islas Canarias)”, in
Cuaternario y Geomorfología, AEQUA/Sociedad Española de Geomorfología, 17 (1-2), pp. 91-104.
1. Introdução
10
têm sido definidas, justamente, pelo seu relativo isolamento, tanto do meio geocultural
continental como entre si, um arquipélago fragmentado em sete espaços culturais que
teriam agido como autênticos ilhéus de cultura onde os fenómenos de difusão interviriam
de uma maneira muito limitada.
As Ilhas Canárias, à semelhança dos outros arquipélagos da Macaronésia5, não
tiveram grandes herbívoros até serem introduzidos pelos primeiros colonizadores
humanos6, responsáveis pela implantação de atividades agrícolas e pecuárias que
transformaram a vegetação original, por terem eliminado táxones e reduzido as
formações vegetais, alterando a fisionomia da paisagem natural. Nas Canárias, essas
transformações ecológicas começaram durante a etapa proto-histórica e intensificaram-
se depois da conquista normando-castelhana do século XV d.C. como consequência do
novo modelo económico que trouxe consigo a introdução do cultivo da cana de açúcar7.
Como consequência, uma parte significativa das paisagens naturais que apresentam as
Ilhas Canárias na atualidade começaram a formar-se em datas relativamente recentes8
devido, também, à pressão das atividades pecuárias e pastoris que, em menos de
dois milénios, fizeram desaparecer de Lanzarote e Fuerteventura formações vegetais
endémicas e alteraram o relevo intensamente.
5 O trabalho de A. Vieira (2004) é uma boa síntese sobre o papel histórico dos arquipélagos da
Macaronésia nas relações atlânticas durante a Idade Moderna. VIEIRA, A. (2004), “As ilhas atlânticas.
Para uma visão dinâmica da sua história”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 50, pp. 219-264.
6 J. Meco e colaboradores para Fuerteventura e posteriormente L. Zöller e colaboradores, assinalaram
a possibilidade de uma presença precoce de ovinos e caprinos nas Canárias orientais, datados
respetivamente no II e III milénios a.C. No caso de Fuerteventura, os restos encontraram-se submersos
nos depósitos fluviomarinhos na foz do Barranco de la Monja (Puerto del Rosario), circunstância que
estabelece a sua possível relação com escoamentos causados por uma intensificação da erosão “…
resultado de un impacto antrópico sobre la frágil cubierta vegetal insular”, sugerindo um povoamento
humano das Canárias orientais no II milénio a.C. MECO, J., ONRUBIA, J. & FONTUGNE, M. (1997),
“Paleoclimatología y presencia humana holocena en Fuerteventura”, in A. Millares, P. Atoche y M.
Lobo (Coordinadores-editores), Homenaje a Celso Martín de Guzmán (1946-1994), pp. 363-372, Madrid,
Universidad de Las Palmas de Gran Canaria/Ayuntamiento de Gáldar/Dirección General de Patrimonio
Histórico, p. 369. ZÖLLER, L., SUCHODOLETZ, H. von & KÜSTER, N. (2003), “Geoarchaeological and
chronometrical evidence of early human occupation on Lanzarote (Canary Islands)”, in Almogaren
XXXIV, pp. 7-24.
7 LUXÁN, S. de & VIÑA, A. (Dirs.) (2009), La empresa azucarera en Canarias. Siglos XV-XX, Las Palmas,
Arehucas-Ayuntamiento de Los Llanos de Aridane.
8 A. Santana considera que “… los terrenos de menor pendiente y con suelos de alta capacidad agrícola
serían desprovistos del arbolado con el objeto de instalar en ellos cultivos dedicados a la exportación,
principalmente de azúcar, y al abastecimiento de la población”. SANTANA, A. (2003), “Consideraciones en
torno al medio natural canario anterior a la conquista”, in Eres (Arqueología/Bioantropología), 11 (Junio
2003), 61-75, Museo Arqueológico de Tenerife, Instituto Canario de Bioantropología, OAMC, Cabildo de
Tenerife, p. 63.
11
No arquipélago canário o estudo das relações que, foram estabelecidas entre os
povoadores humanos proto-históricos e o meio ambiente insular, iniciou-se há poucos
anos, adquirindo maior interesse no campo científico ao perceber a importância que
essa linha de trabalho poderia ter para determinar as causas e a forma como ocorreu
a colonização humana nas ilhas. (Rodríguez e González, 2003)9. O facto das paisagens
naturais canárias apresentarem realidades diferentes antes e depois da presença hu-
mana, permitiu propor modelos explicativos destinados a delimitar as características
socioeconómicas das formações sociais que se fixaram inicialmente nas ilhas e as estra-
tégias de adaptação que implementaram para subsistir10. Apesar disso, concretizar com
precisão estes modelos ainda é complicado devido ao número de variáveis que intervêm,
tanto de carácter natural, consequência das sucessivas emissões lávicas e piroclásticas,
que no caso de Lanzarote transformaram mais de 30% da superfície11, como de carácter
antrópico determinadas por diferentes aspetos tecnológicos e sociais.
A hipótese com a qual trabalhamos considera que os primeiros colonizadores
humanos continentais que chegaram às ilhas possuíam na origem uma estrutura
socioeconómica agro-pastoril, contextualizada num campo tecnológico típico da
passagem do Bronze final para a Idade do Ferro, com influências da cultura fenício-
púnica estabelecida no Mediterrâneo ocidental a partir do final do segundo milênio
aC. e que a colonização do arquipélago das Canárias teria ocorrido a partir da
transição do 2º para o 1º milênio aC, fenómeno que iniciaria o desenvolvimento das
relações colonizadores continentais/ilhas oceânicas que devem ter operado em duas
direções: por um lado, alterando o sistema cultural original dos humanos e, por outro,
transformando o ambiente original das ilhas. Isto tudo sem excluir que nesse processo
se tivessem produzido, tanto nos colonizadores como nos animais e plantas domésticas
que os acompanhavam, adaptações biométricas e/ou mutações genéticas estimuladas
pela síndrome da insularidade, dando origem assim à aparição de caracteres culturais e
biológicos que adquirirão o aspeto de endemismos canários.
9 RODRÍGUEZ, C. & GONZÁLEZ, R. (2003), “Colonización y asentamiento en islas por grupos humanos:
aspectos biogeográficos y bioantropológicos”, in Eres (Arqueología/Bioantropología), 11 (Junio 2003), 115-
133. Museo Arqueológico de Tenerife, Instituto Canario de Bioantropología, OAMC, Cabildo de Tenerife.
10 ATOCHE, P. (2008), “Las culturas protohistóricas canarias en el contexto del desarrollo cultural
mediterráneo: propuesta de fasificación”, in R. González, F. López & V. Peña (Eds.), Los Fenicios y el
Atlántico, IV Coloquio del CEFYP (Santa Cruz de Tenerife, 2004), pp. 317-344.
11 ROMERO, C. (1991), La erupción de Timanfaya (Lanzarote, 1730-1736). Análisis documental y estudio
geomorfológico, Universidad de La Laguna, Serie Informes, 30.
12
2. O arquipélago canário na passagem do II para o I milénio
a.C.: mito e realidade
Nos II e I milénios a.C. diferentes culturas mediterrâneas (egípcia, grega,
romana...) imaginaram a existência de ilhas para lá das Colunas de Hércules, no oceano
ocidental12, espaço considerado um dos confins do mundo conhecido onde se situaram
diferentes elementos míticos, como resultado da tendência de colocar nos limites do
oceano os lugares mais maravilhosos, idílicos e felizes13 (Jardim das Hespérides, Ilhas
dos Bem Aventurados, Campos Elísios, Atlântida,...)14 (Figura 1)15. Esta visão fabulosa que
nos é transmitida por diferentes fontes clássicas greco-romanas não deve ter sido igual
para as populações indígenas do Bronze final estabelecidas naquilo que M. Tarradell
denominou de Círculo do Estreito16, ou para os marinheiros e mercadores fenícios que
se fixaram naquela região desde finais do II milénio a.C.17, que agiram com grande
cuidado para manter oculta a próspera realidade que existia do outro lado das Colunas
de Hércules, levando a cabo uma enérgica estratégia destinada a afugentar possíveis
12 MARTÍNEZ, M. (2010), “Islas míticas en relación con Canarias”, in Estudios Griegos e Indoeuropeos,
20, pp. 139-158.
13 CABRERA, A. (1988), Las Islas Canarias en el Mundo Clásico, Madrid, Viceconsejería de Cultura y
Deportes, Gobierno de Canarias. MARTÍNEZ, M. (1992), Canarias en la Mitología. Historia mítica del
archipiélago, Historia Popular de Canarias, 11, Santa Cruz de Tenerife, Cabildo Insular de Tenerife/
Centro de la Cultura Popular Canaria. MARTÍNEZ, M. (1996), Las Islas Canarias de la Antigüedad al
Renacimiento. Nuevos aspectos, Nuevos Estudios de Historia Canaria, Santa Cruz de Tenerife, Cabildo
de Tenerife/Centro de la Cultura Popular Canaria. MARTÍNEZ, M. (2002), Las Islas Canarias en la
Antigüedad Clásica. Mito, Historia e Imaginario, Santa Cruz de Tenerife, Centro de la Cultura Popular
Canaria. MANFREDI, V. (1997), Las Islas Afortunadas. Topografía de un mito, Madrid, Anaya, Anábasis.
SANTANA, A., ARCOS, T., ATOCHE, P. & MARTÍN, J. (2002), El conocimiento geográfico de la costa
noroccidental de África en Plinio: la posición de las Canarias, Hildesheim-Zürich-New York, Georg Olms
Verlag, Spudasmata, Band p. 88.
14 As fontes árabes medievais também projetam uma visão maravilhosa das ilhas atlânticas (Canárias
e Açores), possivelmente derivada da sua localização no oceano, que assinalam o extremo do mundo
conhecido, e provavelmente pela forma em que chega o conhecimento dessas ilhas através das fontes
clássicas greco-latinas e de narrações de expedições posteriores. No século XII o geógrafo árabe Al-
Idrisi projeta uma visão mais real das ilhas atlânticas. GUICHARD, P. (1995), “L’islaire arabe médiéval
dans la Méditerranée et dans l’atlantique”, in Los universos insulares, Cuadernos del CEMYR, 3, 199-207,
Universidad de La Laguna, p. 203.
15 ROMERO, F. & BENAVIDES, R. (1998), Mapas antiguos del mundo, Madrid, Edimat Libros.
16 TARRADELL, M. (1960), Marruecos púnico, Tetuán.
17 LÓPEZ PARDO, F. (1991), “El Periplo de Hannón y la expansión cartaginesa en el África occidental”,
V Jornadas de Arqueología fenicio-púnica (1990), 59-70. LÓPEZ PARDO, F. (2000), El empeño de Heracles
(La exploración del Atlántico en la Antigüedad), Madrid, Arco/Libros, Cuadernos de Historia, 73.
2. O arquipélago canário na passagem do II para o I milénio
a.C.: mito e realidade
13
concorrentes no Mediterrâneo ocidental e no oceano18. Esta situação manteve-
se até à destruição de Cartago por Roma no ano de 146 a.C., ponto de ruptura no
conhecimento que as culturas mediterrânicas possuíam sobre o que existia do outro
lado do Estreito, alterando a visão mítica para uma perspetiva mais real quando, em
meados do século I a.C., a emergente potência romana se interessou por localizar e
reconhecer as ilhas do Oceano19. Como resultado, na passagem da Era, foram elaboradas
as primeiras descrições biogeográficas dos arquipélagos africanos, que projetaram uma
visão dispersa das Ilhas Canárias, muito
diferente da atual, que diferenciavam
dois grupos, o das Hespérides (Lanzarote
e Fuerteventura) e o das Afortunadas
(Gran Canaria, Tenerife, La Gomera, El
Hierro y La Palma)20.
Na passagem do II ao I milénio
a.C., quando as Canárias começaram
a ser frequentadas por navegadores
originários do Círculo do Estreito21,
estas possuíam uma cobertura vegetal
mais ampla e espessa do que a atual,
que também estava presente em
Lanzarote e Fuerteventura, os recursos
hídricos encontravam-se em níveis
ótimos, com cursos de água sazonais e
permanentes, extensas várzeas de terra
fértil, portos naturais e ancoradouros
seguros, grandes recursos piscatórios,
18 GOZALBES, E. (1988), “La piratería en el Estrecho de Gibraltar en la Antigüedad”, in Congreso
Internacional ‘El Estrecho de Gibraltar’ (Ceuta, 1987), I, 769-778, Madrid.
19 SANTANA, A. & ARCOS, T. (2007), “La expedición de Juba II a las Islas Afortunadas y el meridiano
cero del Orbis Terrarum”, in Orbis Terrarum, Internationale Zeitzchrift für Historische Geographie der
Alten Welt, Band 9 (2003-2007), pp. 143-158.
20 SANTANA et alii. (2002), ob. cit.
21 ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2001), “Canarias en la etapa anterior a la conquista bajomedieval
(circa s. VI a.C. al s. XV d.C.): Colonización y manifestaciones culturales”, En Arte en Canarias: siglos
XV-XIX. Una mirada retrospectiva, Madrid, Gobierno de Canarias, Dirección General de Cultura, I, 43-95,
II, pp. 475-479.
Fig. 1 - Fragmento ocidental do mapa de Al-Idrissi
(1154 d.C.)
14
mostrando uma realidade natural que se terá mantido quase intacta até à mudança
de Era, segundo o recolhido pelas fontes literárias greco-latinas e dados obtidos da
investigação geoarqueológica22. Como resultado, as Canárias, na passagem do II para
o I milénio a.C. teriam apresentado uma situação ambiental definida por uma flora e
fauna distribuídas por estratos bioclimáticos altitudinais originados no efeito fachada
e no escalonamento vertical causado pelo encontro do fluxo dos ventos alísios com os
relevos insulares. Este fenómeno gerou diferenças entre as ilhas devido a uma altitude
desigual, pelo que se distingue entre ilhas baixas (Lanzarote e Fuerteventura), onde
predominam as espécies vegetais xerófilas e mesófilas e uma fauna adaptada à aridez
e aos terrenos planos, ilhas médias (Gran Canaria, La Palma, Gomera y El Hierro), onde
destacam o monteverde, a laurissilva, o pinhal e a fauna variada, e ilhas altas (Tenerife)
onde, além dos estratos anteriores, se desenvolve o próprio da alta montanha. Como
consequência, Lanzarote e Fuerteventura apresentariam no I milénio a.C. paisagens
vegetais potencialmente diferentes das atuais, caracterizadas por uma cobertura
vegetal mais densa e variada, mas por motivos orográficos e climáticos não tinham
a riqueza vegetal que definia o resto do arquipélago dado que a componente arbórea
potencial seria mais limitada. Massas florestais abertas estender-se-iam no norte de
Lanzarote e Fuerteventura apoiadas em relevos com altura suficiente para reter o
mar de nuvens, aumentar o índice das precipitações, gerar solos mais evoluídos ...,
características que permitem dar credibilidade às afirmações feitas por marinheiros
mediterrâneos dos séculos I a.C. e I d.C. relativamente à presença de florestas nestas
duas ilhas23 e colocar um ponto post quem a partir do qual se daria a destruição das
paisagens vegetais, verificando-se o elevado grau de deflorestação e desertificação
atingido no fim da etapa proto-histórica no século XV d.C.
22 ATOCHE (2003), ob.. cit.; CRIADO & ATOCHE (2003), ob. cit.; SANTANA (2003), ob. cit.; FERNÁNDEZ-
PALACIOS, J.Mª., NOGUÉ, S., CRIADO, C., CONNOR, S., GÓIS-MARQUES, C. & NASCIMENTO, L. (2016),
“Climate change and human impact in Macaronesia”, in Science Highlights: Climate Change and Cultural
Evolution, 24, nº 2, pp.68-69.
23 Plínio o Velho na sua História Natural (H.N., VI) assinala os atributos geomorfológicos e paisagísticos
mais destacados de Lanzarote e Fuerteventura, entre os que chama a atenção a presença, na primeira,
de árvores com alturas superiores a 40 m. SANTANA, A. & ARCOS, T. (2006), “Las dos islas Hespérides
atlánticas (Lanzarote y Fuerteventura, Islas Canarias, España) durante la Antigüedad: del mito a la
realidad”, in Gerión, 24, nº 1, pp. 85-110.
15
3. O ecossistema de Lanzarote no fim do período proto-
-histórico (século XV d.C.)
A situação potencial que existia no arquipélago canário na passagem do II para o
I milénio a.C. não corresponde com a distribuição que apresenta a vegetação passados
mais de três milénios de presença humana nem com as paisagens naturais atuais. Ao
longo do século XV d.C. a pressão antrópica intensificou-se provocando o quase total
desaparecimento das formações arbóreas existentes em Lanzarote e Fuerteventura,
que já estavam muito deterioradas no início do século, como foi recolhido nas crónicas
francesas da conquista. Le Canarien, quando descreve Lanzarote garante que “El país
es bueno y llano y carece de arbolado, salvo pequeños matorrales para quemar y una
especie de árboles llamados ‘higueras’, que cubren todo el terreno de un extremo al otro,
y producen una leche muy medicinal …”24 (Figura 2). Para Fuerteventura a mesma fonte
mostra uma situação mais positiva quando descreve uma cobertura vegetal formada
por pequenas florestas de tamargueiras, zambujeiros e palmeirais que, em zonas como
a várzea do Rio Palmas, ocupavam grandes extensões.
24 PICO, B., AZNAR, E. & CORBELLA, D. (2003 [1419]), Le Canarien. Manuscritos, transcripción y
traducción, Fontes Rerum Canariarum, XLI, La Laguna, Instituto de Estudios Canarios, p. 145.
Fig. 2 - Planície de El Jable (Lanzarote) (Fot.: M.A. Ramírez)
3. O ecossistema de Lanzarote no fim do período proto-histórico
(século XV d.C.)
16
“El terreno no está tan cubierto de grandes árboles como las islas ya
citadas [las centro-occidentales], pero está lleno de arbustos que producen
una leche muy medicinal a modo de bálsamo, y de muchos otros árboles que
dan dátiles, olivas, almáciga y otras cosas muy extrañas.”25
No último terço do século XV a situação de Lanzarote e da sua população ficou
registada na Pesquisa de Cabitos, documento que mostra uma grande precariedade
económica originada nas escassas chuvas que faziam com que as colheitas fossem
muito irregulares, o que provocou que a população tivesse que sobreviver da pecuária
extensiva, complementada com outras atividades que incidiam sobre os recursos
naturais da ilha, tais como a recolha de urzela, a caça ou a pesca26.
No século a seguir a situação não melhorou, manteve-se uma cobertura vegetal
raquítica que foi descrita por L. Torriani27, que diz que “… no tiene árboles, pero está
llena de matorrales que dicen tabaibas …” e que Fr. J. de Abreu Galindo28 reproduz
quase literalmente quando afirma que “Carece la isla de Lanzarote de árboles, que no
hay sino unas matas pequeñas, que dicen tabaibas …”. Pelo contrário, Fuerteventura
conserva ainda algumas amostras da sua antiga cobertura vegetal “Tiene pocas aguas
y pocos árboles, con excepción de un valle agradabilísimo, lleno con palmas salvajes”29,
informação que pontualizará Fr. J. de Abreu30, para quem “... hay algunos árboles, como
son tarajales, acebuches y palmas ...”.
Para o século XVII existe alguma informação sobre o maciço de Famara, no
extremo norte de Lanzarote, recolhida numa ata do Cabildo da ilha na qual, devido
às penúrias económicas da citada instituição, e perante a celebração a 12 de junho
da festa do Corpus, são adotadas algumas medidas entre as quais é especialmente
esclarecedora aquela que ordena que “... se hagan traer dos cargas de rama de Famara,
25 PICO et alii. (2003 [1419]), ob. cit., 141-142.
26 AZNAR, E. (1990), Pesquisa de Cabitos, Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo Insular de Gran Canaria,
Col. Ínsulas de la Fortuna, I, p. 34.
27 TORRIANI, L., (1978 [c. 1592]), Descripción e Historia del Reino de las Islas Canarias antes Afortunadas,
con el parecer de sus fortificaciones, Santa Cruz de Tenerife, Goya Ediciones, p. 46.
28 ABREU y GALINDO, Fr. J. de (1977 [1602]), Historia de la conquista de las siete islas de Canaria, Santa
Cruz de Tenerife, Goya Ediciones, p. 58.
29 TORRIANI (1978 [c. 1592]), ob.. cit., p. 70.
30 ABREU y GALINDO (1977 [1602]), ob. cit., pp. 59-60.
17
y la más que sea necesaria, para que con ella se enrame la iglesia mayor, ...”31, texto que
mostra a persistência de um reduto vegetal na zona de maior altitude da ilha, que deve
ter sobrevivido até a primeira metade do século XIX, se considerarmos que em 1840
P.B. Webb y S. Berthelot32 garantiam a presença de restos de Laurissilva (loro, faia,
urze,...) nos penhascos de Famara.
... confiándonos en algunos investigadores del siglo pasado (por
ejemplo Webb & Berthelot, C. Bolle y A. Engler), los Riscos de Famara
tenían sus vestigios de laurisilva. Son tres especies arbóreas que fueron
observadas: Laurus azorica (el laurel), Myrica faya (faya) y Erica arborea
(brezo); las tres especies citadas han sido exterminadas en la isla hace
quizás unos cien años. Quedan algunas especies acompañantes, típicas de
riscos de dicha formación ….33
31 BRUQUETAS, F. (1997), Las Actas del Cabildo de Lanzarote (siglo XVII), Arrecife, Cabildo de Lanzarote,
Col. Rubicón, 5, 187, Ata nº 180, 24 de maio de 1653.
32 Por todas partes, aún en las islas más despojadas de vegetación, la existencia de los montes primitivos nos
ha sido señalada por los renuevos de los árboles que han poblado antiguamente aquellas rocas desnudas. En
Lanzarote, algunos renuevos de hayas y de brezos se muestran aún sobre las cimas de Chache a 1.773 pies de
elevación;... BERTHELOT, S., (1995 [1880]), Árboles y bosques, La Orotava, Ed. J.A. Delgado Luis, Colección
A través del Tiempo, 13, p. 45.
33 KUNKEL, G. (1982), Los Riscos de Famara (Lanzarote, Islas Canarias). Breve descripción y Guía florística,
Madrid, Naturalia Hispánica, 22, Instituto Nacional para la Conservación de la Naturaleza, p. 11.
Fig. 3 - Reflorestação em Riscos de Famara (Lanzarote) (Fot.: M.A. Ramírez)
18
A veracidade da informação anterior ficaria atestada pela existência em
Famara de vertissolos, um tipo de solo cuja formação não é possível se não houver
duas condições: um clima sub-húmido e a presença de florestas (Figura 3).
Em Fuerteventura também existe a possibilidade de se ter desenvolvido algum
elemento do monteverde ligado a espécies termófilas e ocupando um espaço próprio
das florestas de transição e termófilas; é isto o que apontam as análises desenvolvidas
por C. Machado34 sobre carvões de lares recuperados na Cueva de Villaverde (La
Oliva, Fuerteventura), que correspondem a espécies da floresta termófila (loro, faia e
mocano) e pinheiros datados entre os séculos III e XI d.C. A desaparição desses táxones
arbóreos como fonte de lenha e a substituição por espécies arbustivas produzir-se-á
a partir do século XI d.C. como consequência direta das atividades antrópicas, que
agiram sobre um espaço submetido, por sua vez, ao stress climático provocado pela
tendência à desertificação que acontece ao longo do Holoceno, assinalado tanto pelos
dados palinológicos conhecidos para o Atlas Médio entre 3.100 B.P. e 1.320 B.P.35 como
pelos estudos sedimentológicos realizados na Cueva del Llano (Fuerteventura)36.
No estado atual da investigação é inegável que houve transformações
substanciais nos ecossistemas das duas ilhas orientais a partir da presença humana,
que têm a sua explicação na implementação da uma economia agrária. A agricultura,
o pastoreio intensivo e as outras atividades domésticas desenvolvidas pelos grupos
humanos fixados nessas ilhas seriam as causas principais das alterações ambientais
produzidas durante a etapa proto-histórica, enquanto que depois da conquista
normando-castelhana do século XV d.C. os solos das duas ilhas orientais foram
submetidos a uma intensa exploração agrícola que completou a deflorestação e
favoreceu o desenvolvimento de extensos fenómenos erosivos, que durante os séculos
34 MACHADO, Mª.C. (1996), “Reconstrucción paleoecológica y etnoarqueológica por medio del análisis
antracológico de la Cueva de Villaverde, Fuerteventura”, in P. Ramil-Rego, C. Fernández & M. Rodríguez
(Coord.), Biogeografía Pleistocena-Holocena de la Península Ibérica, pp. 261-274. MACHADO, Mª. C.
(1999), “El hombre y las transformaciones del medio vegetal en el archipiélago canario durante el
periodo pre-europeo: 500 a.C./1500 d.C.”, in II Congrés del Neolitic a la Península Ibérica, Saguntum-
Plau, Extra 2, pp. 53-58.
35 LAMB, H.F. & KAARS, S. van der (1995), “Vegetational respoinse to Holocene climatic change: pollen
and palaeolimnological data from the Middle Atlas, Morocco”, in The Holocene, 5, pp. 400-408.
36 COELLO, J.J., CASTILLO, C. & MARTÍN, E. (1999), “Stratigraphy, Chronology and Palaeoenvironmental
Reconstruction of the Quaternary Sedimentary Infilling of a Volcanic Tube in Fuerteventura, Canary
Islands”, in Quaternary Research, 52, pp. 360-368.
19
XVII e XVIII d.C.37 se manifestaram através de deslizamentos de encostas, colapsos
e lamaçais. Na costa, a radical redução da cobertura vegetal favoreceu a ação erosiva
do vento e gerou fenómenos de denudação e sedimentação; o primeiro originou o
arrastamento do material fino de superfície, surgindo a fragmentação grosseira ou
rocha, enquanto que o segundo originou que as areias arrastadas pelo vento (jable)
cobrissem os solos já existentes (Figura 4).
4. O povoamento proto-histórico de Lanzarote: a visão
bioarqueológica
Localizada a 115 km. do continente africano, Lanzarote ocupa a posição mais
oriental do arquipélago canário, com uma morfologia alongada em direção NE-SW
e uma superfície de 846 km2, que a colocam no quarto lugar em tamanho nas ilhas
37 G. Glas na segunda metade do século XVIII ilustra de forma clara a situação da paisagem de Lanzarote,
indicando que a causa dos ventos dominantes na vegetação natural é constituída apenas por algumas
espécies de arbustos e plantas herbáceas, complementadas por árvores de fruto plantadas pelo homem.
GLAS, G. (1976 [1764]), Descripción de las Islas Canarias 1764, La Laguna, Instituto de Estudios Canarios,
Fontes Rerum Canariarum, XX, pp. 31-32.
Fig. 4 - El Jable (Lanzarote) (Fot.: M.A. Ramírez)
4. O povoamento proto-histórico de Lanzarote: a visão
bioarqueológica
20
que compõem as Canárias (Figura 5). De origem vulcânica, a sua estrutura geológica
e dilatada evolução geomorfológica deram lugar a um relevo pouco marcado no qual
só há duas formas estruturais de alguma importância: os maciços vulcânicos Mio-
Pliocenos de Famara no extremo NE, com o ponto mais alto da ilha (670 metros sobre
o nível do mar) e o de Los Ajaches, no SE. Entre os dois maciços há uma sucessão
de manifestações vulcânicas de diferentes idades e graus de evolução, pequenas
depressões e amplos espaços cobertos por areias eólicas (jables)38.
A escassa altitude de Lanzarote não favorece a formação do mar de nuvens e,
com ele, a chuva horizontal, fenómeno que só é possível no maciço de Famara, daí que
seja a área insular melhor regada e com maiores recursos hídricos numa ilha onde as
precipitações se caracterizam pela sua escassez e grande variabilidade ao longo do
ano. Como consequência, o clima que predomina em Lanzarote é do tipo desértico
cálido com tendência à aridez, exceto em Famara, onde se dá um tipo estépico cálido
com verão seco. Estas particularidades climáticas, junto com a presença de solos pouco
desenvolvidos, determinam um manto vegetal pouco abundante e menos variado do
que os existentes nas ilhas centro-ocidentais39, integrado por táxones arbustivos e
herbáceos de escassa altura e carácter xerófilo, com domínio potencial de uma vegetação
própria do estrato infracanario árido e semiárido no qual predomina o estrato biótico
38 ROMERO, C. (1987), “Comentario al mapa geomorfológico de Lanzarote”, in Revista de Geografía de
Canarias, 2, pp. 151-172.
39 REYES, J.A. (2005), La flora vascular de la isla de Lanzarote. Algunos problemas por resolver, Academia
de Ciencias e Ingenierías de Lanzarote, Discursos Académicos, p. 15.
Fig. 5 - Lanzarote visto de La Graciosa (Fot.: M.A. Ramírez)
21
de tabaibal-cardonal. Junto do estrato anterior há áreas com vegetação de costa e
alguns pontos localizados por cima dos 500 m. de altitude onde se desenvolveu uma
vegetação potencial de tipo termocanário semiárido seco integrada por palmeiras,
zimbreiros e outras espécies40. A passada existência dessas potenciais condições
biogeográficas, em contraste com a situação atual, confirma o desenvolvimento de
notáveis transformações da paisagem ao longo do tempo, certificadas tanto através
das fontes literárias como sobre o terreno a partir da investigação geoarqueológica.
40 WILDPRET, W. & ARCO, M.J. del (1987), “España Insular: las Islas Canarias”, in Vegetación de España,
Universidad de Alcalá de Henares, Col. Aula Abierta, 3, pp. 515-544. ARCO, M.J. del (1989), “El origen de
la flora canaria”, in Quercus, 41, pp. 14-21.
Fig. 6 - Mapa de Lanzarote com a localização dos sítios arqueológicos citados no texto (Des.: A. Bueno)
22
As características ambientais descritas exerceram a sua influência nas
estratégias que a população colonizadora escolheu para subsistir. Um exemplo disto
foi a atividade agrícola, determinada pela insuficiência de água, pelos altos níveis
de insolação e evapotranspiração do chão, pela reduzida altitude média do terreno
dominado por ventos fortes e, no geral, pela baixa qualidade dos solos. Isto tudo deu
origem a uma situação de equilíbrio precário entre a população e os recursos agrícolas,
com secas e pragas periódicas, que contribuíram para que se adotassem condutas
sociais e económicas dirigidas à provisão de excedentes garantindo a reprodução do
ciclo produtivo41. Nesse processo de adaptação ao ecossistema insular, os colonizadores
experimentaram fenómenos de mudança cultural que os transforma de populações
continentais a populações insulares, de líbios continentais para mahos42 insulares.
4.1. Povoamento humano e ecologia insular: o processo de
antropização da paisagem primigénia de Lanzarote
Lanzarote é a ilha canária onde a atividade arqueológica proporcionou as séries
cronostratigráficas com ocupação humana que mostram uma maior profundidade
temporal, obtidas nos sítios de El Bebedero (Teguise), Buenavista (Teguise), Caldereta
de Tinache (Tinajo), Los Corrales (Teguise) e Valle de Femés (Yaiza) (Figura 6)43. Também
estão disponíveis as estratigrafias registadas em Zonzamas por I. Dug44, para as quais
41 Le Canarien, crónica francesa da conquista normando-castelhana do século XV, garante que em
Lanzarote “... crece gran cantidad de cebada, ...” “… cebada que encontramos por aquí, que los canarios
habían reservado para sembrar, ...” (PICO et alii., (2003 [1419]), ob. cit., 145 e 65). A conservação
prolongada do cereal pode ser feita de várias maneiras, inclusive introduzindo-o na areia (jable) sem a
necessidade de alterar previamente o grão por meio da aplicação de calor.
42 Etnónimo que recebiam as populações proto-históricas de Lanzarote e Fuerteventura em tempos
da conquista normando-castelhana do século XV.
43 L. Zöller e colaboradores mostraram diferentes perfis geológicos em Lanzarote, encontrando na
população de Guatiza restos ósseos de ovinos e caprinos, que, apesar de não se terem podido datá-los
por C14, a posição estratigráfica que ocupavam atribuía-lhes uma cronologia superior aos 5.000 anos.
Se se confirmar esta datação teria que se recuar o início da colonização da ilha em, pelo menos, dois mil
anos relativamente as datações facultadas até agora por sítios arqueológicos. ZÖLLER et alii. (2003), ob.
cit., 1, pp. 7 e 21.
44 DUG, I., (1974), “Excavaciones en el poblado prehispánico de Zonzamas”, in El Museo Canario,
XXXIII-XXXIV (1972-1973), pp. 117-123. DUG, I., (1976), “Excavaciones en el poblado prehispánico de
Zonzamas (Isla de Lanzarote)”, in Noticiario Arqueológico Hispánico, Prehistoria, 5, pp. 319-324. DUG, I.,
(1977), “El poblado prehispánico de Zonzamas (Lanzarote)”, in El Museo Canario, XXXVI-XXXVII (1975-
1976), pp. 191-194. DUG, I., (1988), “Avance de los trabajos en el poblado prehispánico de Zonzamas
4.1. Povoamento humano e ecologia insular: o processo de
antropização da paisagem primigénia de Lanzarote
23
não existe nenhuma referência cronométrica publicada45. Em todos os casos são sítios
ao ar livre, três deles assentamentos localizados no interior de caldeiras ou depressões
de origem vulcânica caracterizadas pela presença de potentes solos sedimentários e
pela formação sazonal de depósitos de água procedente da chuva (maretas)46, duas
características fisiográficas que fizeram destes lugares espaços ecológicos propícios
para o povoamento dos primeiros grupos humanos que chegaram à ilha e que obtinham
da pecuária e da agricultura os seus principais recursos de subststência. Durante a
proto-história, a área central de Lanzarote constituiu a unidade territorial natural de
exploração, ao permitir uma fácil comunicação entre a costa norte e a costa sul e entre
Malpaís de la Corona e as planícies meridionais, ao mesmo tempo que possuía vários
ecossistemas que favoreceram um alto grau de autossuficiência económica baseada
numa agricultura cerealífera de sequeiro (trigo e cevada), no pastoreio de cabras e
ovelhas47, na criação de porcos48, na caça, na pesca e na colheita de produtos terrestres
e marinhos.
(Lanzarote)”, in Investigaciones Arqueológicas en Canarias, I, pp. 51-58. DUG, I., (1990), “Arqueología del
Complejo Arqueológico de Zonzamas. Isla de Lanzarote”, in Investigaciones Arqueológicas en Canarias,
II, pp. 47-67.
45 Trabalhos arqueológicos posteriores sobre alguns dos cortes abertos nos anos 70 por I. Dug
apresentaram uma primeira referência cronológica, provavelmente proveniente de análises C14, dado
que não se indicam os parâmetros contextuais. MARTÍN, D., TEJERA, A., CAMALICH, Mª.D., GONZÁLEZ,
P., GOÑI, A. & CHÁVEZ, E. (2000), “Los trabajos de intervención arqueológica y patrimonial en el
poblado de Zonzamas”, in IX Jornadas de Estudios sobre Fuerteventura y Lanzarote, I, pp. 445-467. Mais
recentemente, durante a campanha de escavações de 2015, que supôs a abertura de sondagens aleatórias
com resultados que não permitiram delimitar a sequência estratigráfica nem a evolução cultural
do sítio, houve um achado de um conjunto de restos ósseos humanos num nível de preenchimento
afetado por remoções postdeposicionais, os quais foram datados por C14 entre os séculos VII e VIII
d.C. SANTANA, J.A., MORENO, M.A., SUÁREZ, I., MENDOZA, F. & ALBERTO, V. (2017), “Zonzamas: un
yacimiento singular en la isla de Lanzarote. Nuevos datos arqueológicos”, in XXII Coloquio de Historia
Canario-Americana, XXII-135, pp. 1-18.
46 A água foi tradicionalmente um recurso muito escasso em Lanzarote, ilha onde as poucas fontes não
proporcionam um fluxo abundante nem regular, com épocas no ano em que estão secas, circunstância
que aumentava a importância das maretas como recetáculos temporais/sazonais de água da chuva.
47 FERRANDO, A., MANUNZA, A., JORDANA, J., CAPOTE, J., PONS, A., PAIS, J., DELGADO, T., ATOCHE,
P., CABRERA, B., MARTÍNEZ, A., LANDI, V., DELGADO, J.V., ARGÜELLO, A., VIDAL, O., LALUEZA-
FOX, C., RAMÍREZ, O. & AMILLS, M. (2015), “A mitochondrial analysis reveals distinct founder effect
signatures in Canarian and Balearic goats”, in Animal Genetics, Immunogenetics, Molecular Genetics and
Functional Genomics, Short Communication, Stichting International Foundation for Animal Genetics.
48 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., CAPOTE, J.F. y RAMÍREZ, O. (2018), “Propuesta de origen para el cerdo
protohistórico canario a partir del ADNmt de especímenes procedentes de yacimientos arqueológicos
de Lanzarote”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 65 (065-030), pp. 1-14. OLALDE, I., CAPOTE, J.F., ARCO,
Mª.C. del, ATOCHE, P., DELGADO, T., GONZÁLEZ-ANTÓN, R., PAIS, J., AMILLS, M., LALUEZA-FOX, C.
& RAMÍREZ, O. (2015), “Ancient DNA sheds light on the ancestry of pre-hispanic Canarian pigs”, in
Genetics Selection Evolution, pp. 47-40.
24
Nos sítios arqueológicos indicados realizámos trabalhos arqueológicos ao longo
das três últimas décadas49 que mostraram diferentes sequências estratigráficas com
notáveis similitudes entre si a nível morfogenético e nos conteúdos arqueológicos,
providenciando abundante informação relativa aos processos de constituição
e destruição dos paleossolos de Lanzarote. Estes dados geoarqueológicos,
contextualizados nas amplas séries de datações C14 disponíveis (Figura 7), garantem uma
correta aproximação aos processos de transformação ambiental e de mudança cultural
associados à comunidade humana estabelecida em Lanzarote durante a Proto-história
insular. Os perfis estratigráficos exumados dos sítios de El Bebedero50, Caldereta de
Tinache51, Buenavista52 e Valle de Femés53 permitem traçar um perfil combinado ideal
que integre de maneira diacrónica as características dos quatro perfis exumados nos
49 Em El Bebedero durante os anos de 1985, 1987, 1990, 2010, 2011 e 2012; em Caldereta de Tinache nos
anos de 2005 e 2010; em Buenavista durante os anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2014, 2016, 2017, 2018 e
2019; em Cueva del Majo no ano de 2011; em Los Corrales durante os anos de 2012 e 2013.
50 ATOCHE, P. & RODRÍGUEZ, Mª.D. (1988), “Excavaciones arqueológicas en ‘El Bebedero’ (Teguise,
Lanzarote). Primera campaña, 1985. Nota preliminar”, in Investigaciones Arqueológicas en Canarias, I,
pp. 33-38. ATOCHE, P., RODRÍGUEZ, Mª.D. & RAMÍREZ, Mª.A. (1989), El yacimiento arqueológico de ‘El
Bebedero’ (Teguise, Lanzarote). Resultados de la primera campaña de excavaciones, Madrid, Secretariado
de Publicaciones de la Universidad de La Laguna/Ayuntamiento de Teguise. ATOCHE, P. (1993),
“Excavaciones arqueológicas en ‘El Bebedero’ (Teguise, Lanzarote). Segunda campaña, 1987”, in Eres
(Arqueología), 4 (1), pp. 7-19. ATOCHE, P., PAZ, J.A., RAMÍREZ, Mª.A. & ORTIZ, Mª.E. (1995), Evidencias
arqueológicas del mundo romano en Lanzarote (Islas Canarias), Arrecife, Cabildo Insular, Col. Rubicón,
3. ATOCHE, P. & PAZ, J.A. (1996), “Presencia romana en Lanzarote. Islas Canarias”, in Sixième Colloque
Eurafricain du CIRSS, Chinguetti (Mauritanie), octobre 1995, La Nouvelle Revue Anthropologique (juillet,
1996), Paris, Institut International d’Anthropologie, pp. 221-257. ATOCHE, P. (1997), “Resultados
preliminares de la tercera campaña de excavaciones arqueológicas en ‘El Bebedero’ (Teguise, Lanzarote).
1990”, in Vegueta, 2, pp. 29-44.
51 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., PÉREZ, S. & TORRES, J.D. (2007), “Primera campaña de excavaciones
arqueológicas en el yacimiento de la Caldereta de Tinache (Tinajo, Lanzarote)”, in Canarias Arqueológica,
15, pp. 13-46.
52 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., TORRES, J.D. & PÉREZ, S. (2009), “Excavaciones arqueológicas en
el yacimiento de Buenavista (Tiagua, Lanzarote): primera campaña, 2006”, in Canarias Arqueológica
(Arqueología/Bioantropología), 17, pp. 9-51. ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., PÉREZ, S. & TORRES, J.D.
(2010), “Segunda campaña de excavaciones arqueológicas en el yacimiento de Buenavista (Tiagua,
Lanzarote): Resultados preliminares”, in Canarias Arqueológica (Arqueología/Bioantropología), 18, pp.
1-55. ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2011), “Nuevas dataciones radiocarbónicas para la Protohistoria
canaria: el yacimiento de Buenavista (Lanzarote)”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 57, pp. 139-170.
ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2019), “El yacimiento de Buenavista, un asentamiento fenicio-púnico
en Lanzarote (Islas Canarias) (circa 960-360 a.n.e.)”, in A. Ferjaoui & T. Resissi (Eds.), La Vie, la Mort
et la Religion dans l’Univers Phénicien et Punique, Actes du VIIéme Congrès International des Études
Phéniciennes et Puniques (Hammamet, pp. 9-14. novembre 2009), Vol. I (Présence phénicienne et punique
en Méditerranée, urbanisme, architecture), pp. 365-380. Tunis, République Tunisienne, Ministère des
Affaires Culturelles, Institut National du Patrimoine.
53 CRIADO & ATOCHE (2003), ob. cit.
25
citados sítios, obtendo-se assim uma ampla sequência cronostratigráfica composta
por oito unidades diferenciadas tanto a nível morfogenético como pelo conteúdo
arqueológico, mostrando como foi o processo de transformação da paisagem insular
e qual foi a relação que teve com as mudanças culturais experimentadas pelo grupo
humano.
Fig. 7 - Gráfico de probabilidades das datas C14 obtidas em contextos
proto-históricos de Lanzarote54
O nosso perfil estratigráfico combinado baseia-se numa crosta calcária
formada sobre a rocha vulcânica, que é estéril do ponto de vista arqueológico.
Sobre esta base encontra-se o estrato VI, um potente nível natural de sedimentos
incrustrados que compõem um solo de textura argilosa e cor castanha com inclusões
de carbonatos de cor branca; como o anterior, é estéril do ponto de vista arqueológico.
Em seguida encontra-se o estrato V, composto por um solo castanho vertissolo
de desenvolvimento estável e homogéneo, de textura argilosa, que no fim do seu
desenvolvimento apresenta um depósito de rochas de tamanho pequeno e médio,
reflexo de um episódio erosivo datado na mudança de Era (séculos I a.C.-I d.C.), que
marca o fim dessa unidade estratigráfica coincidindo com o início da exploração
54 ATOCHE & RAMÍREZ (2017), ob. cit.
26
intensiva dos recursos terrestres da ilha, num momento histórico marcado pela
presença no arquipélago de navegadores romanos e/ou romanizados. Este estrato
incorpora os primeiros achados arqueológicos relacionados com a presença humana
na Ilha, constituídos por recipientes cerâmicos modelados à mão, de produção local,
no geral sem decoração, junto com fragmentos de recipientes modelados na roda, em
alguns casos pertencentes a ânforas púnicas e o segmento de uma pequena figura
de terracota moldada (Figura 8); registam-se, também, fragmentos de artefactos
Fig. 8 - Formas cerâmicas associadas à unidade estratigráfica V (Des.: A. Ramírez)
27
metálicos elaborados em cobre, bronze e ferro, missangas de massa de vidro, … A
indústria lítica polida está representada por diferentes tipos de artefactos (tampas
para recipientes cerâmicos de arenito vulcânico, polidores de basalto, moinhos
circulares, estelas com formas quadrangulares irregulares esporadicamente com
representações gravadas, …) e a fauna doméstica é constituída por ovelha (Ovis
aries), cabra (Capra hircus), porco (Sus scrofa porcus) e cão (Canis familiaris), espécies
às quais estão associados restos de peixes, moluscos marinhos, crustáceos,…,
duas espécies de micromamíferos, em concreto o musaranho endémico (Crocidura
canariensis) e o rato fóssil (Malpaisomys insularis), e várias espécies de aves (Tyto
alba, Tyto sp., Columba sp., Turdus sp. y Anthus berthelotti). Do ambiente vegetal
foram identificados, através da análise de colunas polínicas55, diferentes táxones
arbóreos (Alnus, Cedrus, Fraxinus, Juniperus, Myrica, Pinus, Quercus caducifoli y
Quercus perennifoli), arbustivos (Rosaceae) e herbáceos (Artemisia, Asteraceae
equinadas, Asteraceae fenestradas, Gramíneas cerealíferas, Gramíneas herbáceas,
Polygonum, Chenopodiodeae, Esporo Briófito, Esporo feto monolético, Esporo feto
trilético, Esporo fungo, Quistes algales, Glomales,…), que, no conjunto, mostram a
presença de uma paisagem vegetal muito diferente da atual, em especial pelo que
diz respeito ao número de espécies arbóreas.
A próxima unidade estratigráfica, o estrato IV, é o resultado da atividade
antrópica e apresenta um aspeto muito compacto, cor castanha amarelada e textura
franco-limosa. Os limites cronológicos estão entre a mudança de Era (séculos I a.C.-I
d.C.) e o início do século VI d.C., incorporando um contexto material caracterizado
pela presença de amplos recipientes cerâmicos modelados à mão, de produção
local, com massas de pouca qualidade, sem ornamentos, paredes baixas, bases
planas, diâmetros amplos e formas de tendência cilíndrica, troncocónica invertida,
... (Figura 9); há contas de colar feitas sobre conchas de moluscos marinhos ou
ossos de caprinos, moinhos de mão circulares giratórios e diferentes elementos de
importação de origem cultural romana (ânforas de vinho ou de azeite, cerâmica
comum, almofarizes, artefactos metálicos de cobre, bronze e ferro ou contas de
colar de massa de vidro e alabastro). As espécies domésticas identificadas são as
mesmas que no estrato anterior, verificando-se a presença de cereal doméstico
55 As análises polínicas foram feitas por Jordina Belmonte (Laboratório de Análisis Palinológicos-Red
Aerobiológica de Catalunha. Universidade Autónoma de Barcelona) e Lea de Nascimento (Grupo de
Biogeografía y Ecología Insular. Universidade de La Laguna).
28
(cevada e trigo) e possivelmente favas. A fauna selvagem está representada
por algumas espécies de aves (Corvus corax e Buteo buteo), sendo significativa
a presença da ratazana (Rattus cf. Rattus), espécie invasora provavelmente
introduzida56 pelas naus que desde o período cultural romano frequentaram as
56 O rato negro foi introduzido pelo homem nas ilhas mediterrâneas entre os séculos IV e II a.C.,
provocando mudanças percetíveis na ocupação de certas espécies de pássaros e outras espécies
pequenas sensíveis à predação dos ratos, limitando as suas zonas de reprodução a lugares inacessíveis.
Fig. 9 - Formas cerâmicas associadas à unidade estratigráfica IV (Des.: A. Ramírez)
29
águas canárias durante vários séculos57. O ambiente vegetal era composto por
táxones arbóreos (Alnus, Cedrus, Olea, Pinus, Quercus caducifoli e, quiçá, Quercus
perennifoli), arbustivos (Cistus e Ericaceae) e herbáceos (Artemísia, Asteraceae
equinadas, Asteraceae fenestradas, Fabaceae, Gramíneas herbáceas, Plantago,
Chenopodiodeae, Esporo Briófito, Esporo feto monolético, Esporo feto trilético,
Esporo fungo, Quistes algales, Glomales,…), que, no conjunto, são indicativos da
continuidade relativamente à paisagem vegetal documentada no estrato anterior,
apesar de se verificar uma redução na variedade e intensidade com que aparecem os
táxones arbóreos e arbustivos.
A unidade estratigráfica III, como a anterior, também é resultado da atividade
antrópica; de cor castanha muito clara e textura franco-limosa, com presença de
rochas de diferentes tamanhos que em algumas zonas cobrem o chão, dando à
unidade o aspeto pedregoso típico de um processo de desmantelamento por erosão
dos solos pré-existentes nas encostas próximas. Os seus limites cronológicos vão
desde o século VI d.C. até ao século XV d.C., caracterizando-se por uns registos
arqueológicos nos quais estão presentes alguns elementos novos, mesmo que
em conjunto não suponham um corte com a tradição tecnológica e cultural local
observada nos estratos V e IV. É o caso dos recipientes de cerâmica modelados à
mão, entre os quais permanecem os vasos sem decoração, embora se tornem
característicos os vasos com paredes finas ou medianamente espessas e superfícies
decoradas com motivos geométricos elaborados com incisões, impressões ou relevos
(Figura 10). Não há artefactos de importação, e a carência de objetos metálicos é
compensada com um notável desenvolvimento das técnicas de talha de artefactos
líticos em rochas vulcânicas58, elementos que se juntam a um importante conjunto
57 ATOCHE et alii. (1995), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1996), ob. cit.; ATOCHE, P. & PAZ, J.A. (1999),
“Canarias y la costa Atlántica del N.O. africano: difusión de la cultura romana”, in II Congreso de
Arqueología Peninsular (Zamora, 1996), IV, pp. 365-375. ATOCHE, P. (2006), “Canarias en la Fase
Romana (circa s. I a.n.e. al s. III d.n.e.): los hallazgos arqueológicos”, in Almogaren, XXXVII, pp.
85-117. ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2011), “El archipiélago canario en el horizonte fenicio-
púnico y romano del Círculo del Estrecho (circa siglo X ANE al siglo IV DNE)”, in J.C. Domínguez
(Ed. Cient.), Gadir y el Círculo del Estrecho revisados. Propuestas de la arqueología desde un enfoque
social, Universidad de Cádiz, Monografías Historia y Arte, pp. 229-256. ATOCHE, P. & RAMÍREZ,
Mª.A. (2017), “Gentes del ámbito cultural romano en la Protohistoria de Canarias”, in G. Santana
& L.M. Pino (Eds.), ȆĮȚįİȓĮ țĮ ȗȒIJȘıȚȢ, Homenaje a Marcos Martínez, Madrid, Ediciones Clásicas,
pp. 131-140.
58 MARTÍN, J., ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2000), “Consideraciones en torno al proceso de producción
lítica en El Bebedero (Teguise, isla de Lanzarote). La campaña de 1987”, in Eres (Arqueología), 9 (1), pp.
141-178.
30
de peças líticas polidas (brunidores, moinhos de mão giratórios circulares ou
lineares, tampas de arenito com forma circular, estelas decoradas,…), compondo
uma cultura material que foi o resultado final de um dilatado processo de adaptação
tecnológica aos limitados recursos insulares e ao desenvolvimento de um novo
quadro social e de subsistência favorecido pela ausência de contactos externos. No
fim do desenvolvimento do estrato III, num momento datado no século XIV d.C.,
regista-se o aparecimento de cerâmicas modeladas na roda com superfícies vidradas
dos tipos que são fabricados no sul da península ibérica e no norte de África no
fim da baixa Idade Média. Esta unidade estratigráfica contém restos das mesmas
espécies de animais domésticos identificados nos dois estratos anteriores, mantém-
se a presença de cereal, mas só se identificou a cevada, desconhece-se se se perdeu
e/ou abandonou o cultivo do trigo ou se estamos perante silêncio arqueológico. No
ambiente vegetal identificam-se táxones arbóreos (Arecaceae, Cedrus, Juniperus,
Pinus e Quercus perennifoli), arbustivos (Cistus e Rosaceae) e herbáceos (Asteraceae
Fig. 10 - Formas cerâmicas associadas à unidade estratigráfica III (Des.: A. Ramírez)
31
equinadas, Asteraceae fenestradas, Gramíneas herbáceas, Chenopodiodeae, Esporo
Briófito, Esporo feto monolético, Esporo fungo,…), que em conjunto refletem o
agravamento do processo de deterioração da cobertura vegetal iniciado no estrato
IV.
O perfil combinado completa-se com os estratos II, I e Superficial, unidades
que, em conjunto, formam um solo agrícola artificial (enarenado) que foi implantado
em Lanzarote a partir da década dos anos 40’ do passado século XX. Os registos
arqueológicos que proporcionam são o resultado da mistura de artefactos proto-
históricos tardios e históricos, os últimos bem documentados no sítio arqueológico de
Los Corrales.
Os caracteres morfogenéticos da sequência cronostratigráfica descrita
proporcionam alguns indícios e várias certezas relativamente à transformação
ambiental que sofreu Lanzarote depois do início da colonização humana, que não
ocorreu de maneira uniforme e contínua, e pelo menos três fases sucessivas puderam
ser diferenciadas.
A primeira fase iria desde que começou a chegada humana, em torno do século
X a.C. até ao fim do I milénio a.C., identificando-se com a unidade estratigráfica V.
Nela, são percetíveis os primeiros efeitos das atividades humanas na ilha, embora não
cheguem a produzir-se transformações substanciais na paisagem original, dado que se
mantém uma cobertura vegetal capaz de travar a erosão pluvial e de enxurradas.
A segunda fase iria desde o século I a.C. até ao século VI d.C. e corresponde
com a unidade estratigráfica IV, caracterizada por mostrar uma intensa atividade
erosiva que desmantelou os solos que cobriam as encostas depositando-os em
zonas baixas e deteriorou a cobertura vegetal. A mudança produzida na dinâmica
ecológica teve uma origem antrópica, devido à atividade pecuária intensiva que
submeteu o território insular ao sobrepastoreio de cabras e ovelhas59, fenómeno
que evidenciaram dois factos arqueológicos. Por um lado, a presença de numerosos
depósitos de restos ósseos de ovinos e caprinos em lugares concretos como
resultado do seu sacrifício sistemático quando os animais respondiam a parâmetros
59 A introdução de ovinos e caprinos nos espaços insulares dá origem a profundas mudanças na estrutura
e composição da biodiversidade insular, com drásticas reduções na distribuição e frequência das plantas
endémicas, a extinção de espécies vegetais e animais, a intensificação da erosão... COBLENTZ, B.E.
(1978), “The effects of feral goats (Capra hircus) on island ecosystems, Biological Conserver, 13, pp. 279-
286.
32
determinados de sexo e idade; funcionalmente esses lugares respondem a pequenas
indústrias estacionais onde foram elaborados produtos derivados do gado (carne,
couro, ...). O segundo facto arqueológico está constituído pelo achado de artefactos
importados que assinalam a presença de navegadores procedentes de ambientes
culturais romanizados do Mediterrâneo ocidental, além do tipo de processos
de produção que devem ter promovido na ilha, similares aos descritos para os
contextos das indústrias romanas da próxima costa africana entre os séculos II-I
a.C. e IV d.C.60.
A terceira fase no processo de transformação da paisagem insular começaria
no século VI d.C. acabando no século XV d.C., coincide com a unidade estratigráfica
III e a interrupção dos contactos com navegadores externos com o consequente
isolamento da população insular. A transformação da paisagem insular era um
facto irreversível, com a destruição quase total dos solos que cobriam as encostas
e a perda de importantes massas vegetais; o cardonal-tabaibal do piso basal
estendeu-se a zonas até então ocupadas por bosques e matagais integrados por
espécies da floresta termófila, formação que ficará restringida a áreas marginais,
como as encostas de Famara. O isolamento externo que caracteriza esta última
etapa favoreceu o início, por parte da população insular, de uma mudança cultural
responsável, entre outros aspetos, da implantação de uma estrutura social mais
complexa, do abandono das indústrias agrárias, da concentração da população
em núcleos urbanos ou, a nível tecnológico, da aparição de produções cerâmicas
decoradas com complexos motivos de claro significado social e da recuperação de
antigas tecnologias de talha para a elaboração de artefactos líticos de corte; ficando
consolidado um processo de autodefinição cultural e social no qual é possível
observar sobrevivências do antigo intercâmbio entre os indígenas insulares e
os navegadores estrangeiros e total adaptação dos canários proto-históricos ao
ecossistema insular. O grupo humano que habita Lanzarote adquire a fisionomia
cultural que será observada e descrita pelos cronistas da conquista da Baixa Idade
Média no século XV d.C.
60 PONSICH, M. (1988), Aceite de oliva y salazones de pescado. Factores geo-económicos de Bética y
Tingitana, Universidad Complutense de Madrid. LÓPEZ PARDO, F. & MEDEROS, A. (2008), La factoría
fenicia de la isla de Mogador y los pueblos del Atlas, Canarias Arqueológica, Monografías, 3, Museo
Arqueológico de Tenerife-OAMC.
33
4.2. Povoamento humano e mudança cultural: de líbios
continentais a mahos insulares
A proximidade do continente africano e a existência de assentamentos
humanos datados ao longo do I milénio a.C.61 que contêm artefactos importados
procedentes das culturas fenício-púnica e romana, conferem à ilha de Lanzarote
um papel destacado na explicação do processo que deu origem à descoberta do
arquipélago, ao início da sua colonização e à definitiva fixação da população
humana. Essa profundidade cronológica proporciona, também, uma adequada
margem temporal para poder explicar a aparição de determinados caracteres
bioantropológicos específicos da população proto-histórica canária, que a nível
genético parece concretizar-se na presença de um haplótipo característico, talvez
efeito da adaptação biológica dos colonizadores às novas condições impostas pela
insularidade62. No plano cultural também se produziu a aparição de inovadores
caracteres que alteraram o sistema cultural importado pelos colonizadores, próprio
das populações da etapa Bronze final-início do Ferro que ocupavam o Círculo do
Estreito, na passagem do II para o I milénio a.C.63, num fenómeno que se estende
no tempo e que agirá quer protegendo os elementos que melhor se adaptavam às
condições e à disponibilidade de recursos imposta pela biogeografia insular, como
reunindo paulatinamente novos aspetos surgidos da necessidade de adaptação a
61 ATOCHE, P. & RAMÍREZ, Mª.A. (2017), “C14 references and cultural sequence in the Proto-history of
Lanzarote (Canary Islands)”, in J.A. Barceló, I. Bogdanovic & B. Morell (Eds.), IberCrono. Cronometrías
para la Historia de la Península Ibérica, Actas del Congreso de Cronometrías para la Historia de la
Península Ibérica (IberCrono 2017), CEUR-WS, Vol-2024, pp. 272-285.
62 ARNAIZ-VILLENA, A., MUÑIZ, E., CAMPOS, C., GÓMEZ-CASADO, E., TOMASI, S., MARTÍNEZ-
QUILES, N., MARTÍN-VILLA & PALACIO-GRUBER, M.J. (2015), “Origin of Ancient Canary Islanders
(Guanches): presence of Atlantic/Iberian HLA and Y chromosome genes and Ancient Iberian language”,
International Journal of Modern Anthropology, 8, pp. 67-93.
63 Entre as obras clássicas de síntese que podem ser consultadas relativamente a Idade de Bronze e
a Proto-história do Mediterrâneo ocidental e norte de África encontram-se: CAMPS, G. (1980), Les
Berbères. Mémoire et identité, Paris, Editions Errance. PHILLIPSON, D.W. (1993), African Archaeology,
Cambridge World Archaeology, Cambridge University Press. FERNÁNDEZ, V.M. (1996), Arqueología
prehistórica de África, Historia Universal, 9 (Prehistoria), Madrid, Editorial Síntesis. CASTRO, P.V., LULL,
V. & MICÓ, R. (1996), Cronología de la Prehistoria Reciente de la Península Ibérica y Baleares (c. 2800-
900 cal. ANE), BAR Internacional Series, 652, Oxford. ALMAGRO, M., ARTEAGA, O., BLECH, M., RUIZ
MATA, D. & SCHUBART, H. (2001), Protohistoria de la Península Ibérica, Barcelona, Ariel Prehistoria.
RUIZ-GÁLVEZ, Mª.L. (2001), La Edad del Bronce, ¿Primera Edad de Oro de España? Sociedad, economía
e ideología, Barcelona, Crítica Arqueología. HARDING, A.F. (2003), Sociedades europeas en la Edad del
Bronce, Barcelona, Ariel Prehistoria.
4.2. Povoamento humano e mudança cultural: de líbios
continentais a mahos insulares
34
um espaço reduzido em superfície e escasso em recursos. Depois desse processo de
ajustamento e adaptação, a situação resolveu-se com uma mudança de identidade
cultural das populações colonizadoras64 que, no caso de Lanzarote, passaram de
líbios continentais a mahos insulares.
A distância reativa do Mediterrâneo ocidental que deve ter dado origem à
descoberta e posterior colonização do arquipélago canário, obrigaria os colonos a
crescerem num relativo isolamento cultural, confrontados com a escassez de recursos
e de matérias primas, pondo em movimento sistemas culturais caracterizados por um
estágio tecnológico que chamamos de Neolítico forçado65 sendo obrigados a reorientar
certas esferas culturais, como o subsistema tecnológico ou o subsistema económico,
a tal ponto que durante a Proto-história de Lanzarote é possível delimitar pelo menos
dois modelos de sobrevivência; um inicial, caracterizado pela dependência externa e
o intercâmbio desigual, que duraria aproximadamente entre o povoamento humano
no século X a.C. até ao século V d.C., e outro posterior, autárquico, baseado numa
economia agrária de amplo espectro, que perdurará até o século XV d.C. quando
chegaram os conquistadores normando-castelhanos baixo-medievais e a ilha entrou
plenamente na História; este último modelo corresponde ao que tradicionalmente se
denomina Cultura dos mahos66.
Ao longo desse processo de mudança cultural é possível distinguir diferentes
etapas e fases históricas (Quadro nº 1) com base quer nas análise das variações
produzidas nos processos económicos quer nos tipos e funções dos artefactos
quotidianos que permitiram que uma população de origem africana continental
ocupasse e explorasse um território atlântico insular67.
64 A mudança cultural gerou a aparição de caracteres particulares que marcaram diferenças entre as
ilhas do arquipélago, permitindo a aparição do que chamámos ‘endemismos culturais’ ATOCHE (2008),
ob. cit., p. 335, seguindo um processo cultural semelhante ao ‘modelo de mudança local’ proposto para
a colonização das ilhas do Pacífico (TERRELL, J. (1986), Prehistory in the Pacific Islands, Cambridge
University Press).
65 ATOCHE, P., MARTÍN, J. & RAMÍREZ, Mª.A. (1997), “Elementos fenicio-púnicos en la religión de los
mahos. Estudio de una placa procedente de Zonzamas (Teguise, Lanzarote)”, in Eres (Arqueología), 7,
Museo Arqueológico de Tenerife, pp. 7-38.
66 CABRERA, J.C., (1989), Los Majos. Población prehistórica de Lanzarote, Las Palmas de Gran Canaria,
Cabildo Insular de Lanzarote, Colección Rubicón, 1.
67 ATOCHE, P. (2009), “Estratigrafías, cronologías absolutas y periodización cultural de la Protohistoria de
Lanzarote”, in Zephyrus, LXIII (enero-junio), pp. 105-134.
35
4.2.1. Etapa da descoberta, colonização e fixação: a fase
fenício-púnica
Após o estabelecimento dos primeiros humanos, num período datado pelo C14
na passagem do II para o I milénio a.C., em Lanzarote inicia-se uma fase cultural ca-
racterizada por uma limitada ocupação do território insular através da implantação
de pequenos assentamentos em zonas que dispõem de elevados recursos agrários e
um excelente domínio visual do espaço à volta. As características ecológicas da ilha
Pluvialia68 e o modelo económico agrícola/pastoril da população que realizou a co-
lonização, determinaram a escolha de locais preferencialmente em zonas de pouca
altitude (entre os 100 e os 300 metros sobre o nível do mar), próximas ou direta-
mente em solos mais férteis (suelos bermejos), condicionantes que se davam sobre
tudo na área central e norte-ocidental da ilha, em espaços onde, com o passar do
tempo, se vão formando núcleos po-
pulacionais de maior expressão. Nes-
tes lugares levantaram-se inicialmente
pequenas estruturas habitacionais de
planta quadrangular, escavadas abaixo
do nível do chão exterior, do tipo da
estrutura Es1 exumada do sítio de
Buenavista (Teguise) (Figura 11), uma
técnica de construção que se mante-
rá e que é conhecida como ‘casa hon-
da’ (casa funda)69. O contexto material
associado a estas construções assinala
o desenvolvimento de atividades do-
mésticas de produção, transformação
e armazenagem de alimentos e outros
68 Primeiro nesónimo provavelmente referido a Lanzarote do qual se tem notícia, com origem na tradição
tartéssio-fenícia de carácter oral e anónima recolhida por Plutarco (História de Sertorio), SANTANA et alii.,
(2002), ob. cit. As diferentes denominações das ilhas Canárias são exemplos claros do que M. Martínez
denominou ‘polinimia’ ou ‘sinonimia’ que consistem em que uma mesma ilha recebe ao longo da sua
história diferentes denominações sucessivas ou simultâneas MARTÍNEZ (2010), ob. cit., p. 143.
69 Estruturas habitacionais soterradas contruídas com muros de pedra seca e acesso orientado a
sotavento, destinadas a obter proteção frente aos intensos e contínuos ventos dominantes.
Fig. 11 - Vista zenital da estrutura Es1. Buenavista
(Teguise)
(Fot.: P. Atoche)
4.2.1. Etapa da descoberta, colonização e fixação: a fase
fenício-púnica
36
produtos derivados de atividades agrárias, com um enxoval composto por recipien-
tes cerâmicos modelados à mão, de produção local, grande capacidade e formas de
tendência cilíndrica ou troncónica com base plana e pequenos apêndices, de média
ou pequena capacidade e formas de tendência calota esférica, semiesférica com gar-
galo, esférica, semioval com apêndices e base plana, além de micro-recipientes com
formas de tendência calota esférica, semiesférico, esférico ou ovoide. No geral esses
vasos não foram ornamentados aparecendo apenas algum desenho realizado com
traços curtos gravados ou impressos transversais à borda. Também foram elaboradas
estelas líticas com motivos gravados, um tipo de objeto que terá uma grande pre-
sença em etapas posteriores70. Junto destes artefactos de produção local, registam-
-se outros importados, representados por fragmentos de ânforas ou uma pequena
figura de terracota moldada e vários objetos elaborados em metal, cobre, bronze ou
ferro, todos eles procedentes do contacto da população insular com os navegadores
fenício-púnicos71, que deixaram outras marcas da sua presença na praia dos Pozos
(Rubicón), ponto de paragem marítima no sul de Lanzarote, onde era possível fazer
aguada porque havia uma cisterna (Poço da Cruz), que era protegida por uma re-
presentação da deusa Tanit (Figura 12)72. As últimas evidências materiais ficariam
contextualizadas pela assiduidade de navegadores púnicos no Atlântico, no sul de
Sala, no quadro de uma política comercial orientada para a obtenção de elementos
exóticos de alto valor, como o marfim, a madeira de cidreira, púrpura, ovos de aves-
truz ou couro de ovinos e caprinos73. O abandono de Mogador por volta de 525-519
70 Nessa fase chegaria às ilhas a chamada escrita líbico-berbere, fato para o qual foi proposta uma
cronologia do século VI a.C. FARRUJIA, A.J., PICHLER, W., RODRIGUE, A. & GARCÍA, S. (2010), “The
Libyco-Berber and Latino-Canarian Scripts and the Colonization of the Canary Islands”, in African
Archaeological Review, March 2010, p. 13.
71 A. Mederos garante que, em Mogador, para o século IV a.C. e a primeira metade do século III a.C. “... el
único dato cerámico que podría sugerir algún tipo de frecuentación cartaginesa es la mínima presencia del ánfora
Mañá D1a o 4.2.1.5 con cronología entre el 400/375-250 a.C. con posibles ejemplares en Emsá, Zilil y Buenavista
(Lanzarote), …”. MEDEROS, A. (2018), “Marruecos entre los siglos VI-II a.C. Sustrato fenicio, interacción
comercial con Gadir y presencia cartaginesa durante los Bárcidas”, in A. Chiara Fariselli e R. Secci, Cartagine
fuori da Cartagine: Mobilità nordafricana nel Mediterraneo centro-occidentale fra VIII e II sec. a.C., Atti del
Congresso Internazionale (Ravenna, 30 Novembre-1 Dicembre 2017), BYRSA, 33-34, 223-291, p. 279.
72 ATOCHE, P., MARTÍN, J., RAMÍREZ, Mª.A., GONZÁLEZ, R., ARCO, Mª.C. DEL, SANTANA, A. &
MENDIETA, C. (1999), “Pozos con cámara de factura antigua en Rubicón (Lanzarote)”, in VIII Jornadas
de Estudios sobre Lanzarote y Fuerteventura (Arrecife, 1997), II, pp. 365-419.
73 “Dos dataciones de la fase II-1 en el yacimiento de Buenavista (Lanzarote), 358 (200 AC) 117 DC
y 355 (195-173) 49 AC, sugieren que esta proyección cartaginesa durante la Segunda Guerra Púnica no
tuvo su límite en Mogador, para poder acceder a zonas más meridionales, donde se obtenía la Stramonita
haemastoma para la púrpura.” MEDEROS (2018), ob. cit., p. 280.
37
a.C. coincide com as datações obtidas no interior da estrutura Es1 de Buenavista,
da segunda metade do século VI a.C., circunstância que permite conjeturar que a
presença púnica em Lanzarote pode ter-se dado tanto por ter pontos de ancoragem
mais seguros e com melhores possibilidades de abastecimento das naus do que no
ilhéu de Mogador, como porque “... el área prioritaria de interés se había ampliado
hacia la costa del Sur de Marruecos, probablemente vinculado al comercio del oro”74.
4.2.2. Etapa de descoberta, colonização e fixação: a fase
romana
A presença de navegadores de origem mediterrânea em Invale75 manteve-se
entre os séculos II a.C. e IV-V d.C. por marinheiros romanizados que favoreceram a
implantação em Lanzarote de pequenas indústrias agrárias (El Bebedero, Tinache,
74 MEDEROS, A. & ESCRIBANO, G. (2017), “Comercio no presencial de oro y escalas en islas de fenicios
y cartagineses en la costa atlántica norteafricana”, in Rivista di Studi Fenici, XLIII-2015, 103-144, pp.
121-122.
75 Nesónimo latino referente a Lanzarote que recolhe Plínio o Velho na sua História Natural, que reflete
um atributo geomorfológico. Na mudança de Era, Invale fazia parte do arquipélago das Hespérides no
contexto da imagem difusa que naquele momento tinham das ilhas Canárias. SANTANA et alii. (2002),
ob. cit.
Fig. 12 - Representação da deusa fenício-púnica Tanit. Pozo de la Cruz (Rubicón) (Fot.: P. Atoche)
4.2.2. Etapa de descoberta, colonização e fixação: a fase romana
38
… ) onde se sacrificava o gado ovino e caprino para produzir carnes salgadas, peles,
couros76…
A intensa atividade pecuária, que manteve ativas estas indústrias, contribuiu
para desmantelar a cobertura vegetal e os solos, transformando um ecossistema que
era estável até aquele momento. Nessa fase, a população insular manteve o modelo
anterior de ocupação do território, baseado em núcleos reduzidos e dispersos,
integrados por pequenas estruturas habitacionais quadrangulares soterradas por
debaixo do nível exterior do chão, do tipo das estruturas Es2 e Es3 exumadas no sítios
de Buenavista o El Bebedero (Teguise). Os enxovais domésticos eram compostos por
recipientes cerâmicos de cozinha de produção local, modelados à mão, de pequena
ou média capacidade e formas simples, de calota esférica, semiesférica, esférico
com gargalo curto ou cilíndrico e base plana, esporadicamente ornamentados com
motivos impressos e recipientes altos com um ligeiro perfil em S; também há vasos
de maior capacidade, forma cilíndrica ou troncónica invertida e base plana, com as
bordas decoradas com traços gravados ou impressos ou motivos lineares no corpo.
O enxoval completa-se com a presença de diferentes tipos de ânforas, artefactos
metálicos de cobre, bronze ou ferro, missangas de vidro e alabastro com motivos
pintados com tinta metaloácida, figuras de terracota,…, elementos todos diretamente
relacionados com a presença na ilha de navegadores mediterrâneos romanizados.
O ponto de paragem marítima localizado na praia dos Pozos (Yaiza) experimentou
um aumento das infraestruturas hidráulicas através da construção de uma cisterna
de grande capacidade, atualmente denominada ‘Pozo de San Marcial’ (Figura 13),
levantada com as mesmas técnicas arquitetónicas usadas nas cisternas das indústrias
romanas de salgação, garum ou púrpura localizadas na costa norte-ocidental africana
restabelecidas ou levantadas ex novo por Iuba II a partir do último terço do século I
a.C. Desta maneira é evidente a contínua reutilização deste ponto ao longo de um
grande espaço temporal e a sua mais do que provável contribuição para a atividade
desenvolvida próximo do local de fabrico de púrpura romana exumado no ilhéu
76 Foi proposto que no reinado do rei mauritano Iuba II ter-se-ia produzido uma segunda onda de
imigração para as Ilhas Canárias cujo destino principal seria Lanzarote e Fuerteventura, com base na
possibilidade de que as inscrições denominadas Ilhas Latino-canárias teriam chegado às ilhas naquela
época: “In this era, a second wave of immigration to the Canary Islands took place. Berber people who were
accustomed to Roman culture and script brought a second type of inscriptions to the islands which differ
from the archaic ones…” FARRUJIA et alii. (2010), ob.. cit., p. 16.
39
de Lobos77, assentamento dedicado ao aproveitamento de determinados recursos
marinhos, em especial os pesqueiros e tintórios, que se somaram aos primeiros sítios
arqueológicos do mundo romano localizados em terra (El Bebedero e Buenavista) e
que favoreceram a elaboração de hipóteses sobre a prolongada presença de gentes
romanas e/ou romanizadas nas ilhas num marco cronológico bem delimitado pelo
C14 entre os séculos I a.C. e IV d.C.78.
4.2.3. Etapa de abandono e isolamento: a fase das culturas
insulares canárias
A crise político-económica que afetou o Império Romano no século III d.C.
não parece ter sido um fenómeno alheio às Canárias, constituindo a razão da gradual
77 ARCO, Mª.C. del, ARCO, Mª.M. del, BENITO, C. & ROSARIO, Mª.C., Eds. (2016), Un taller romano de
púrpura en los límites de la Ecúmene. Lobos 1 (Fuerteventura, Islas Canarias). Primeros resultados, Col.
CanArqM, 6, Museo Arqueológico de Tenerife, OAMC, Cabildo de Tenerife.
78 ATOCHE et alii. (1995), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1996), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1999), ob. cit.;
ATOCHE (2006), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2011b), Ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2017b), ob. cit.
Fig. 13 - Poço de San Marcial. (Rubicón) (Fot.: P. Atoche)
4.2.3. Etapa de abandono e isolamento: a fase das culturas
insulares canárias
40
ausência de navegadores mediterrâneos e do progressivo isolamento das ilhas, em úl-
tima instância responsável pelo facto de, a partir do século V d.C., as formações sociais
insulares entrarem numa nova fase que acarretou o desenvolvimento de estratégias
sociais e económicas marcadas pela síndrome da insularidade. Em Tyterogaka79 essa
etapa supôs a paralisação da atividade e o abandono das indústrias agrárias, dirigindo
o subsistema económico de um modelo agrário orientado para o exterior por outro
modelo autárquico baseado numa economia agrária de amplo espectro. A nova fase
corresponde à chamada ‘Cultura dos mahos’, altura em que Lanzarote é amplamente
ocupada80, constituindo a área central da ilha a zona mais intensamente habitada, com
núcleos urbanos de diferentes tamanhos e importância (Acatife, Zonzamas, Ajei, Hai-
naguadez,...), levantados sobre pequenas elevações naturais de onde se avistam am-
plos espaços territoriais integrados por casas profundas e algumas ‘grutas de mahos‘
(Figura 14) do tipo escavado por I. Dug em Zonzamas. Esses centros canalizaram as
principais atividades económicas da população insular, articulando-se hierarquica-
79 Nesónimo de Lanzarote registados pelos conquistadores normando-castelhanos no início do século
XV d.C. PICO et alii. (2003 [1419]), ob. cit., pp. 142 e 348.
80 A ilha de Lanzarote “... tiene gran número de aldeas y de buenas casas.”, IDEM, p. 142.
Fig. 14 - Cueva del Majo de Tiagua (Teguise) (Fot.: P. Atoche)
41
mente com base em fatores políticos, económicos e religiosos à volta de dois núcleos,
Acatife e Zonzamas. Pelo contrário, áreas como Malpaís de la Corona o El Jable, no
norte, ou as extensas planícies de Rubicón, no sul, apresentam uma ocupação mais
limitada, com habitats dispersos integrados por pequenas cabanas ou refúgios tempo-
rais ligados ao desenvolvimento de atividades pastoris estacionais. Praticava-se uma
agricultura de sequeiro, não extensiva, com técnicas pouco desenvolvidas e níveis de
produção baixos, centrada, pelo menos, num cereal (cevada). O pastoreio complemen-
tou a atividade anterior, ajustando-se a um desenvolvimento horizontal, ao contrário
do que acontecia noutras ilhas do arquipélago com maiores altitudes e diferentes ní-
veis de vegetação, apresentando uma pecuária constituída por cabras, ovelhas e por-
cos, tendo os pastores a ajuda de cães. A dieta alimentar era completada com produtos
derivados de atividades como a caça, a pesca ou a colheita de produtos terrestres e
marinhos.
Nesta fase os enxovais domésticos sofreram mudanças notáveis; não há
artefactos importados de origem mediterrânea, são característicos os recipientes
cerâmicos modelados à mão com diferentes capacidades e formas de tendência
esférica, semiesférica, de calota esférica, ovoide, com assas ou vertedores e base plana
(tojios), no geral com as superfícies ornamentadas com motivos gravados, impresso,
em relevo, perfurações, entre os quais se repetem determinados desenhos que podem
ter sido marcas de identidade familiar ou de grupo pelo processo de insularização da
cultura propiciado pelo isolamento exterior. A carência de artefactos metálicos foi
compensada pela elaboração de utensílios líticos esculpidos em rochas vulcânicas
e elementos líticos polidos, entre os quais brunidores, moinhos de mão giratórios
circulares, tampas circulares de arenito e um grande número de estelas polidas, em
muitos dos casos com motivos gravados, em baixo-relevo ou abrasionados. No fim da
fase assiste-se de novo à introdução na ilha de recipientes cerâmicos modelados na
roda, com superfícies vidradas, procedentes dos ambientes culturais baixo medievais
do sul da península ibérica, norte de África, ...
42
Quadro 1 – Proposta de fases para as culturas proto-históricas canárias81
ETAPAS DO
POVOAMENTO
HUMANO
FASES CULTURAIS
VARIÁVEIS
QUE EXPLICAM
A MUDANÇA
CULTURAL
MOTOR DA
MUDANÇA
ILHAS COLONIZADAS
OU POVOADAS
1ª ETAPA
DESCOBERTA,
COLONIZAZAÇÃO E
FIXAÇÃO
(circa ss. X ANE-IV
DNE)
FASE FENÍCIA
(circa ss. X-VI ANE)
FASE PÚNICA
(circa ss. VI-II ANE)
EXPANSÃO
COMERCIAL
ATLÂNTICA
Integração económica
das ilhas nos circuitos
mediterrâneos
como produtoras de
matérias primas
(Cartago unifica a
Fenícia ocidental)
Povoadas: Lanzarote,
Tenerife e G. Canaria
(?)
Colonizadas:
La Palma e
Fuerteventura (?)
HIATUS (circa ss. II-I ANE)
CRISE DO MODELO PÚNICO DE COLONIZAÇÃO
FASE ROMANA
(circa ss. I ANE-IV
DNE)
INTENSIFICAÇÃO
ECONÓMICA
NO ATLÂNTICO
AFRICANO
Expansão económica
na Mauritânia
Tingitana
Intensificação
económica:
integração da
produção agrário-
pesqueira
Consolida-se a
presença humana nas
ilhas povoadas e dá-se
a fixação definitiva
de população nas
ilhas que até o
momento estavam só
colonizadas
2ª ETAPA
ABANDONO
(circa ss. IV-V DNE)
FASE CANÁRIA:
CONSTITUIÇÃO E
DESENVOLVIMENTO
DAS CULTURAS
CANÁRIAS
(circa ss. IV-XIII DNE)
FIM DA
DEPENDÊNCIA
ECONÓMICA
EXTERNA E
DESENVOLVIMENTO
DE PROCESSOS
ECONÓMICOS
E SOCIAIS
AUTÁRQUICOS
Crise político-
económica das
formações sociais
paleocanárias
Povoadas: todas
3ª ETAPA
ISOLAMENTO
(circa ss. V-XIII DNE)
Readaptação e
GLYHUVLˋFD©¥RGDV
formações sociais
paleocanárias
4ª ETAPA
ACULTURAÇÃO
(circa ss. XIV y XV
DNE)
FASE DE DESTRUIÇÃO
DAS CULTURAS
CANÁRIAS
EXPANSÃO
COMERCIAL
ATLÂNTICA
Crise generalizada
das formações sociais
paleocanárias
Povoadas: todas
4.2.4. Etapa de aculturação
Durante os séculos XIII e XIV d.C. Lanzarote volta a ser frequentada por
navegadores europeus no contexto do denominado ‘redescubrimiento’82, fenómeno
colonizador que preparou a conquista normando-castelhana das ilhas durante o século
XV e com ela a definitiva destruição das culturas proto-históricas canárias.
81 Corrigido de ATOCHE (2008), ob. cit.
82 SERRA, E. (1961), “El redescubrimiento de las Islas Canarias en el siglo XIV”, in Revista de Historia
Canaria, 135-136, Universidad de La Laguna, pp. 219-234. MORALES, F. (1971), “Los descubrimientos
en los siglos XIV y XV y los archipiélagos atlánticos”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 17, pp. 429-465.
4.2.4. Etapa de aculturação
43
4.3. Povoamento humano e mtDNA
A procura da origem étnica das populações proto-históricas canárias foi o tema
central da investigação arqueológica desenvolvida nas ilhas desde o seu início no século
XIX, quando o estudo dos restos humanos guanches esteve intensamente relacionado
com o interesse que uma jovem ciência antropológica mostrava pela procura das
origens do homem de Cro-Magnon. Inicialmente pretendeu-se dar uma resposta à
questão da origem procurando as denominadas fontes etnohistóricas, que serviram
de apoio para estender à totalidade do arquipélago canário determinados caracteres
bioantropológicos ou culturais dos canários proto-históricos só constatados em alguma
das ilhas centrais. O peso desta tradição, determinada em manter como certas e gerais
para todo o período proto-histórico as informações fornecidas tanto por cronistas
da conquista tardo-medieval como por estudiosos posteriores, tem vindo a pesar na
investigação, derivando a investigação para as semelhanças culturais ou étnicas para
com os atuais povos Berberes do vizinho continente africano. Esta situação acabou por
exercer a sua influência nas mais recentes investigações genéticas, em grande medida
apoiadas em hipóteses apriorísticas que tendem a concentrar a procura dos paralelos
genéticos das populações paleocanárias quase exclusivamente entre os modernos
berberes estabelecidos no extremo norte-ocidental do continente africano.
As análises genéticas feitas às populações proto-históricas canárias
experimentaram um relativo aumento a partir do fim da década dos anos 90’ do passado
século XX; apesar disto, a sua utilidade atual do ponto de vista histórico é ainda
limitada, pois sofre de deficiências notáveis devidas ao tipo de amostras arqueológicas
com as quais se trabalhou e ao escasso recurso que se fez dos seus contextos culturais,
o que tem implicado uma desconexão inconveniente entre a Análise de mtDNA e os
contextos arqueológicos. Como exemplo do exposto, pode ser citado um dos maiores
estudos genéticos realizados até ao presente nas ilhas83, o qual garante que as amostras
83 No estudo foram analisadas 131 amostras procedentes de quatro ilhas (Tenerife, Gran Canaria, La
Gomera e El Hierro) e de um total de 129 indivíduos, não há na prova restos antropológicos de La Palma,
Fuerteventura ou Lanzarote, ilha que, como vimos ao longo deste trabalho, forneceu as datações mais
antigas sobre o povoamento do arquipélago, um dado que, sem dúvida, deveria ser tido em conta se
o que é pretendido é determinar a origem genética da primigénia população canária. MACA-MEYER,
N. (2002), Composición genética de poblaciones históricas y prehistóricas humanas de las Islas Canarias,
Universidad de La Laguna, Tesis Doctoral. MACA-MEYER, N., ARNAY, M., RANDO, J.C., FLORES, C.,
GONZÁLEZ, A.M., CABRERA, V.M. & LARRUGA, J.M. (2004), “Ancient mtDNA análisis and the origin of
the Guanches”, in European Journal of Human Genetics, 12, pp. 155-162.
4.3. Povoamento humano e mtDNA
44
estudadas possuíam à volta de dois mil anos de antiguidade (sic), tendo obtido dados
de mtDNA apenas em 55% do total de amostras. Sem discutir as bases científicas que
permitem os autores da análise afirmar a antiguidade das amostras, a realidade é que, ao
ser verdade, descobríramos que se estudou uma amostra (representativa?) da população,
que se encontrava no arquipélago depois de, aproximadamente, um milênio desde que
começou o processo colonizador, o que invalida os resultados se pretendia estabelecer
as características étnicas dos primeiros povoadores. No mesmo trabalho também se
garante ter localizado uma grande diversidade étnica na amostra analisada, semelhante
àquela que se encontra atualmente na população canária ou na do continente africano;
essas analogias são interpretadas como o resultado de várias levas migratórias84,
afirmação que pressupõe que cada uma destas contribuiriam para as Canárias com
grupos humanos etnicamente bem diferenciados, suposição que entra em contradição
com a situação étnica que existe na área geográfica de onde se pensa que procedeu o
povoamento e onde a miscigenação étnica é um claro sinal de identidade desde, pelo
menos, o Epipaleolítico85. Por outro lado, estes estudos encontram grandes dificuldades
em conseguir localizar, com alguma segurança, as origens geográficas dos colonizadores
que chegaram em diferentes levas às Canárias, tendo sido assinalado como populações
etnicamente mais próximas os berberes marroquinos e os berberes do noroeste
africano86, embora se reconheça que os marcadores berberes também estão presentes na
península ibérica87. Isto reforçaria o que assinalou N. Maca-Meyer88 num trabalho prévio,
no qual garantia que mais de 80% das linhagens determinadas numa ampla amostra
indígena canária correspondiam a haplogrupos europeus muito estendidos pelo norte
de África e Próximo Oriente, sendo esta a sua mais provável área inicial de origem89,
situando a procedência última dessas linhagens no norte de África. Em definitivo, essa
84 MACA-MEYER et alii. (2004), ob. cit., e mais recentemente FREGEL, R., ORDÓÑEZ, A.C., SANTANA,
J., CABRERA, V.M., VELASCO, J., ALBERTO, V., MORENO, M.A., DELGADO, T., RODRÍGUEZ, A.,
HERNÁNDEZ, J.C., PAIS, J., GONZÁLEZ, R., LORENZO, J.M., FLORES, C., CRUZ, M.C., ÁLVAREZ, N.,
SHAPIRO, B., ARNAY, M. & BUSTAMANTE, C.D. (2019). “Mitogenomes illuminate the origin and
migration patterns of the indigenous people of the Canary Islands”, in PLOS ONE 14(3), e0209125.
85 Pode ser consultado, entre outros, o trabalho, já clássico, de CHAMLA, M.-C. (1978), “Le peuplement
de l’Afrique du nord de l’épipaléolithique à l’époque actuelle”, in L’Antropologie, 82 (nº 3), pp. 385-430.
86 MACA-MEYER et alii. (2004), ob. cit., p. 161.
87 MACA-MEYER et alii. (2004), ob. cit., p. 155.
88 MACA-MEYER (2002), ob. cit.
89 MACA-MEYER (2002), ob. cit., p. 81.
45
investigação garante que quatro linhagens (14% do total) se encontram exclusivamente
no Próximo Oriente e duas (6’9%) na Europa90, se bem que não proporciona nenhum
tipo de explicação para a maneira como os colonizadores proto-históricos africanos
puderam obter o necessário conhecimento da existência das Ilhas Canárias nem como
conseguiram ter chegado a elas em várias levas se eram pessoas que desconheciam a
arte da navegação oceânica.
R. Fregel e colaboradores91, num estudo genético centrado na população proto-
histórica de La Palma, garantem que a origem berbere norte-africana foi comprovada a
nível molecular pelo achado nas Canárias de marcadores específicos norte-africanos92.
Efetivamente, os marcadores do sub-haplogrupo U6 têm sido considerados de grande
interesse por ter sido detetado um subgrupo do mesmo que é considerado específico das
ilhas, além do possível nexo de união entre estas e o continente africano. As linhagens
canárias U6b1 e U6c1 não foram localizadas nos territórios atlânticos do noroeste
africano, enquanto que a linhagem U6c1 foi detetada em populações berberes Sened
de Tunísia, factos que permitiram colocar a hipótese de que a região de origem dos
povoadores paleocanários estaria na Tunísia e Argélia e não em Marrocos e Mauritânia.
A distribuição dos haplotipos mitocondriais das populações atuais nas Canárias
parece ser compatível com uma só migração, embora a do cromossoma Y se explicaria
melhor supondo a existência de, pelo menos, duas migrações sucessivas, dicotomia
que só poderá ser resolvida quando estiver disponível as análises de restos indígenas
de todas as ilhas adequadamente datados em momentos próximos aos inícios do
povoamento93. Por outro lado, também garante a existência de uma significativa parte
90 MACA-MEYER (2002), ob. cit., p. 84.
91 FREGEL, R., PESTANO, J., ARNAY, M., CABRERA, V.M., LARRUGA, J.M. & GONZÁLEZ, A.M. (2009),
“The maternal aborigine colonization of La Palma (Canary Islands)”, in European Journal of Human
Genetics, 17, pp. 1.314-1.324.
92 FREGEL et alii. (2009), ob. cit., p. 1.314.
93 As levas de povoamento foram uma explicação para a maneira como se produziu a colonização das
Canárias desde a primeira metade do século XX, num quadro teórico que também tentava resolver a
questão do número mínimo de povoadores necessários para que a colonização tivesse sucesso e não
existissem fenómenos de endogamia, uma questão à qual C. Rodríguez e R. González responderam
garantindo que “No está claro «cuantos» deberían constituir el número mínimo de individuos para
garantizar la supervivencia del grupo inicial y su potencial multiplicación futura. Nos inclinamos a pensar
que este número fluctuaría entre los 20 y los 50 en sociedades sedentarias y con cierto nivel tecnológico,
repartidos en parejas heterosexuales. Cifras inferiores a esas se nos antojan como inviables para poder
garantizar el asentamiento y supervivencia de la población”. RODRÍGUEZ & GONZÁLEZ (2003), ob. cit., p.
131. Em última análise, consideram que a situação seria muito mais positiva se houvesse contribuições
populacionais contínuas, o que a nosso ver implica a manutenção contínua das relações com os locais
46
de linhagens aborígenes, contabilizado em 15%, com marcadores específicos da zona
europeia mediterrânea ou do Próximo Oriente94. Todos estes dados levam a garantir
que as populações paleocanárias adaptaram-se a um modelo de povoamento insular
com frequentes migrações entre ilhas95, hipótese pouco provável aplicada a umas
populações que não conheciam a navegação, exceto se se considerar a possibilidade
de que essas migrações, na realidade, foram contactos mais ou menos permanentes
no tempo, mantidos por intermédio daqueles navegadores mediterrâneos de origem
fenício-púnica primeiro, e romana mais tarde, que durante mais de um milénio
cruzaram as águas atlânticas e canárias criando assentamentos e indústrias. De facto,
R. Fregel e colaboradores96 afirmaram recentemente que no haplogrupo U5, atestado
na população púnica de Cartago, possui uma notável presença nas populações proto-
históricas das Canárias orientais, incluída Lanzarote, ilha onde propomos a existência
de numerosas influências culturais feno-púnicas97. Da mesma maneira, os citados
investigadores destacaram o achado de linhagens (H1cf, J2a2d e T2c1d3) que só
estariam presentes, além das Canárias, em África norte-central, circunstância que do
nosso ponto de vista confirma o apontado por Mª.D. Garralda98 há mais de três décadas
relativamente às grandes semelhanças anatómicas que possuíam os indivíduos que
estudou em Lanzarote com outros originários das necrópoles proto-históricas e
púnicas de Argélia.
Para C. Flores e colaboradores99, a distribuição geográfica atual pelas Ilhas
Canárias do marcador mitocondrial U6 proporciona informação adicional relacionada
com a maneira em que as ilhas foram colonizadas, devido a que a diversidade e o
número de sequências serem superiores em Lanzarote e Fuerteventura, as ilhas mais
próximas do continente africano, enquanto que se reduzem gradualmente quando nos
de onde originou o processo de colonização e invalida a proposta de invasão a partir de ondas sucessivas
de povoamento.
94 FREGEL, R. et alii. (2009), ob. cit., p. 1.322.
95 FREGEL, R. et alii. (2009), ob. cit., p. 1.314.
96 FREGEL, R. et alii. (2019), ob. cit., p. 15.
97 Cf. p.e. ATOCHE et alii. (1997), ob. cit.; ATOCHE et alii. (1999), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2011b),
ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2019), ob. cit.
98 GARRALDA, Mª.D. (1985), “Algunas notas sobre la población prehispánica de Lanzarote (Islas
Canarias)”, in IV Congreso Español de Antropología Biológica, 445-452, p. 451.
99 FLORES, C., LARRUGA, J.M., GONZÁLEZ, A.M., HERNÁNDEZ, M., PINTO, F.M. & CABRERA, V.M.
(2001), “The Origin of the Canary Island Aborigines and Their Contribution to the Modern Population:
A Molecular Genetics Perspective”, in Current Anthropology, 42 (nº 5. December 2001), 749-755, p. 752.
47
movimentamos para o oeste, facto que apontaria um processo inicial de colonização
de acordo com o modelo stepping-stone, que começaria nas ilhas mais orientais em
direção às mais ocidentais.
Em definitivo, os dados genéticos disponíveis, reconhecendo as razoáveis
dúvidas que levantam por não corresponderem às populações colonizadoras
cronologicamente mais antigas ou carecerem em muitos casos de relação direta
com um contexto cultural, adaptam-se a um grupo humano heterogéneo, com uma
origem geográfica e cultural semelhante, que atingiria as ilhas em embarcações
originárias de portos localizados no Círculo de Cartago, no Círculo do Estreito ou nos
dois simultaneamente. Nesta linha de argumento, se olharmos para Lanzarote, a
ilha canária que contribuiu para as cronologias mais antigas relacionadas com o
povoamento e a cultura fenício-púnica, embora com uma estranha escassez de restos
humanos proto-históricos100, observamos que os restos humanos recuperados até
hoje pertencem a indivíduos que podem ser datados num momento avançado da etapa
proto-histórica, posterior ao século V d.C. com base nos contextos arqueológicos
que os acompanhavam como enxoval funerário. Não são, portanto, uma amostra
representativa nem procedentes dos primeiros momentos da colonização insular, mas
Mª.D. Garralda101 apontou naqueles que correspondiam a uma população dolicocránea
de tipo mediterrâneo norte-africano, pertencente ao nível morfotipológico às
variedades mediterrânea robusta e grácil norte-africanas, em algum caso com rasgos
mastoideo atenuados, de acusada robustez, com a presença de linhas de inserção
muscular muito marcadas, e elevada altura, superior à média das populações
paleocanárias. Essas características biométricas assemelhá-los-iam a indivíduos
procedentes das necrópoles proto-históricas e púnicas de Argélia, considerando,
a referida investigadora, que as pequenas diferenças observadas relativamente à
população norte-africana teriam tido a sua origem no isolamento produzido num
espaço reduzido com as características de Lanzarote, o qual agiria como mecanismo
microevolutivo sobre o património genético dessas populações102. Este último facto,
100 ATOCHE, P., RAMÍREZ, Mª.A., RODRÍGUEZ, C., RODRÍGUEZ, Mª.D. & PÉREZ, S. (2008), “De
antropología, ritos y creencias en la Protohistoria de Lanzarote (Islas Canarias)”, in P. Atoche, C.
Rodríguez & Mª.A. Ramírez (Eds.), Mummies and Science. World Mummies Research. Proceedings of the
VI World Congress on Mummy Studies, pp. 165-180.
101 GARRALDA (1985), ob. cit.
102 GARRALDA (1985), ob. cit., p. 451.
48
junto com a presença de uma linhagem canária específica, parece estar indicando a
possibilidade da existência entre as populações paleocanárias de alterações genéticas
originadas pela síndrome da insularidade, facto que está de acordo com o assunto
que estamos a tratar neste trabalho103. Mas ainda está patente que, um pouco mais
de uma década antes do começo dos estudos genéticos nas Canárias, a Antropologia
biológica apontava já a área argelino-tunesina como lugar provável de origem de
uma das populações insulares paleocanárias. Uma área geográfica à qual, em base a
informação de carácter epigráfico, também apontou R.A. Springer, para quem “... los
alfabetos con mayores similitudes a los de las islas Canarias [se encuentran] en el Norte
de Túnez y Noreste de Argelia”104, mas reconhece que tanto no norte de África como
no Sara não se observa nenhum alfabeto que seja idêntico a algum dos canários105,
circunstância que poderia estar assinalando a presença nas ilhas de outra adaptação
cultural produzida pelo factor insular, na linha de argumentação do fenómeno
central que estamos a abordar neste trabalho. Essa mesma zona geográfica também
foi apontada por F. López Pardo y J. Suárez106 quando apontaram as populações líbias
fixadas no sul de Tunísia como sendo as protagonistas dos movimentos realizados
por Cartago para diferentes zonas do Mediterrâneo ocidental e do Atlântico a partir
de fins do século VI a.C., uma data próxima daquela que consideramos nas Canárias
como possível para o início da colonização humana, e alguns povos originários do
interior do continente caracterizadas culturalmente por não praticar a navegação
oceânica.
Em conclusão, perfila-se a hipótese que localiza a cronologia, a origem étnica
e o lugar de origem geográfica dos primeiros povoadores do arquipélago canário
nalgum momento na passagem do II para o I milénio a.C., entre populações líbias e/
103 C. Rodríguez e R. González destacaram que, em populações isoladas, existem consequências genéticas
decorrentes do efeito fundador, como a deriva genética, que definem como“... fluctuación al azar de las
frecuencias genéticas en una población de tamaño finito, es decir efectos estocásticos o no previsibles, y que
está muy ligada en su intensidad al tamaño poblacional (…). La consecuencia del efecto fundador será la
rápida divergencia genética entre la población de una isla (o de cualquier otra población aislada) y la que le
dio origen en el continente o en otra isla produciendo una frecuencia de aparición de alelos raros mayor que
la de la población original, algunos de los cuales pueden dar origen a patologías congénitas”. RODRÍGUEZ
& GONZÁLEZ (2003), ob. cit., p. 118.
104 SPRINGER, R.A. (2001), Origen y uso de la escritura líbico-bereber en Canarias, Arafo, CCPC, pp. 56 e
167.
105 SPRINGER (2001), ob. cit., 161.
106 LÓPEZ PARDO, F. & SUÁREZ, J. (2002), “Traslados de población entre el norte de África y el sur de la
Península Ibérica en los contextos coloniales fenicio y púnico”, in Gerión, 20 (1), pp. 113-152.
49
ou líbio-fenícias, originárias de uma área geográfica do interior do continente africano
localizada nas atuais Tunísia e Argélia oriental107.
5. Considerações finais
Para a ciência arqueológica não é uma tarefa simples tentar determinar, nas
populações pré-históricas ou proto-históricas, quais foram as alterações culturais que
podem ter exigido a sua fixação numa ilha. Também não é fácil tentar determinar se as
transformações que se produziram na paisagem insular depois dessa fixação tiveram
a sua origem em causas de carácter antrópico, natural ou ambas simultaneamente.
Mas é inegável que o homem e a sua cultura tendem a transformar o meio natural
no qual se desenvolvem como resultado do processo de produção de artefactos e a
necessidade de conseguir alimentos, e, que o passar do tempo, atua no sentido de
aumentar essas transformações até ao ponto em que é possível medir o fenómeno
diacronicamente e delimitá-lo através de modelos analíticos. As ilhas são espaços
frágeis, sistemas muito sensíveis às atividades humanas, capazes de transformar
os seus ecossistemas e de destruir a flora e fauna que albergam. Nos últimos anos,
pré-historiadores e historiadores analisaram os efeitos da antropização em ilhas
demonstrando que as sociedades humanas induzem profundas alterações desde o
instante do seu estabelecimento e percebendo melhor os mecanismos que regem as
interações entre aquelas e os ecossistemas insulares. A chegada do ser humano a uma
ilha amplifica as alterações na fauna e flora com a introdução de espécies domésticas
e de algumas silvestres, de tal maneira que a história da natureza e a história do
homem misturam-se numa dinâmica marcada pela permanente fragilidade das ilhas.
Nas paisagens insulares canárias, inicialmente desprovidas de grandes herbívoros,
os efeitos da atividade humana constituíram um autêntico trauma para a cobertura
vegetal, que se manifesta com inusitada virulência pela redução inicial das formações
vegetais e, até, a sua erradicação definitiva, como parecem apontar tanto Lanzarote
como Fuerteventura.
107 BALBÍN, R. de, BUENO, P., GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C. del (1995), “Datos sobre la colonización
púnica de las Islas Canarias”, in Eres (Arqueología), 6 (1), Museo Arqueológico de Tenerife, pp.
7-28, BALBÍN, R. de, BUENO, P., GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C. del (2000), “Una propuesta sobre la
colonización púnica de las Islas Canarias”, in Mª.E. Aubet & M. Bathélemy (Eds.), Actas del IV Congreso
Internacional sobre Estudios Fenicios y Púnicos, II, pp. 737-744.
5. Considerações finais
50
Em muitos dos estudos desenvolvidos nas Canárias orientados para a
reconstrução histórica da etapa proto-histórica percebe-se como, a partir de um modelo
teórico hiperdifusionista, se tende explicar que qualquer alteração observada, tanto nos
contextos materiais como nos marcadores genéticos das populações insulares, como
resultado de sucessivas ondas de povoamento, atribuindo às populações insulares
canárias um papel passivo no seu devir histórico. Esta proposta de modelo colonizador
fundamenta-se ao considerar que existiram fenómenos pontuais de contacto e difusão
cultural com o norte de África, no âmbito de grupos étnicos berberes desconhecedores
da navegação, e em negar qualquer possibilidade de que esse tipo de contato pudesse
ter sido produzido com outras culturas do Mediterrâneo que eram conhecedoras de
navegação108, como a fenício-púnica ou romana presentes no norte de África desde
finais do II milénio a.C. Este tipo de análise ignora, entre outros aspetos culturais, que
o arquipélago canário tem um carácter oceânico que teria exigido aos seus potenciais
colonizadores proto-históricos praticar a navegação oceânica109 ou que, nas últimas três
décadas, a atividade arqueológica tivesse recuperado numerosos artefactos de origem
cultural mediterrânea que testemunhassem a presença de navegadores feno-púnicos
e romanos nas ilhas durante, pelo menos, um milénio110. Por outro lado, tampouco
108 Cf. p.e. DELGADO, J.A. (2012), “Canarias en la Antigüedad como problema histórico”, in Tabona, 19,
pp. 9-23.
109 Neste sentido são esclarecedoras as diferenças que A. Vieira estabeleceu entre os diferentes tipos de
ilhas que identifica no Atlântico, afirmando que “A posição que cada uma assumiu conduziu a diferente
protagonismo histórico. As fluviais e continentais evidenciaram-se pela dependência ao espaço continental
vizinho, enquanto as oceânicas ficaram entregues a si próprias”. VIEIRA (2004), ob. cit., p. 221.
110 Cf. p.e. ATOCHE et alii. (1995), ob. cit.; GONZÁLEZ et alii. (1998), ob. cit.; ATOCHE & PAZ (1999), ob.
cit.; BALBÍN et alii. (2000), ob. cit.; LÓPEZ PARDO, F. (2000), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2001), ob. cit.;
ATOCHE & RAMÍREZ (2011b), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2017), ob. cit.; ATOCHE & RAMÍREZ (2019),
ob. cit.; MEDEROS, A. & ESCRIBANO, G. (2002), Fenicios, púnicos y romanos. Descubrimiento y poblamiento
de las Islas Canarias, Madrid, Dirección General de Patrimonio Histórico, Estudios Prehispánicos, p.
11. MEDEROS, A. & ESCRIBANO, G. (2008), “Pesquerías púnico-gaditanas y romano republicanas de
túnidos: el Mar de Calmas de las Islas Canarias (300-20 a.C.)”, in R. González, F. López y V. Peña (Eds.),
Los Fenicios y el Atlántico, Madrid, Centro de Estudios Fenicios y Púnicos, IV Coloquio del CEFYP, pp.
345-378. SANTANA et alii. (2002), ob. cit.; GONZÁLEZ, R. (2004), “Los Guanches: una cultura atlántica”,
in Fortunatae Insulae, Canarias y el Mediterráneo, Museo Arqueológico de Tenerife, OAMC, Cabildo de
Tenerife-Caja Canarias, pp. 134-146. GONZÁLEZ, R. (2005), “Nueva representación de Tanit en Canarias”,
in Eres (Noticias Arqueológicas), 13, Museo Arqueológico de Tenerife, pp. 137-140. SANTANA & ARCOS
(2006), ob. cit.; SANTANA & ARCOS (2007), ob. cit.; ATOCHE (2008), ob. cit.; GONZÁLEZ, R. & ARCO, Mª.C.
DEL (2007), Los enamorados de la Osa Menor. Navegación y pesca en la Protohistoria de Canarias, Canarias
Arqueológica, Monografías, 1, Museo Arqueológico de Tenerife, OAMC, Cabildo de Tenerife. GONZÁLEZ,
R. & ARCO, Mª.C. DEL (2009), “Navegaciones exploratorias en Canarias a finales del II milenio a.C. e
inicios del primero. El cordón litoral de La Graciosa (Lanzarote)”, in Canarias Arqueológica (Arqueología/
Bioantropología), 17 (anejo I), pp. 9-80. ARCO et alii. (2016), ob. cit.
51
foi considerado que as populações proto-históricas canárias não desenvolveram uma
cultura marítima, devido, provavelmente, ao desconhecimento da tecnologia que lhes
teria permitido construir embarcações; em ilhas, essa limitação costuma provocar um
tipo de autoisolamento que conduz ao empobrecimento cultural111, circunstância que
não parece concordar com o observado, por exemplo, em Gran Canária, cuja população
proto-histórica chegou a um nível de desenvolvimento cultural em questões tais
como o urbanismo ou as práticas agrícolas que surpreendeu os conquistadores
normando-castelhanos do século XV, nem com o facto de que as sociedades proto-
históricas canárias, numa perspetiva demográfica, tivessem desenvolvido um sistema
de população fechado, onde o equilíbrio população/recursos mantivera-se por
mecanismos internos como o controlo da natalidade ou a presença entre elas de uma
linhagem U6cl comum, derivado do sub-haplogrupo U6. Em especial, isto contradiz
a hipótese que defende um suposto isolamento cultural e genético das populações
fixadas nas diferentes ilhas do arquipélago.
Nas Ilhas Canárias, os efeitos das atividades humanas manifestaram-se
de uma maneira particular, gerando, primeiro, a redução severa das formações
arbustivas para, mais tarde, tender a erradicação das florestas, que seriam cortadas
progressivamente e substituídas por táxones com um desenvolvimento menor. Em
Lanzarote, as evidências da intervenção humana na transformação da paisagem
ao longo dos últimos três milénios procedem de análises polínicos e edafológicos
combinados com séries de datações radiocarbônicas no contexto de sequências
estratigráficas arqueológicas, além de que se verifica que as alterações registadas são
semelhantes em datas diferentes e que o processo de transformação foi paralelo e
de acordo com factos históricos concretos. Depois de pouco mais de três milénios de
presença humana efetiva, a paisagem vegetal atual de Lanzarote é o resultado de uma
profunda transformação causada em grande medida pelas atividades agro-pastoris
implementadas por colonizadores humanos, responsáveis de numerosas extinções da
flora insular nativa num processo que durante o I milénio a.C. ainda mantinha um
certo equilíbrio ambiental, reflexo de uma exploração económica de baixa intensidade,
que será incrementada a partir do século I a.C., num momento que coincide com o
interesse de Roma pelo Atlântico africano e os seus recursos e com a presença nas
111 FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. (2002), Civilizaciones. La lucha del hombre por controlar la naturaleza,
Madrid, Taurus Historia, p. 344.
52
Canárias de navegadores originários de territórios romanizados do Círculo do Estreito.
Como consequência, as atividades humanas derivadas da prática da agricultura e a
pecuária exerceram a sua influência sobre o meio natural insular, fazendo com que a
influência antrópica deva ser considerada como um dos fatores morfogenéticos que
intervieram ativamente nas áreas insulares onde se fixaram grupos humanos, a tal
ponto que a flora atual de Lanzarote é o resultado de
… procesos y mecanismos biológicos que permitieron la colonización
del territorio insular (zoocoria, hidrocoria, anemocoria, etc.) durante el
Terciario y Cuaternario bajo una serie de acontecimientos de tipo climático,
volcánico, etc., que provocaron extinciones, migraciones, especiaciones, etc.
y, a los que hay que añadir aproximadamente en los últimos 2.000 años,
la acción del hombre y sus animales (acontecimientos antropozoógenos)112.
O carácter insular e a localização excêntrica relativamente ao centro de gravidade
representado pelas culturas mediterrâneas do I milénio a.C. deram ao arquipélago
canário o papel de refúgio, não só para a fauna e a flora terciária desaparecida no
continente próximo, mas como reservatório de fenómenos culturais pré-históricos
e proto-históricos e de antigas linhagens humanas originárias do Mediterrâneo
ocidental alteradas em maior ou menor medida pela síndrome de insularidade.
112 REYES (2005), ob. cit., pp. 9-10.
53
O açúcar no Corpus Documental
das Ilhas Canárias113
Sugar in the Documentary Corpus
of the Canary Islands
Ana Viña Brito (ULL)
anvina@ull.edu.es
Resumo
Este trabalho é uma síntese do projeto interdisciplinar CORDICan [Corpus
Documentário das Ilhas Canárias]. Apresentamos um corpus monográfico sobre o
açúcar, através da documentação dos Protocolos Notariais dos arquivos das Canárias,
no primeiro século de colonização, bem como a digitalização dos documentos, a sua
transcrição e a utilização de etiquetas de marcação textual. Utilizamos ferramentas de
edição online que contribuem para a visibilidade e disponibilização da documentação
no quadro da História Atlântica do Açúcar.
Palavras-chave: Açúcar, Canárias, digitalização, transcrição, marcação textual.
Abstract
This work is a synthesis of the interdisciplinary project CORDICan (Documen-
tary Corpus of the Canary Islands). We present a monographic corpus on sugar through
113 Este artigo é uma síntese de outras publicações, entre as quais destacamos: VIÑA-BRITO, A. e
CORBELLA, D.(2018), “Corpus documental de las Islas Canarias. Un nuevo reto en Humanidades
Digitales»”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 65, pp. 29-66; IDEM (2019), “El proyecto CORDICan. Un
ejemplo de investigación interdisciplinar en Humanidades Digitales”, in BELLO JIMÉNEZ, V. (coord..).
Archivos para gobernar el mundo. Las Palmas de Gran Canaria: Mercurio, pp.197-215.
Este trabalho faz parte do Projeto FFI2016-76154-P e da colaboração do Cabildo de Tenerife através de
uma “Ajuda de investigação” do Programa «María Rosa Alonso» (2018).
54
the documentation of Notary Records from the archives of the Canary Islands during
WKHˋUVWFHQWXU\RIFRORQL]DWLRQDVZHOODVWKHVFDQQLQJRIWKHGRFXPHQWVWKHLUWUDQ
scription and the use of textual marking labels. We use online editing tools that con-
tribute to the visibility and availability of the documentation in the framework of the
Atlantic History of sugar.
Keywords: Sugar, Canary Islands, scanning, transcription, text labelling.
Introdução
Como assinalou Gaael Vaamonde, a aproximação tradicional na construção
de corpus históricos tende a focalizar a atenção no conteúdo linguístico, limitando,
quando não obviando, não só aspectos paleográficos presentes no documento
original, mas também diferentes aspectos contextuais associados à produção do
texto114.
São muitas as disciplinas que fundamentam a sua análise nos testemunhos
que os arquivos guardam, tanto públicos como privados, pois os registos dão conta
e permitem calibrar o valor preciso dos distintos aspectos que formam a história
económica, a história social, a história das mentalidades ou a história linguística de
um determinado grupo ou de uma determinada região, não como elementos isolados,
mas sim no seu próprio contexto.
Não obstante, em numerosas ocasiões o acesso a esses registos primários
fica restringido pela dispersão das fontes e, sobretudo, porque não existe um corpus
unificado que permita consultar, desde qualquer ponto geográfico ou no âmbito de
qualquer campo disciplinar, textos que ofereçam múltiplas leituras em função dos
interesses académicos de cada investigador.
Este handicap que continua a estar vigente pode e deve reverter-se, o que é
viável actualmente através das denominadas Humanidades digitais, sem dúvida um
dos desafios que a sociedade da informação lançou aos investigadores, sem esquecer
que a difusão, a divulgação e a partilha dos fundamentos do conhecimento constituem
os pontos fortes da transferência e, para isso, resulta imprescindível utilizar os meios
e suportes que, em pleno século XXI, propiciam essa inter-relação entre comunidade
114 VAAMONDE, G. (2018), “La multidisciplinariedad en la creación de corpus históricos. El caso de Post
Scriptum”, in Artnodes, 22, p. 122. Disponível em: http://artnodes.uoc.edu
55
académica e sociedade115, tendo sempre presente que as Humanidades digitais
constituem simplesmente mais um instrumento ao serviço da investigação e não uma
finalidade em si mesmas116.
Para o/a historiador/a não há outra realidade do que aquela que a documentação
lhe mostra e a sua análise não pode avançar sem o cotejo paciente das centenas de
maços de papéis que guardam os arquivos e que, como as peças de um puzzle, ajudam
pouco a pouco a reconstruir o passado, ocupando o texto, como manifestou Priani,
um lugar predominante como objeto primário de estudo, produção de conhecimento
e disseminação117. Daí a necessidade de indagar novas vias que facilitem o acesso
a essas fontes primárias, inéditas ou publicadas, mas transliteradas com critérios
uniformes, pois, como assinalou Morsel, não só é importante o contexto de produção
do documento, mas também a transcrição em certas etapas pode determinar «erros»
não apenas de interpretação, mas de transcrição.
Este foi um dos motivos que nos levou à realização do projeto CORDICan
[Corpus Documental das Ilhas Canárias].
1. O Projeto CORDICan
A génese deste trabalho iniciou-se somente há cinco anos, quando começámos
uma investigação interdisciplinar conjunta entre historiadores e filólogos, na qual
abordámos a análise da história atlântica do açúcar na época colonial e as suas
consequências linguísticas. Este estudo levou-nos a analisar não só o produto em si,
mas também o complexo agroindustrial do engenho e a sociedade que se estruturou à
volta do cultivo e a cultura do chamado «ouro branco» da época e que foi determinante
na organização dos espaços insulares de Gran Canária, La Gomera, La Palma e Tenerife
– as denominadas ilhas do açúcar. Todos os autores estão de acordo relativamente à
115 Grupo de investigação do Século de Ouro, da Universidade de Navarra .
BARAIBAR, A. y COHEN, S. (2012), “Nuevas tecnologías y redes sociales en la investigación en
Humanidades”, in La Perinola. Revista de investigación quevediana, 16, pp. 155-164.
116 GARCÍA MARCOS, F. J. (2006), “Los sistemas de información histórica: una frontera en la construcción
científica de la historia”. Disponível em: http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2245396.pdf.
117 PRIANI, E. (2015), “El texto digital y la disyuntiva de las humanidades digitales”, in Palabras clave.
DOI: 10.5294/pacla.2015.18.4.11.
56
importância que tiveram as ilhas na construção do mundo atlântico e o papel, desde
um primeiro momento, que a cana de açúcar teve nessa expansão para as terras do
ultramar, principalmente através dos arquipélagos da Madeira e Canárias para a
América lusitana e espanhola, respectivamente.
Neste trabalho concentrar-nos-emos, sobretudo, na análise de uma fonte
primária como é a documentação de Protocolos Notariais e, especialmente, a
documentação açucareira, por várias razões. É necessário ter em conta que, pelo
menos desde os anos finais do século XV e ao longo de seiscentos, ocorre a colonização
do arquipélago canário, uma vez incorporadas as ilhas na coroa castelhana, o que
implicou a implantação dos modelos vigentes em Castela nestas ilhas, do ponto de
vista administrativo, jurídico, de mentalidade, etc. Por consequência, qualquer acto
jurídico, desde uma simples compra a um testamento, devia passar pelo registo do
cartório correspondente. Daí decorre que os protocolos notariais abarquem numerosas
tipologias documentais, sendo o escrivão, o notário público de tais actos jurídicos, o
que nos permite, através destes registos, conhecer como decorria a vida nas fazendas
açucareiras, quais eram os materiais de construção das distintas dependências do
engenho, a organização social, os contratos de aprendizagem ou a actuação das
oligarquias que controlavam o poder local. Tudo era susceptível de estar protocolizado
devido ao valor comercial que adquiriu a plantação.
Fig. 15 - Juan de Capua, refinador, entra recebendo um ordenado com Alonso Fernández de Lugo no
engenho do Realejo por cinco anos. AHPTF, PN 373, ff. 223r-224r.
57
O nosso objetivo com esta investigação era, por um lado, demonstrar que os
factos históricos confirmavam a “espanholização”, nas Canárias, da terminologia
açucareira atlântica, face aos repertórios lexicográficos americanos, de cujos dados se
deduz a atribuição brasileira ou caribenha deste conjunto léxical. Com o objectivo de
fundamentar os nossos argumentos e a própria investigação, revelou-se imprescindível
recorrer aos arquivos e transcrever literalmente dezenas de registos manuscritos sobre
a instalação dos engenhos açucareiros e o desenvolvimento desta agroindústria nas
Canárias e na América desde os alvores do Renascimento.
Trata-se de um projecto novo, sem dúvida, tanto pelo seu carácter interdisci-
plinar como porque nele apresentamos, pela primeira vez e de uma maneira indepen-
dente, num corpus monográfico delimitado geograficamente, a digitalização dos do-
cumentos, a sua transcrição e o uso de etiquetas de marcação textual. Relativamente
ao primeiro aspecto, o trabalho conjunto de filólogos e historiadores destacou, uma
vez mais, a necessidade de respeitar os originais e a informação de todo o tipo que
contêm, nem sempre contemplada nas regesta que, em modo de resumo, se editaram
durante o século XX. Relativamente ao segundo aspecto, existem repertórios docu-
mentais digitais que contemplam ou contêm documentação canária, mas estes regis-
tos diatópicos constituem uma parte mínima desses projectos, geralmente concebidos
com enquadramentos mais amplos e não tão específicos118. Não existe, por isso, um
corpus acessível de documentação canária transcrita com critérios similares, devida-
mente catalogado e indexado, apesar de os grandes repositórios documentais terem
considerado nos últimos anos a possibilidade de oferecer, juntamente com a imagem
do documento, a transliteração do seu conteúdo.
O trabalho estrutura-se em diferentes etapas, sendo que uma das fases cruciais
deste projecto consiste na selecção e digitalização dos documentos, de tal forma que
estejam guardados num repositório digital, de fácil acesso, e que permita continuar a
analisá-los desde os mais diversos pontos de vista: histórico, filológico, sociológico,
etc. Juntamente com a digitalização apresentamos a transcrição paleográfica,
respeitando os atributos que caracterizam cada texto, tais como a sua ortografia e
sintaxe originais, as expansões, adições, rasuras, mudanças de página, mudanças de
linha, etc., e que podem orientar tanto sobre a procedência do notário como sobre os
hábitos escriturários da região e da época.
118 Vid. Portal de Corpus Históricos Iberorrománicos (CORHIBER). Disponível em: http://www.corhiber.org
58
O interesse de CORDICan baseia-se no facto de aspirar a converter-se num
corpus representativo da documentação canária, de consulta totalmente aberta, com
a finalidade de que outros investigadores, com interesses diversos e desde qualquer
ponto geográfico, possam dispor deste enorme tesouro patrimonial.
Nesta primeira fase, que sintetizamos nesta apresentação, CORDICan contém
um subcorpus temático bastante amplo sobre os registos açucareiros, mas também
avançámos bastante na introdução de outros subcorpus organizados a partir de crité-
rios tipológicos e não temáticos (ainda que também sejam susceptíveis de um agru-
pamento pelo conteúdo), como testamentos, cartas de dote e inventários, extraídos
fundamentalmente da documentação notarial. O corpus vai ampliando-se com outros
subcorpus de cartas, portarias decretos, etc.
É uma aposta de futuro, ainda que estejamos conscientes de que nem sempre
se poderão alcançar os níveis de equidade desejáveis, já que a documentação
canária, das primeiras décadas, se perdeu irremediavelmente para algumas das
ilhas (como Gran Canária e La Palma). O corpus tende a ser representativo não
só na sua tipologia, como também na procedência geográfica dos textos e na sua
distribuição temporal.
Não se trata somente da transcrição e digitalização da documentação, mas o
projecto permitirá ainda, mediante o sistema de marcação TEI, que os documentos
indexados não tenham um período de caducidade a curto e médio prazo, o que é um dos
grandes problemas da voragem digital. A codificação utilizada é a comummente aceite
e a que permitirá num futuro, se os modelos avançarem, uma conversão imediata. Ao
ser um repositório permanentemente actualizado de documentos de Canárias ou sobre
as ilhas, transcritos de uma maneira homogénea e seguindo os mesmos critérios, a
integração de novos documentos a partir do formato Word torna-se viável e, portanto,
aponta para a sua implementação a partir de um trabalho colaborativo, sem quase
necessitar de conhecimentos de catalogação.
O terceiro elemento chave deste projecto consiste em tornar visível na rede
a documentação do arquipélago, tendo em conta que este trabalho tem de se levar a
cabo com critérios de qualidade científica e comunicativa, sem que uma se sobreponha
à outra119.
119 JIMÉNEZ ALCÁZAR, F. J. (2016), “Balance historiográfico. Reflejos en el medievalismo y en los
medievalistas del cambio de una época: de un balance a un compromiso”, in Vínculos de Historia, 5, pp.
333-343.
59
Os inconvenientes são muitos, desde o financiamento até ao volume de trabalho
que pode ser feito por uma equipa de investigação interdisciplinar muito limitada.
Contudo, consideramos que é uma nova via que está a dar excelentes resultados, que
está aberta à incorporação de novos investigadores e que propomos como um modelo
que se pode seguir para a digitalização da documentação canária, que não se deve
limitar à simples digitalização dos documentos, nem a continuar com a realização de
regesta. A internet oferece-nos possibilidades que devemos aproveitar no seu todo e
que facilitam um acesso mais amplo, direto e não dispendioso, a uma documentação
que, ao fim ao cabo, pertence a todo o conjunto da sociedade.
Sem dúvida, é necessário avançar neste sentido num meio digital simples e
amigável que facilite ao mesmo tempo a difusão do património documental, neste
caso de Canárias e nesta primeira fase limitado à temática açucareira, e obviamente
a investigação que se realize sobre o mesmo. Temos apenas de pôr em prática o que
outros grupos de fora das ilhas estão a levar a cabo com excelentes resultados120.
2. Viabilidade do Projeto
Importa referir que os objetivos principais de CORDICan podem ser sintetizados
em três secções:
- A criação de um Corpus com um repositório permanentemente atualizado de
documentos das Canárias ou sobre as ilhas, transcritos de uma maneira homogénea e
seguindo os mesmos critérios.
- Que incluia documentação arquivística e cronística relativa ao arquipélago,
desde o século XV até finais do século XIX, tentando que o corpus seja amplo e
representativo de todas as épocas e de todas as ilhas.
- Um terceiro objectivo é que o Corpus esteja online, ou seja, oferecer em regime
de acesso livre a consulta da base de dados documental para facilitar o seu acesso
aos investigadores que, desde qualquer ponto, desejem ou necessitem de aceder aos
registos canários.
120 Vejam-se, entre outros, os resultados do «Grupo Trasegantes “Avisos de Levante”: Un provecto
digital de Ingeniería Histórica». Disponível em: www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm/article/
download/439/470>; ou os do grupo HILAME. Disponível em: http://www.hilame.info/equipo/ ou, no
terreno da filologia, o trabalho coordenado por Miguel Calderón no grupo CORDEREGRA. Disponível
em: https://diachronica.ugr.es/produccion-cientifica/congresos.
60
Se os objetivos estão claros e são viáveis, equacionamos uma série de
reflexões que são produto de vários anos da investigação que levámos a cabo a nível
interdisciplinar e que nos fizeram voltar de novo à documentação original, não só
para que as transcrições, sejam estas em formato Word ou diretamente com Oxygen,
possam servir para historiadores, filólogos, etc., mas também para reequacionarmos
como em muitos casos as distintas transcrições, consciente ou inconscientemente,
incluem erros. Sirva como exemplo a edição das Ordenanzas de Tenerife, por Núñez
de la Peña e a sua comparação com o manuscrito original conservado no Arquivo
Municipal de La Laguna, onde podemos observar, relativamente ao léxico açucareiro,
diferenças significativas.
Fig. 16
Na nossa proposta, apresentar a digitalização juntamente com a transcrição
permitirá a sua correcção e não continuar com a repetição de erros, que se sucedem,
por não se consultarem os originais. Também com este projecto levamos a cabo uma
análise minuciosa das transcrições, seja directamente do documento original ou
através da sua digitalização em formato Word ou utilizando Oxygen, o que facilita a
transcrição dos documentos, por linha, como vemos no exemplo seguinte:
61
Fig. 17
A transcrição literal do original, em Word ou em Oxygen, permitiu-nos também
DVVLQDODU DOJXQV WHUPRV QHVWH FDVR UHODFLRQDGRV FRP R D©¼FDU TXH ˋJXUDP QRV
dicionários, com uma cronologia do açúcar em ambos os lados do Atlântico que é
necessário rever, como vemos a título de exemplo no seguinte quadro121:
Fig. 18
121 Nas publicações dos últimos anos estão a corrigir-se estes desfasamentos. Considere-se como
exemplo o trabalho de NUNES, N. (2018), “O léxico da cultura açucareira na construção do mundo
atlântico: Madeira, Canarias, Cabo Verde, S. Tomé y Príncipe, Brasil, Venezuela e Colômbia”, in Veredas.
Revista de Associação Internacional dos Lusitanistas, 29.
62
A visibilidade da documentação, apresentando a digitalização do documento
original e a transcrição literal, permite a realização de estudos comparativos entre
diferentes zonas, como revelámos, entre outros, na análise dos decretos sobre a cana
de açúcar 122. Não restam dúvidas de que as possibilidades são importantes não só
para a temática açucareira, como sublinhámos, mas também para outras temáticas.
Considere-se como exemplo a emergência na documentação canária, de princípios do
século XVII, da figura do «uncionero», um profissional de medicina que não tinha sido
documentado até à data nas ilhas atlânticas, mas sim num hospital mexicano, o da
Puebla de los Ángeles, quase uma centúria depois, e que entre os seus instrumentos e
produtos curativos figurava o açúcar rosado.
Nesta linha da história atlântica e de transferências desde as ilhas até
ao continente americano, podemos analisar, entre outros aspectos, a legislação
eclesiástica, como é o caso do dízimo aplicado aos canaviais e ao açúcar obtido depois
da sua transformação. Assim vemos como as disposições aprovadas para as Canárias se
aplicaram posteriormente na área mexicana, como se observa na Real Cédula à Audiência
de México. Numa reclamação do bispo de Tlaxcala, este insiste que o contador Rodrigo
de Albornoz, que tem um engenho na cidade de Veracruz, cobre o dízimo em açúcar
e não em dinheiro, como era hábito nas Ilhas Canárias e nas outras ilhas onde havia
engenhos de açúcar e tendo em conta a qualidade dessa terra e o que se faz nisto na Ilha
Espanhola, chamadas e ouvidas as partes façam breve cumprimento de justiça.123
Esta perspetiva permite-nos ainda abordar aspetos relacionados com a botânica
e os diferentes tipos de madeira utilizados: carvalho, barbuzano, pau-branco... para os
engenhos, eixos, canais, etc., mas também aspectos relacionados com a vida quotidiana,
como, por exemplo, o mobiliário das casas camponesas, das quintas ou das residências
dos grupos mais ricos: quadros, livros… Tudo isto sem esquecer outra linha que nos
últimos tempos está a ter um amplo desenvolvimento, como os estudos de género ou
a prosopografia. São, a título de exemplo para o século XVI, com documentação das
Canárias, as análises dos testamentos de mulheres guanches, como o caso de Catalina
Guanimençe124, ou de personagens das elites, como Águeda de Monteverde ou Ana
122 VIÑA-BRITO, A. (2013), “Ordenanzas sobre el azúcar de caña en el siglo XVI. Un análisis comparativo”,
in Historia. Instituciones. Documentos, 40, pp. 397-425.
123 AGI, MEXICO, 1088, L. 3, ff. 4v-5r.
124 TABARES DE NAVA y MARÍN, L. y SANTANA RODRÍGUEZ, L. (2017), Testamentos de guanches (1505-
1550), La Laguna, Instituto de Estudios Canarios.
63
Jaques125, ambas administradoras de importantes patrimónios familiares, uma vez que
chegam à viuvez, intervindo diretamente na política familiar dos seus descendentes,
encarregando-se dos livros de contas e inclusivamente participando em companhias
comerciais.
Evidentemente, estudos de toponímia, contratos de compra-venda ou a maneira
como se desenvolvia a vida nas Canárias no primeiro século da colonização, onde o
açúcar foi o principal produto de exportação.
Fig. 19: AHPLP, PN 737, ff. 118 y ss.
Também a documentação notarial, através do projeto CORDICan, nos permitiu
uma aproximação aos grupos marginais da sociedade, não tanto em função da
estratificação vigente (grandes proprietários, técnicos, pessoal assalariado, escravos)
e sua procedência geográfica (portugueses, madeirenses, africanos, flamencos…), mas
alguns processos por violação da norma, sejam estes maus tratos, sodomia, ou outros…
Assinalámos que este Corpus não se limita à digitalização e transcrição da
documentação, mas que, para além disso, levamos a cabo a marcação de textos XML-TEI,
125 VIÑA-BRITO, A. (2002), “Doña Águeda de Monteverde y la administración de un patrimonio
familiar”, in Revista de Historia de Canarias, 184, pp. 341-360; IDEM (2019), “El patrimonio de Ana
Jaques a través del inventario de sus bienes”, in Un periplo docente e investigador. Homenaje al profesor
Antonio Tejera Gaspar, La Laguna, Servicio de Publicaciones de la ULL, pp. 353-368.
64
o que nos permite a visualização do texto normalizado e tokenizado, e, inclusivamente,
uma apresentação morfossintática de grande interesse para os linguistas.
Fig. 20: AHPTF, PN 650, ff. 176 y ss.
Cada um dos documentos que apresentamos em CORDICan leva os seus
próprios metadados, o que permite a localização do documento por notário, data,
temática, toponímia,… e ainda possibilita a contextualização de cada documento.
Fig. 21
65
Não restam dúvidas de que as ferramentas de edição em linha contribuem
para a optimização da oferta tradicional do que poderíamos considerar instrumentos
descritivos clássicos, pois, como sustenta Torruella, hoje em dia «alterou-se totalmente
a forma de aceder aos textos, de trabalhar com eles e de apresentar e colocar à disposição
da comunidade científica os resultados obtidos»126 .
3. Conclusões
Em síntese, a nossa proposta de CORDICan inscreve-se nas Humanidades
Digitais que constituem, como assinalou Álvaro Baraíbar, um dos desafios que a
sociedade da informação lançou aos humanistas, já que nos resultados das nossas
investigações, na difusão e divulgação do conhecimento, está precisamente um dos
pontos fortes da transferência das Humanidades para a sociedade.
Como dissemos no início, neste breve artigo, apresentamos uma mostra
sintetizada de um projeto em curso, formado por equipas interdisciplinares que
potenciam os avanços da investigação inserida nas denominadas Humanidades
Digitais, tendo sempre em conta que a tecnologia é um meio útil e necessário, mas não
um fim em si mesma127, como esperamos ter demonstrado nas páginas precedentes. Em
suma, apostamos nesta nova fórmula, já que a aplicação de novas técnicas permitirá
novos avanços na História.
126 TORRUELLA (2017), Lingüística de corpus: génesis y bases metodológicas en los corpus (históricos) para
la investigación lingüística, N. Y., Peter Lang.
127 MORALES, Angulo (2006), “Algunas reflexiones sobre los recursos de los archivos históricos en
Internet y la enseñanza de la Historia”, in Hispania, LXVI, pp. 38 e 50.
66
O Tabaco nos Impérios Ibéricos desde os
Arquipélagos Atlânticos nos séculos
XVII-XIX. Uma visão comparada128
Tobacco in the Iberian Empires from the
Atlantic Archipelagos in the 17th-19th
centuries. A compared view
Santiago de Luxán Meléndez (ULPGC)
santiago.deluxan@ulpgc.es
Margarida Vaz do Rego Machado (CHAM/UAc)
maria.mm.machado@uac.pt
Resumo
O monopólio de tabaco português, cuja criação é paralela à do estanco espanhol,
esteve sempre restringido ao território peninsular e aos arquipélagos do Atlântico
médio, estando quase toda a sua história nas mãos de arrendadores (“Mercantilismo
partilhado”), o que difere do que se passou em Espanha. As Ilhas Canárias também
estiveram integradas desde o princípio no estanco espanhol, em regime de arrendamento
até 1717 e posteriormente em administração direta. Nesta comunicação vamos
estabelecer as linhas mestras da economia tabaqueira entre os séculos XVII-XIX em
128 Projecto de Investigação La configuración de los espacios atlánticos ibéricos. de políticas imperiales a
políticas nacionales en torno al tabaco (siglos XVII-XIX), HAR2015-66142-R.
O presente artigo é a versão portuguesa de: Santiago de Luxán Melendez e Margarida Vaz do Rego Machado,
“El tabaco en los Archipélagos Ibéricos del Atlántico Medio (siglos XVII-XIX). Una visión comparada” in
Santiago de Luxán Meléndez, João Figueiroa Rego y Vicent Sanz Rozalén (Eds.), Grandes vicio, grandes
ingresos. El monopólio del tabaco en los impérios ibéricos. Siglos XVII-XX, 2019, Madrid, Centro de Estudos
políticos y Constitucionales, pp.153-178.
67
ambos os arquipélagos, tendo muito presente o contexto da história atlântica e das
relações com o Brasil e com as Antilhas.
Palavras-chave: Sistema atlântico do tabaco ibérico, Monopólio do tabaco,
Canárias, Açores, Madeira.
Abstract
The monopoly of Portuguese tobacco, whose creation is parallel to that of the
Spanish, was always restricted to the main land and to the two archipelagos of the mid-
Atlantic, with almost all its history in the hands of landlords (“Shared Mercantilism”),
unlike what happened in Spain. The Canary Islands were also integrated from the
beginning into the Spanish tobacco income, under lease until 1717 and subsequently
in administration. In this communication we will try to establish the main lines of the
tobacco economy from the 17th-19th century in both archipelagos, bearing in mind
the context of Atlantic history and relations with Brazil and the Antilles.
Keywords: Atlantic system of Iberian tobacco, Monopoly of tobacco, Canary
Islands, Azores, Madeira.
“Se o tabaco não existisse, os Estados modernos teriam tido de o
inventar: o tabaco é o imposto sonhado por todos os governos”129
1. Introdução
1.1. Sistema Atlântico do Tabaco e monopólio
Entendemos o sistema atlântico do tabaco como uma organização complexa de
relações entre ambas as costas do oceano em torno do produto mencionado, que adquire
a sua maturidade no século XVIII”130, no qual os Impérios europeus estiveram envolvi-
129 MÓNICA, Maria Filomena (1992), “Negócios e política: os tabacos (1800-1890), in Análise Social, vol.
XXVII, (116-117), 1992 (2°-3°), p. 461.
130 GARATE, Ojanguren, MONTSERAT, M. y LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2009): “Cuba y Nueva
España: los dos pilares del tabaco español en el siglo XVIII”, in Ulúa. Revista de Historia, Sociedad y
Cultura (Instituto de Investigaciones Histórico-Sociales. Universidad Veracruzana), v. 14, pp. 35-74.
68
dos e cujos os eixos principais foram o Chesapeake (Virginia)-Londres, Glasgow-Holan-
da-França, Bahia-Lisboa-Mina-Espanha e Nova Espanha-Cuba-Sevilha (Cádis)131. Toda-
via, há ainda que referir a Europa-América-África pois, no caso de Espanha, trocavam-se
escravos por tabaco132 na Ilha de Cuba e, no caso de Portugal, tabaco por escravos numa
rota do Brasil a Angola e à Mina133.
Na etapa imediatamente anterior à criação dos estancos português e espanhol
(1580-1640), houve uma certa convergência. Segundo Elliott, entre os Atlânticos espanhol
e português há uma escala suficientemente importante que nos permite falar deles como
componentes de um só Atlântico ibérico, nos aspetos defensivos e económicos e, de modo
especial, no tráfico de escravos. Nos momentos em que se criou o estanco, “Lisboa era o
centro deste Atlântico sul português. Funcionava como ponto recetor de açúcar e tabaco
brasileiros, prata e demais mercadorias contrabandeadas da América Espanhola, assim
como centro de distribuição e reexportação para portos do norte da Europa”134.
Da parte espanhola tentou-se criar um estanco imperial hispânico135 processo
este que culminou na segunda metade do século XVIII, muito ligado às necessidades
militares de defesa das Índias e cuja interpretação requere um enfoque conjunto do
monopólio espanhol e dos estancos americanos.
Este sistema aproxima o estanco português ao francês, pois integrou o tabaco no
siatema de arrendamento do contrato geral emm 1730136. Assim, não houve um estanco
131 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de y GÁRATE, Ojanguren, MONTSERRAT (2010) “La creación de un
Sistema Atlántico del Tabaco (siglos XVII-XVIII). El papel de los monopolios tabaqueros. Una lectura
desde la perspectiva española”, in Anais de História de Além-Mar, XI, pp.145-175.
132 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, LUXÁN HERNANDEZ, Lia de (2016), “Las compañías reales de
esclavos y la integración de Cuba en el sistema atlántico del tabaco español 1696-1739”, in Anuario de
Estudios Atlánticos, nº 62: 062-014.
133 ACCIOLI LOPES, Gustavo, Negocio da Costa da Mina e comercio atlántico. Tabaco, açucar, ouro e
tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760). Tese de doutoramento, São Paulo, Universidade de São
Paulo, Faculdade de filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/8/8137/tde.../GUSTAVO_ACIOLI_LOPES.pdf., CHAMBOULEYRON, Rafael (2006), “Escravos
do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do
século XVIII)”, in Revista Brasileira de História, vol. 26, núm. 52, pp. 79-114.
134 ELLIOTT, John (2012),”El Atlantico Espanhol y el Atlantico Luso: divergancias y convergencias”,XX
Coloquio de Historia Coloquio Canario-America, p.26. Disponível em: http://coloqioscanariasamerica.
casadecolon.com/index.php/CHCA/issue/view/269.
135 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2019), “El proceso de construcción del estanco imperial hispánico
1620-1786. Las reformas borbónicas del siglo XVIII”, in Anuario de Estudios Atlánticos, Las Palmas de
Gran Canaria, pp. 961-1011.
136 DURAND, Yves (1971), Les Fermiers généraux au XVIIIe siècle, París, Presses Universitaires de Fran-
ce. PRICE, Jacob (1973), France and the Chesapeake. A history of the French Tobacco Monopoly, 1674-1795,
69
Imperial, ainda que possamos referir-nos a um sistema atlântico do tabaco lusitano137,
dado que, o cultivo desta planta efetuava-se no norte do Brasil dando origem a um
intercâmbio regular entre o Jardim de Lisboa e os viveiros de escravos da costa africana
onde, desde a queda de São Jorge de Mina, em 1637, pelas mãos de os holandeses, apenas
se podia comercializar rolos de tabaco brasileiro que, apesar de serem de 3ª categoria,
eram muito apreciados pelos africanos, por serem pincelados de melaço e rum.138.
Quando utilizamos a palavra monopólio do tabaco estamo-nos a referir, por
um lado, a uma regalia do monarca, que tem o poder para estabelecer direitos sobre
o comércio e, por outro, à prerrogativa para reservar para si a produção, venda e
distribuição de determinados produtos (estancos), neste caso do tabaco139:
O monopólio mercantilista foi, mais do que um modelo económico, uma
proposta política de controlo do mercado nacional ainda que incipiente, no caso
das monarquias continentais e, por isso, foi mais uma prática do que uma conceção
teórica sobre a organização da atividade económica. A a sua importância esteve
limitada aos pressupostos concretos,como o sistema geral de comércio, os quais
foram, por outro lado, bastante limitados pela competência do contrabando140.
2. A Historiografia do tabaco dos Arquipélagos do Atlântico
Médio em 2018
O estudo comparado dos Impérios Ibéricos (2012-2018) e a criação de um Seminário
permanente de História do Tabaco, entre as univerdidades espanholas e portuguesas,
and of Its Relationship to the British and American tobacco trades. Michigan, University of Michigan Press.
WHITE, Eugene, (2004) “From privatized to government-administered tax collection: tax farming in
eigthenth-century France”, Economic History Review, LVII, 4, pp. 636-663.
137 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, dir., (2014), Política y Hacienda del Tabaco en los Imperios Ibéricos
(Siglos XVII-XIX). Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, pp. 9-20.
138 VERGER, Pierre (1964), “Rôlen joué par le tabac de Bahia dans la traite des eclaves au Golfe do
Bénin”, en Cahiers d’études africaines, 4, nº 15, p .354.
139 ARTOLA, Miguel, La Hacienda del Antiguo Régimen, Madrid, Alianza-Banco de España. Segundo o
Dicionário da RAE: “embargo ou proibição da circulação e venda livre de algunas coisas ou disposição
que se faz para reservar exclusivamente as vendas de mercadorias ou géneros, fixando os preços a que
se devem vender.”Disponível em: http://dle.rae.es/?w= [Consultado el 6/07/2018].
140 BERGASA PERDOMO, Oscar (2014), “¿Soñaban los Déspotas con Monopolios perfectos? Una visión a la luz
de la teoría económica”, in LUXAN MELÉNDEZ, Santiago de, dir., Política y hacienda del tabaco … ob. cit., p. 358.
70
significou um novo impulso para a historiografia do mesmo e impulsionou-nos a ensaiar
uma comparação entre os arquipélagos que formam a Macaronesia, com excepção de Cabo
Verde.
Na historiografia do tabaco do império hispânico, antes da segunda metade do século
XX, podem assinalar-se várias etapas (Luxán 2004, Alonso, Gálvez e Luxán 2006, Rodríguez
Gordillo 2009 e Luxán 2014). Uma primeira fase seria constituída pelos estudos científico-
medicinais do século XVI-XVII. Em segundo lugar, no século XVIII, há que mencionar alguns
estudos referentes tanto à América espanhola, como ao Brasil (Antonil, Vázquez de Espinosa,
Maniau e Unanue, por exemplo). Um terceiro momento corresponderia aos anos centrais do
século XIX (nos quais esteve aberto o debate parlamentar sobre o estanco, época dos primeiros
ensaios sobre o seu cultivo em Espanha). A quarta etapa é coincidente com o estabelecimento
e desenvolvimento da Arrendatária de Tabacos (1887-1944), período em que as mudanças
tecnológicas nos processos industriais são manifestas (Comín e Martín Aceña, 1999). O
discurso histórico deveu-se a homens como García de Torres (1875), Delgado Martín (1892) ou
Carmona (1900), que foram funcionários das Finanças ou quadros diretivos da Arrendatária.
Desde meados do século XX, e agora referimo-nos a Espanha e Portugal, tem havido
duas sequências diferenciadas. Antes de 1998 os historiadores ocuparam-se, como se fossem
de mundos diferentes: do âmbito americano, por um lado, e do monopólio espanhol e portu-
guês em menor medida, por outro lado. Para o caso espanhol há que mencionar como impres-
cindíveis os nomes de Castañeda, Pérez Vidal, Rodríguez Gordillo (1977, 1978, 1993 y 1994),
Garzón Pareja (1970), Fátima Melián (1986), González Enciso, Alonso Álvarez e ultimamente
Miranda Calderin e Stubs. Para o português, os de Veger, Lugar, Esteves dos Santos e Nardi.
Situámos uma nova etapa no desenvolvimento historiográfico em 1998, para destacar
a renovação e a mudança que o Simpósio Tabaco e Economia no século XVIII (Universidade
de Navarra) significou; desta reunião surgiu o Grupo de Estudos de Tabaco (Greta) que
dinamizou em Espanha a história do tabaco. A este encontro internacional, juntaremos a
sessão: O tabaco na História Económica, realizada no VIII Congresso da Associação Espanhola
de História Económica (Santiago 2005). O terceiro ponto de partida da nova historiografia
foi o livro conjunto sobre o monopólio espanhol de Comín e Martín Aceña. Há ainda a
destacar as contribuições de grande interesse sobre a América espanhola referentes aos
distintos monopólios, que se foram estabelecendo nos diversos territórios americanos e que
renovaram as contribuições clássicas.
Para os arquipélagos portugueses, os estudos aprofundados sobre o tabaco iniciaram-
se, já neste século, com a entrada de Margarida Vaz do Rego Machado para o projeto La
71
configuración de los espacios atlánticos ibéricos. De politicas imperiales a políticas nacionales
en torno al tabaco (siglos XVII-XIX). Até então, os historiadores da História Económica
Açoriana, do Antigo Regime, praticamente não se referem ao tabaco, fazendo apenas
alusões genéricas, dentro de uma conjuntura económica geral. São exemplos: Maria Olímpia
da Rocha Gil, que dedicou o seu estudo ao século XVII141, Avelino Freitas de Meneses e José
Damião Rodrigues, para os séculos XVII e XVIII142 ou, ainda, Ricardo Madruga da Costa para
as primeiras duas décadas do século XIX143. O mesmo já não acontece para a segunda metade
do século XIX, principalmente para as últimas décadas. Os trabalhos de Maria Isabel João e
Fátima Sequeira Dias mostram a grande importância da produção e manufaturação deste
produto na economia, sociedade e política das Ilhas, embora com um enfoque principal na
ilha de S. Miguel144. Para o Arquipélago da Madeira, o estado da historiografia tabaqueira
é ainda menor. Paticamente não houve estudos aprofundados e autónomos sobre o tema.
Apenas uma introdução ao seu estudo feita por Margarida Vaz do Rego Machado, em 2017145.
3. Variáveis a ter em conta num estudo camparado dos sistemas
de tabaco ibéricos, incluindo os arquipélagos do Atlântico Médio
3.1. A produção da matéria prima e a mão-de-obra:
No que diz respeito à produção da matéria-prima, é necessário apontar como principal
característica na América espanhola a concentração do cultivo em certas áreas. Uma
141 GIL, Mª Olímpia da Rocha (1979), O Arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos económicos e
sociais (1575-1675), Castelo Branco, Edição da Autora.
142 MENESES,Avelino Freitas de (1995), Os Açores nas encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), Ponta
Delgada, Universidade dos Açores, vols.I e II. MENESES, Avelino, REIS LEITE, José Guilherme, MATOS,
Artur Teodoro, coords., (2008), História dos Açores. Do descobrimento ao século XX, Angra do Heroísmo,
Instituto Cultural dos Açores, vol. I. RODRIGUES, José Damião (2003), São Miguel no século XVIII. Casa
elites e poderes, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. I.
143 COSTA, Ricardo Madruga (2005), Os Açores em finais do regime da Capitania-Geral, 1800-1820, Núcleo
Cultural da Horta, Câmara Municipal da Horta, vol I.
144 JOÃO, Maria Isabel (1991), Os Açores no século XIX: Economia, Sociedade e Movimentos Autonomistas,
Lisboa, Edição Cosmos, pp. 76-101. DIAS, Fátima Sequeira (1995) e (2007): A Fábrica de tabaco
Micaelense, Ponta Delgada, Jornal da Cultura, edição da Fábrica de Tabaco Micaelense; “Uma abordagem
à estratégia comercial da Fábrica de Tabaco Micaelenses durante a regência de José Bensaúde (1866-
1922)”, in Indiferentes à diferenças. Os Judeus dos Açores nos séculos XIX e XX, Ponta Delgada, Centro de
Estudos de Economia Aplicada do Atlântico – CCAplA, pp. 204 a 238.
145 MACHADO, Margarida Vaz do Rego (2017), ” Ponta Delgada e Funchal: entre o contrato do Tabaco e
a luta pela sua abolição” in Duarte Chaves (coord.), Açores e Madeira: Percursos de memória e identidade,
Edição Santa Casa da Misericórdia, S. Jorge, pp.149-157.
72
segunda característica seria a escolha das Antilhas como área preferencial de produção,
o que Céspedes descreveu, em 1991, como um proteccionismo frente a outros Reinos
das Índias.
No caso de Portugal, a concentração ocorreu na Região da Bahia, regulada pelas
Instruções e pela política de fomento ao cultivo.
Se nos referirmos à mão de obra, devemos destacar a presença de trabalhos
forçados que resultaram num fluxo de escravos da África para o Novo Mundo, através
de companhias Reais ou privadas. Concentrando-nos no caso espanhol, devemos
referir ao papel da Companhia Francesa da Guiné, da Companhia do Mar do Sul e da
Companhia Real de Havana.
A “Carrera de Indias” permaneceu fora dos fluxos que se estabeleceram entre a
África e o Caribe, embora, em Havana, uma parte importante de escravos fosse trocado
por tabaco. Não há evidências, porém, no caso da Companhia Portuguesa da Guiné,
que também transportava escravos para o Caribe, que tivesse interesse em adquirir
tabaco cubano.
O principal concorrente do tabaco do Império espanhol e do Brasil foi o da Baía
de Chesapeake (Maryland e Virgínia).
O sistema atlântico do tabaco espanhol esteve muito constrangido pelo
tabaco de Virginia (Rodríguez Gordillo, 2014). Os dados das entradas de tabacos na
Real Fábrica de Sevilha proporcionam-nos a evidência de uma entrada legal anual
de uns 21,8% de todos os tabacos controlados pela manufatura da capital andaluza
e quase 40% em relação a todos os tabacos chegados das colónias espanholas, para o
período de 1711/12-1760. Já na esfera da política económica, enquanto que a Espanha
demonstrou uma permanente preocupação com as compras de tabaco em rolo do
Brasil, desenvolvendo experiências e projetos muito caros para tentar reduzi-las ou
mesmo erradicá-las por completo, com o tabaco da Virgínia existiu uma atitude muito
mais passiva. O tabaco norte-americano continuou sendo importado em grandes
quantidades para abastecer o estanco espanhol no século XVIII – a modificação na
gestão do monopólio com o controlo direto por parte da Real Fazenda não significou
alteração alguma — e representou uma forte e constante sangria económica para a
monarquia espanhola.
O tabaco do Brasil converteu-se na ligação entre os dois monopólios ibéricos
já que, o território espanhol, foi o principal mercado deste produto. As razões do êxito
da Virgínia e do Brasil devem ser procuradas no seu baixo preço; nas claudicações
73
internacionais de Espanha; nos interesses de certos grupos hegemónicos de um lado
e do outro do Atlântico; na expansão crescente dos cigarros, que se elaboravam com
esta variedade de folha, e nas dificuldades do estanco para conseguir fazer frente ao
aumento do consumo. Assim, quebrava-se um dos fundamentos essenciais das teorias
mercantilistas que, em teoria, regiam a política económica espanhola. O tabaco
cubano verá então, seriamente, ameaçado a sua presença no mercado espanhol pela
competição dos produtos brasileiros e virginianos.
As Canárias abasteceram-se maioritariamente, antes do século XIX,
de tabaco procedente de Havana (fundamentalmente pó), enquanto que os
arquipélagos atlânticos portugueses o fizeram de tabaco brasileiro, mas via Lisboa.
Não há notícias de intercâmbios de tabaco entre os arquipélagos portugueses e
espanhóis. Portanto, pelo menos até ao século XIX os arquipélagos não foram
produtores e abasteceram-se das Antilhas espanholas (Havana) e da região da Bahia,
respetivamente. Isto não quer dizer que não existisse algum cultivo clandestino,
ainda que com pouca expressão.
3.2. A sua aquisição:
Com relação ao preço de compra fixado pela autoridade monopolista,
circunstâncias e mercados do tabaco não adquirido pelo monopólio e tabacos coloniais
comprados pelo Estanco devemos fazer as seguintes considerações.
O monopólio português, cuja criação é paralela à do estanco espanhol, esteve
sempre restringido ao território peninsular e ao dos arquipélagos do Atlântico médio,
estando quase toda a sua história em mãos de arrendadores.
Na verdade, o monopólio português sempre foi bastante rígido, nomeadamente
em dois aspetos principais: na produção, que apenas podia ser feita no Brasil
(principalmente na Bahia), e no comércio, este na mão de arrendadores sediados em
Lisboa. Todo o tabaco que chegava aos Açores e Madeira teria, obrigatoriamente, de
passar por Lisboa. O contrato estipulava que só se podia cultivar tabaco no Brasil e
que este teria de vir diretamente a Lisboa e só depois redistribuído pelo Reino e seus
arquipélagos. O monopólio português fazia-se sentir especialmente no comércio que,
desde sempre, esteve arrendado, tanto aos contratadores gerais, como aos das Ilhas,
estes subarrendadores dos primeiros, pelo menos até finais de setecentos, altura em
que a estratégia de Lisboa é alterada e os contratadores insulares passam a meros
74
administradores dos primeiros. Devido a uma apertada vigilância (pelo menos na
teoria) não há notícias oficiais de vindas diretas nem do Brasil nem de outras nações
estrangeiras, nem que tivéssemos agentes estrangeiros dedicados a este comércio. O
que não quer dizer que não se fizesse através do contrabando.
Na mesma linha, não temos notícias oficiais de relações comerciais em rotas
diretas com as Canárias e mesmo entre as Ilhas dos Açores e da Madeira. Sabemos
que os contratadores açorianos se relacionavam entre si e com os da Madeira; que
por vezes o tabaco era redistribuído entre eles, mas apenas em épocas de penúria,
quando o tabaco de Lisboa tardava a chegar, devido ao mau tempo ou, mais
frequentemente, à falta de transporte. Daí a importância de um dos privilégios
dos contratadores do Tabaco ser o de poderem mandar navios estrangeiros às ilhas
com os seus tabacos.
O consumo de tabaco nas ilhas açorianas não era dos maiores, se tivermos em
conta os números do Reino, mas a sua importância foi grande no que concerne à economia
insular.
Tomando como estudo de caso os tabacos que entraram na Alfândega de Ponta
Delgada, nos anos de 1764 a 1783, registamos as seguintes quantidades:
Tabela I – Entrada de tabaco no porto de Ponta Delgada
Data Quantidades(em rolos)
Peso em kg
(1rolo=12 a 14@=210kg
1764 104 rolos e 8 barris em pó 21 840kg
1765 210 rolos 44 100Kg
1766 90 rolos 18 900kg
1768 40 rolos 8 400Kg
1769 132 rolos 27 720 Kg
1774 70 rolos 14 700Kg
1775 70 rolos 14 700Kg
1776 85 rolos 17 850 Kg
1777 110 rolos 23 200Kg
1778 -*
1779 270 rolos 56 700 Kg
1780 -*
1781 177 rolos 37 170 Kg
1782 90 rolos 18 900kg
1783 110 23 200Kg
Fonte: BPARPD - Fundo da Alfândega de Ponta Delgada, Livros de Entradas, 1763 a 1784.
75
Uma média de quase 120 rolos por ano (cerca de 25 200 kg) que pouco se modificou
até aos primeiros anos de oitocentos, contrariamente ao preço do arrendamento, que
passou de 4 800$000 réis ano, em 1688, para 25 300$000 réis, para todo o arquipélago.
Para os primeiros anos de 1800, o preço a pagar pelos estanqueiros em S. Miguel foi de
4 000$000 réis anuais e o consumo rendeu ao contrato régio cerca de 40.000$000 réis
por ano.
Em conclusão, poderemos dizer que os Açores e mesmo a Madeira nunca foram
placas giratórias das rotas comerciais atlânticas do Tabaco, que apenas se integraram
nelas indiretamente, na medida em que o tabaco do Brasil, que chegava às Ilhas, vinha
sempre através do controlo de Lisboa.
No caso das Canárias, antes de 1717: o tabaco, legalmente importado procedia
exclusivamente de Havana. Durante o século XVII os dados que temos falam-nos de um
consumo muito modesto, no qual a Ilha de Tenerife ocupava o lugar relevante (entre
1660-1669: 60%). O consumo total das Ilhas estaria à volta dos 11.500 libras, com um
valor próximo dos 200.000 rs.vn. 10 dos 18 navios chegados ao Arquipélago desde Cuba,
entre 1680-1687, trouxeram um total de 40.081 libras de pó e 1.900 molhos de folha
(ou seja, o consumo legal de 4 anos de todas as ilhas). No século XVII o tabaco chegava
diretamente a Santa Cruz de La Palma e ao Porto de la Cruz em Tenerife a 16 destinatários,
um dos quais o capitão Simón Herrera (85% do total) nas duas ilhas. Excecionalmente,
também vinham, da Venezuela. Pérez Mallaina estudou o caso concreto de Juan Salido
Pacheco, durante o ano de 1665, que, como testa-de-ferro de comerciantes flamencos,
desviava o tabaco para a Holanda [criação do Juiz Superintendente das Índias em 1657].
No Memorial al Consejo de Indias (1689) do Marquês de Mejorada, arrendador da renda,
solicitava-se que se tomassem medidas contra a fraude do tabaco.
Tabela II – Vendas estimadas de Tabaco nas Canárias entre 1660-1669,
em livbras e reales de vellón
Ilhas Libras Ris. Vellón
Tenerife 6.750 120.902
Gran Canaria 2.233 40.000
Forte Ventuta 781 14.000
Lanzarote 836 15.000
Las Palmas 560 10.050
Total 11.160 199.952
Fonte: Mélian, 1986, elaboração própria.
76
Tabela III – Tabaco enviado de Havana (168-1687)
Portos de destino Nº de barcos Total tabaco em Libras
Santa Cruz de Tenerife 5 12.412
La Palma 2 21.500
La Oratava 2 136.616
Garachico 1 1.790
Total 10 172.318 (199.318)
Fonte: López Cantos (1979).
Durante o século XVIII, dois centros de aquisição: a fábrica de Havana e a fábri-
ca de Sevilha. Podemos, ainda, apontar duas rotas básicas: Havana-Santa Cruz de Te-
nerife-Cádiz e Sevilha-Cádiz-Santa Cruz de Tenerife com o retorno correspondente.
Além disso a Ilhas conveerteram-se num centro de redistribuição do produto. Há que
assinalar que, entre 1717-1720, contra o comércio ilícito implantou-se, por um lado, a
administração direta do tabaco com a Intendência, adiantando-se as Canárias ao con-
junto do território do estanco, exceto Madrid e Sevilha. O Intendente era superior ao
Juiz das Índias. Por outro lado, regulou-se o comércio com a América (Regulamento de
1718), dando estabilidade a este tráfico. A criação da Fábrica de Havana e da Intendên-
cia nas Canárias (1717) foram contestadas pela sublevação dos cultivadores em três
episódios entre 1717-1723, o chamado motim contra a intendência nas Canárias. A
nova administração da renda, apropriou-se do tabaco (1718-1719) e reteve um volume
importante do mesmo produto que, estando nas mãos de mercadores franceses (Com-
panhia Francesa da Guiné), não foi autorizado a sair, até à Real Ordem de 18-IV-1719.
A importância estratégica das Ilhas Canárias como centro redistribuidor do
tabaco americano -especialmente o pó cubano- deve ser destacada fora do circuito do
Monopólio espanhol. Consequentemente, também, não é de estranhar que a Fazenda
Real considerasse imprescindível assumir a administração da Renda do tabaco no
Arquipélago, adiantando-se ao resto do território do Estanco. Armazenaram-se
1.410.941 libras de tabaco de todos os tipos, basicamente entre 1718-1719, face às 35
ou 40.000 libras anuais de consumo legal nas Ilhas mais tarde. A margem para o tráfico
fraudulento era espetacular. Em Cádis, em datas próximas, apenas se desembarcaria
2,7 vezes mais tabaco do que nas Canárias e, relativamente às entradas na fábrica de
São Pedro (Sevilha), o tabaco que manipulavam os canários alcançaria um significativo
77
21%. Por último há que assinalar as dificuldades do Estanco espanhol para absorver o
tabaco da Fábrica de Havana e das Ilhas Canárias na conjuntura de 1720.
3.3. O transporte:
A situação da “Carrera de Indias” em que os navios navegavam em frotas
ou sozinhos (navios de registro) deve ser levada em consideração. Há que, também,
referir-se às dificuldades do transporte terrestre, ao tabaco que entrava livremente em
Portugal, ao papel do Jardim de Lisboa e ao Contato direto entre a Bahia e a Costa
africano. Neste quadro, são notáveis as diferenças de oferta entre os arquipélagos da
Madeira e dos Açores e das Canárias.
A grande diferença com as Ilhas Canárias é que estas eram abastecidas, em
grande medida, diretamente de Havana, devido à sua posição privilegiada na “Carreira
das Índias” – os barcos canários não passavam por Sevilha —, o que permitia uma
certa autonomia aos administradores da Renda, desde que, em 1717, entrou em
administração direta146.
A Guerra da Sucessão alterou completamente tanto a oferta de tabaco em
rama e pó, como os centros de distribuição, gerou escassez e excesso do produto no
mercado nacional e, em última instância, uma resposta reguladora da Coroa, que
tentou modificar a situação com uma mudança institucional (Fábrica das Índias em
Havana e Intendência nas Canárias). Com a entrada da Real Companhia de Havana
(1739-1760), as Canárias tornaram-se num mercado marginal, mas converteram-se
numa fonte fiscal de interesse (o produto do tabaco irá na integra) para os cofres da
monarquia.
A quantidade de tabaco comprado à força pela Renda, no período da Intendência,
manteve abastecido o Arquipélago até 1726, convertendo-se durante esta etapa, sob
a administração Martín de Loynaz, em reexportadora do produto para o território do
monopólio.
146 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2007), “Canarias. Una administración ultraperiférica de la renta
del tabaco durante el siglo XVIII”, in RODRÍGUEZ GORDILLO José Manuel, y GÁRATE OJANGUREN,
Montserrat, dirs., El monopolio español de tabacos en el siglo XVIII. Consumos y valores: una perspectiva
regional Madrid, Fundación Altadis, Ediciones El Umbral, pp. 461-495.
78
Tabela IV – Movimento de navios com tabaco (1726-1739)
Havana-Canárias Cádis -Canárias Canárias-Cádis
Anos Barcos Tab. en Libs. Barcos Tab. em Libs. Barcos Tab. en Libs
1726 3 493.891
1728 7 623.854
1729 2 21.760
1730 5 235.671
1731 2 10.189
1732 1 6.018 2 42.745
1733 1 9.168 3 127.251
1734 1 42.266 2 139.005
1735 1 65.161
1736 2 69.716 1 84.905
1737 1 7.735 1 95.799
1738 1 7.092
1739 1 7.099
total 3 119.82 5 37.112 29 1.940.231
Fonte: Melián (1986) (1726-1729) e AGS, DGR I, leg.2.404 (1730-1739).
Gráfico I
79
Tabela V – Tabacos enviados pela Renda de tabacos para as Canárias desde
Cádis durante a Guerra da Orelha de Jenkins (1739-1746) em libs.
Anos Barcos Carga
Nacionalidade
Espanhola Holandesa Portuguesa Francesa Genovesa
1739 1 7.099 1
1740 1 7.191 1
1741 2 14.012 1 1
1742 1 7.093 1
1743 2 40.684 1 1
1744 2 41.753 1 1
1745 1 15.670 1
1746 4 1 2 1
total 14 175.165 4 1 2 5 2
Fonte: AGS, DGR,I, leg. 2.404 e II legs. 3.622 e 3.623
Tabela VI – Tabaco importado por Fuerteventura (1726-1741)
Ano Tab. em pó
(libras)
Tab. em folha
(libras)
1726 3.957 209
1727 1.305 -----
1728 2481 -----
1729 1.932 360
1730 1.581 -----
1731 4.086 -----
1732 5.167 -----
1733 4.543 -----
1734 3.229 -----
1735 2.450 -----
1736 3.294 -----
1737 2.137 1/2 -----
1739 1.236 1/2 -----
1740 1.277 -----
1741 1.638 -----
MELIÁN PACHECO, F. (1990). “Aproximación a la Historia del tabaco en Lanzarote y Fuerteventura hasta 1730”. II
Jornada de Historia de Lanzarote y Fuerteventura, Tomo I. Arrecife.
80
Tabela VII – Barcos e tabaco remetido pela Renda para as Canárias (1746-1761)
Anos Barcos
Havana
Tab.
Libs.
Barcos
Cádis
Tab.
Libs.
Total
Barcos
Total
Tabacos
1746 2 96.355 4 41.663 6 138.018
1747 2 26.483 2 26.483
1748 1 13.184 1 22.788 3 35.972
1749 2 13.451 1 7.557 3 21.008
1750 1 19.158 1 19.158
1751 1 21.321 1 17.248 2 38.569
1752 1 40.702 2 27.630 3 68.332
1753 1 27.113 27.113
1754 1 26.971 2 30.586 3 57.557
1755 1 5.645 1 15.039 2 20.684
1756 1 47.770 1 47.770
1757 2 27.653 1 15.325 3 42.978
1758 1 27.355 1 15.420 2 42.775
1759 1 28.924 1 15.367 2 44.291
1760 2 29.479 2 29.479
1761 1 25.248 1 15.047 2 40.295
Total 21 476.812 16 223.670 37 700.482
Fonte: AGS, DGR, I, leg. 2.404 y II, legs. 3.622 y 3623 y Morales García (1991)
Em 1753, doze navios formavam a frota canária (2 construídos em La Palma,
8 na América e dois na Península), enquanto que, 10 anos depois, eram 21 – ainda
que quatro destes tivessem caído em poder dos ingleses na tomada de Havana. Antes
da queda desta última cidade, regressaram ao Porto de Santa Cruz 21 navios. Os
responsáveis das navegações, à exceção de José Antonio Uque Osorio (1746, 1749 y
1756) e Domingo Jansen (1757 y 1761), só realizaram uma viagem de regresso com
tabaco. Para o conjunto do período, o tabaco procedente de Havana alcançava mais de
dois terços do total, sendo o seu tráfico mais regular do que o de Sevilha. Os fluxos do
tabaco eram levados em navios da Armada Real (La Castilla, España “alias El Santiago”,
San Lucas “alias El Nuevo Conquistador” e El África) por um valor total de 300.016
pesos.
81
Tabela VIII – Tabacos enviados pela Factoría de Havana a todos os destinos em libs.
(1-III-1765 al 26-III-1774)
Destino Pó de qualidade especial Pó normal Rama Cigarros Rolos Cana Totais % total
Espanha 298.138 12.157.155 17.805.584 89.318 55.478 313.052 30.718.725 87
Canárias 1.152 306.394 3.672 311.218 0,88
México 81.600 72.707 500.580 654.887 1,85
Campeche 97.918 97.918 0,27
Guatemala 7.512 7.512 0,02
Lima 172.312 268.238 439.800 1,24
Santa Fe 8.978 8.978 0,02
Cartagena 1.425 2.018.118 2.019.543 5,72
Panamá 2.102 1.029.334 1.031.436 2,92
Total outras
possessões 275.081 379.101 3.917.860 4.572.042 12,95
% sobre total 48,05 3,02 18,03
Total geral 572.469 12.536.256 21.723.444 89.318 55.478 313.052 35.290.017 100
Fonte: AGI Cuba 1219
Tabela IX – Navios de tabaco chegados às Canárias (1762-1777)
Anos Barcos- Havana libs Barcos de Cádiz libs Barcos totais Libs.
1762 1 12.123 1 12.123
1763 1 15.330 1 15.330
1764 1 29.594 1 23.023 2 52.617
1765 1 27.870 1 22.978 2 50.848
1766 1 12.795 1 12.795
1767 1 31.006 1 23.275 2 54.281
1768 1 36.280 1 19.990 2 56.270
1769 1 68.089 1 22.880 2 90.969
1770 1 23.248 1 23.248
1771 1 108.761 2 1.801 3 110.562
1772 1 68.269 1 23.486 2 91775
1773 1 23.352 1 23.352
1774
1775 2 3.431 2 32.692 4 36.123
1776 1 39.929 1 39.929
1777 2 46.442 2 46.442
Totales 11 426.024 16 290.620 27 716.664
Fonte: AGS, DGR,II, legs. 3622 y 3623
82
A perda do asiento por parte da Real Companhia de Havana, juntamente com a
ocupação de San Cristovão pelos ingleses, interrompeu o tráfico com as Ilhas e causou
grande consternação entre os comerciantes e cidadãos canários. O fluxo de tabaco
para as Canárias, tanto desde Cuba, como desde Sevilha, demonstra-nos a recuperação
imediata do tráfico depois da ocupação de Havana e uma tendência crescente nos
envios, que alcançará o máximo em 1771-1772. A Fábrica de Havana continuará a ser a
principal fornecedora do Arquipélago (74% do total), mas a Fábrica de Sevilha começará
a desempenhar um papel de maior relevância, a partir de 1773. As Canárias estiveram
à margem dos circuitos de tabaco do Brasil. Este último aspeto realça a relação direta
entre Havana e as Canárias e uma singularidade notável relativamente ao mercado
espanhol. As Canárias manterão, segundo os testemunhos dos funcionários da
Renda, um volume considerável de tabaco clandestino, explicado pelos intercâmbios
frequentes entre Havana e o Arquipélago.
Em relação aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, o transporte de tabaco
(maioritariamente em rolo) era feito diretamente dos contratadores em Lisboa para os
que subarrendavam o contrato nas Ilhas, pois eram estes que detinham o monopólio
da sua venda nas Ilhas. Tomando como estudo de caso os barcos que entraram na
alfândega de Ponta delgada, nos anos de 1764 a 1783, registamos o seguinte movimento:
Tabela X – Entrada de tabaco no porto de Ponta Delgada
Data Nº navios
1764 4
1765 4
1766 4
1768 1
1769 5
1774 2
1775 3
1776 3
1777 2
1778 -
1779 3
1780 -
1781 3
1782 3
1783 2
Fonte: BPARPD - Fundo da Alfândega de Ponta Delgada, Livros de Entradas, 1763 a 1780.
83
Como dissemos este tabaco vinha de Lisboa diretamente para Ponta Delgada.
Nestes anos apenas quatro exceções a esta regra: uma galera que veio com escala
pela ilha da Terceira147, e as outras três: uma dirigiu-se para o Faial, as outras duas:
uma para a Terceira e outra para Santa Maria, ambas com escala por Ponta Delgada148.
Na verdade, os grupos Central e Ocidental do arquipélago tinham subcontratadores
próprios (por vezes o arrendamento era feito pelo conjunto do arquipélago, mas a maior
parte das vezes o Contrato era dividido em 3 Ramos: Angra, Horta e Ponta Delgada) e,
por isso, recebiam diretamente tabaco de Lisboa. O mesmo acontecia com a Madeira,
que também tinha uma rota direta do tabaco de Lisboa. Todavia as relações entre os
três estanqueiros dos Açores e o da Madeira eram frequentes podendo, mesmo, haver
auxílios de tabacos entre eles quando a conjuntura o exigisse. Quanto a Santa Maria,
esta estava anexa ao estanco de S. Miguel, daí as relações serem mais frequentes e
mais próximas.
O transporte era assegurado por barcos de nacionalidade portuguesa e
estrangeira, sendo que, nestes anos de estudo, há uma maioria de barcos estrangeiros:
11 galeras dinamarquesas, 9 inglesas e 2 holandesas, para 16 portuguesas, que vieram
consignadas pelos administradores do tabaco em Lisboa ao administrador do tabaco em
Ponta Delgada, neste caso, e para as décadas de sessenta de setecentos, ao capitão José
de Azevedo. Esta vinda de navios estrangeiros estava diretamente relacionada com o
privilégio dado aos contratadores do tabaco, de poderem mandar barcos estrangeiros
consignados aos seus administradores nas ilhas. Normalmente vinham apenas com
rolos de tabaco e com lastro de areia e cal, de modo a que na volta os barcos pudessem ir
carregados de cereais, o produto mais importante de exportação açoriana para o Reino.
1DVG«FDGDVGHILQDLVGHVHWHQWDHRLWHQWDDHVWUDW«JLDPRGLˋFRXVHOLJHLUDPHQWH
e são estreitadas as relações com os grandes negociantes da Ilha. A maior parte do
Tabaco passa a vir consignado a estes agentes de comércio, com principal incidência
para Leocádio Vieira e para o Drº António Francisco de Carvalho. Todavia, ter barcos
prontos para levar o tabaco, logo que as necessidades se fizessem sentir, não era fácil e
por isso o estanqueiro da Ilha de S. Miguel e Santa Maria, para os cinco primeiros anos
de oitocentos preferia ter dois armadores mais ou menos contratados, que mandavam
147 BPARPD - Fundo a Alfandega de Ponta Delgada, Livro de Entrada, 1763-73, 17 de Outubro de 1764,
fol.34;
148 BPARPD - Fundo a Alfandega de Ponta Delgada, Livro de Entrada, 1763-73, 20 de Março de 1765, fol,
47v e 22 de Agosto de 1768, fol. 141; Livro de Entrada, 1779, 27 de Maio de 1779, fol.10.
84
seus barcos aos Açores, trazendo tabaco e levando cereais. Os escolhidos foram os
barcos dos armadores António Pereira Caldas e Álvaro Thomazini149.
3.4. A manufatura:
Como dissemos o tabaco consumido no arquipélago das Canárias, era
proveniente maioritariamente da Fábrica de Cuba (2/3), contra 1/3 que se manufaturava
em Sevilha. Na verdade, nas Canárias não havia fábricas até ao Decreto Real de Portos
francos em 1852. Esta é outra diferença em relação aos arquipélagos portugueses que
contaram com fábricas próprias, ainda que em tamanho e autonomia diminuta.
Desde o início do contrato geral do Tabaco ficou estipulado que haveria duas
fábricas, uma em Lisboa e outra no Porto para a manufaturar o Tabaco. Exceção para
os arquipélagos portugueses do médio Atlântico, que tinham as suas próprias fábricas.
A documentação sobre estas fábricas é muito reduzida, nomeadamente na
Junta da Administração do Tabaco em Lisboa não encontramos grandes referências,
e por isso as certezas são poucas, desde logo para a data em que foram criadas.
Sabemos que em 1691 já existia uma, em S. Miguel, pois no contrato assinado entre
os contratadores gerais do tabaco e o estanqueiro Jacinto Sequeira, residente em
S. Miguel, é referido que este ficaria com o contrato por tempo de 3 anos e se
comprometia a mandar pôr, por sua conta, os pisões e oficinas que lhe parecessem
necessárias para se fabricar os tabacos150. Pouco mais sabemos da atividade destas
fábricas nos Açores. Como o contrato do tabaco neste Arquipélago era, a maior
parte das vezes, arrematado por ramos: o de S. Miguel e S. Maria, o da Terceira
e anexas, e o do Faial, não é difícil prever que cada ramo tivesse a sua fábrica.
Todavia não sabemos se todas foram fundadas ao mesmo tempo nem se as fábricas
laboraram durante toda a vigência do Contrato Geral, ou seja até 1864, data da
abolição do mesmo. Na verdade, no contrato assinado em 1751 pelo contratador
geral, José Machado Pinto, e seus sócios, estipulava-se que estes: não poderão
149 AP - A J.V, Copiadores de Correspondência com o Contrato-Geral do Tabaco, Carta de António José
Vasconcelos a Pedro Quintela, 6 de Agosto de 1802.
150 MACHADO, Margarida Vaz do Rego (2014),”O contrato do tabaco nos finais do Antigo Regime e
inícios do Liberalismo: sua importancia na economía açoriana”, in LUXÁN MElÉNDEZ, Santiago de, dir.,
Política y hacienda del … ob. cit., pp.157-176.
85
ter mais fabrica que a da corte e dela sairão todos os provimentos necessários
para os sobreditos distritos e suas casas de administração151. Será que se referiam,
também, às fábricas dos Açores? Ainda não conseguimos fontes suficientes para
ter a certeza, todavia logo depois há referências que levam a pensar que as fábricas
açorianas continuavam a manufaturar os tabacos que vinham do Brasil, através da
administração de Lisboa. O seu produto era vendido apenas nas Ilhas, ou seja, não
há verdadeira autonomia e por isso não faziam concorrência às fábricas de Lisboa e
do Porto. Esta situação manter-se-á até 1866, altura em que, nos Açores, se começa
a produzir tabaco, havendo simultaneamente a criação de várias fábricas, com
capital insular sem estarem sujeitas à metrópole (pelo menos durante alguns anos,
pois nos finais de oitocentos, muitos obstáculos se colocarão à livre produção e
comercialização dos tabacos açorianos).
3.5. A distribuição do produto:
Seriam as Canárias em finais do século XVIII e inícios do século XIX um
centro de redistribuidor do tabaco, entre Cuba e costas africanas, não só atlânticas,
mas também na sua vertente mediterrânica para o abastecimento da Europa? As
Ilhas devido à sua posição geográfica não podiam ter os retornos que os portugueses
conseguiam em África, por isso será melhor fazer a comparação com os Açores e
a Madeira, que tinham um contrato rígido com o tabaco brasileiro. Se calhar a
comparação deva ser feita com os Açores e a Madeira, que tinham um contacto
fechado para o tabaco brasileiro.
Como referido, os Açores e a Madeira não fizeram parte das rotas Atlânticas
do Tabaco. Foram apenas recetores do tabaco brasileiro, via Lisboa, e a distribuição
do tabaco apenas se fazia nas ilhas, entre as ilhas e segundo a organização dos
três ramos açorianos. O tabaco chegava em rolos, ia para as fábricas e depois
era distribuído pelos vários estanqueiros concelhios que vendiam em suas lojas,
devidamente assinaladas e reconhecidas pelo contratador geral da Ilha, o tabaco
ao povo açoriano. Não era possível abastecer qualquer outro mercado, até porque,
para além do estipulado pelo Contrato Geral, as quantidades enviadas para as Ilhas
151 IDEM, p.162.
86
eram poucas, o suficiente para prover os ilhéus. Podemos apenas falar de uma rede
de estancos entre os vários Concelhos de cada Ramo e com menor frequência entre
as várias Ilhas açorianas e o arquipélago da Madeira.
4. A estrutura organizativa e as regras do jogo
Nas Canárias podemos resumir a instauração e o desenvolvimento do estanco
de tabaco em três grandes fases: um período de implantação que iria desde 1636 até
1717 e que podemos resumir no seguinte esquema:
1. Tentativas falhadas de gestão municipal e de administração direta:
implanta-se para fazer frente ao donativo de 60.000 ducados de 1642.
2. Arrendamento privado por 3 anos (1642-1648): Antonio Costa (2º)
3. Administração direta do Capitão-General (26.000 rs.vn/Tenerife)
4. Privatização da Renda 1650-1717: arrendamentos e subarrendamentos
1. Baltasar Vergara e Grimón (14/10/1650) (falecido en 1675)
2. Marmaduke Randón (1650-1658)
3. Diego Alvarado Bracamonte (1658-1661) confronto com
Acialcazar. Herda o estanco de Canárias
4. Benito Viña Vergara (1661)
5. Mariana Alvarado, Marquesa da Breña
6. Recuperação do estanco pela Coroa (Real Cédula de 1701-1707).
De modo efetivo em 1717
5. Organização administrativa: realengo e senhorio
1. Santa Cruz de Tenerife (Cabeça do estanco)
2. Sub-arrendamentos: Gran Canária, La Palma, Fuerteventura e Lanzarote)
3. Gomera e Hierro arrendam-se com Daute
Um segundo período, que podemos considerar que abarcaria desde 1717
(implantação da administração direta) até 1852 (liberalização do tabaco pelo Real
Decreto de Portos Francos), e que compreende:
1. A partir de 1827: Os ensaios de aclimatação da planta em Porto Rico,
Baleares e Canárias (R. D. de 14/XII/1827)
2. O Real Decreto de Portos Francos, significou a supressão do Estanco. A
criação de um sector tabaqueiro terá de esperar pela década de setenta
87
(1870), quando a crise da cochinilha reabrir a opção tabaqueira do
monopólio foi de comprar a folha e mais tarde o próprio trabalho canário.
Nas ilhas dos Açores e da Madeira, a organização do estanco do tabaco poderá
ser dividida em duas grandes fases:
A 1.ª - que vai desde o início do contrato até 1782 e que se caracterizou por
subarrendamentos entre os Contratadores Gerais do Tabaco e os contratadores
Insulares ou que residissem nas Ilhas.
Como era frequente no Antigo Regime Português, os contratos monopolistas
podiam ser arrematados por 3,6 ou 9 anos, sendo o de 3 anos, o mais usual. No caso
do contrato do Tabaco era este último que predominava, embora em muitos casos
e, segundo João Paulo Salvado, nesta fase nem sempre se cumpriram os três anos
por falência das sociedades. Também era possível que um contratador que tinha
arrematado por 3 anos pudesse ser reconduzido no triénio seguinte. Por exemplo
na Madeira o contratador Ayres Ornelas de Vasconcelos, arrendou o contrato para
aquele arquipélago para o triénio iniciado em 1677, tendo sido reconduzido no triénio
seguinte. O mesmo aconteceu com o contratador Jacinto Siqueira que arrendou o
contrato para todo o arquipélago dos Açores em 1688 e em 1691 foi reconduzido no
Ramo de S. Miguel e Santa Maria.
Não nos foi possível elaborar uma série completa de contratadores insulares
para este período, pois os documentos estão dispersos por várias instituições e
notários e por isso muito difícil de encontrar, mas alguns nomes já conhecemos.
Assim para a Madeira, além de Ayres de Vasconcelos temos: Domingos do Rego
(1692); Gaspar Barreto (1688); Manuel Teixeira Brazão (1717) e António Ribeiro
(1719).
Quanto aos Açores, há mais documentação que nos permite ter uma
maior informação. Aqui e como o arquipélago é constituído por 9 ilhas, os
subarrendamentos tanto podiam ser feitos num só ramo que abrangia todo o
arquipélago ou, como acontecia muitas vezes, atrevo-me a afirmar mesmo que, a
maioria das vezes, era dividido em 3 ramos: Faial, Terceira e S. Miguel e anexas.
Depois os contratadores insulares dividam as vendas por estanqueiros concelhios
ou mesmo por freguesias.
Assim temos para o Ramo de S. Miguel contratos arrendados a: Luiz Antunes
Viana (1676); João Oliveira (1685); Jacinto Siqueira (1691); José de Azevedo (1768)
88
que foi reconduzido no triénio seguinte. Contratadores do Ramo da Terceira: António
Ribeiro e Sebastião Garcia (1679); Francisco Garcia Lima (1681); Diogo Pereira (1681).
Por enquanto não conseguimos nenhum nome para a primeira metade de setecentos.
Quanto ao Faial apenas temos referência a um contratador: Jean Chamberlain (1753).
Podemos concluir que há uma certa volatilidade nos homens que arrematam no
contrato até à segunda metade do século XVIII.
A 2.ª - abrange os anos de 1782 a 1864, altura da abolição do contrato. Este
período ainda pode ser subdividido em dois períodos:
1.º - até 1825 em que os contratadores insulares eram mais administradores do
contrato geral nas ilhas, com muito pouca independência administrativa e financeira.
As ordens eram dadas por Lisboa e os contratadores/administradores limitavam-se a
cumpri-las. Na verdade e segundo João Paulo Salvado, a estratégia dos contratadores
da segunda metade de setecentos tinha mudado152. Ao contrário da 1ª época, nesta
fase os contratadores gerais do tabaco faziam parte da elite dos negociantes de Lisboa
e deram um aspeto mais “capitalista” aos seus arrendamentos, fazendo ressentir esta
estratégia nas Ilhas. Assim, preferiam ter nas suas delegações insulares gentes de sua
confiança, que cumprissem suas ordens e por um tempo maior.
Para S. Miguel, Joaquim Barradas que administrou o contrato entre 1785 e
1800, seguido de António José de Vasconcelos que abrangeu toda a primeira parte de
oitocentos. Na ilha Terceira caberá a administração a Francisco Teixeira de Sampaio
e no Faial a Estolano Ignacio Oliveira Pereira. Quanto à Madeira e para oas primeiras
décadas de oitocentos temos o contratador/administrador Paulo Malheiro de Mello.
É, também, neste período, que as relações entre os administradores insulares
se tornam mais frequentes e mais intensas, não só entre as ilhas açorianas como com
a Madeira, com particular destaque para as relações entre o administrador de Ponta
Delgada (José António de Vasconcelos) e o do Funchal (Paulo Malheiro de Mello).
O 2.º – entre 1825 a 1864, e em que encontramos um clima crescente de
descontentamento com a atividade dos contratadores/administradores e o nascimento
de um desejo de produzir em solo Açoriano o tabaco. É uma luta que começa
oficialmente em 1825 com um relatório do desembargador Vicente Cardoso e que se
vai intensificar através da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, por toda
152 SALVADO, João Paulo, (2014),”O estanco do tabaco em Portugal: contrato-Geral e consórcios
mercantis (1701-1755)”, in LUXÀN MELÉNDEZ Santiago de, dir., Política y hacienda del...ob.cit., p.134.
89
a segunda metade do século XIX até à abolição total do contrato em 1864. O mesmo
acontecerá na Madeira, embora a luta se sinta em menor escala.
5. A regulação monopolista implica a existência de fraude
e do contrabando
O comércio fraudulento foi importante como se demostrou nos inícios do
século XVIII, quando se tratou de estabelecer a Intendência (1717–1720)153. Em épocas
anteriores a 1660, Canárias, Açores e Madeira formaram parte, no seu conjunto, do
que rapidamente chegaria a ser um sistema integrado de comércio de contrabando,
escreve Elliott154, em torno dos escravos, do açúcar e da prata e, acrescentamos nós,
também do tabaco. Estudámos o peso do contrabando entre 1717-1722 e conhecemos,
com certo detalhe que, durante o reinado de Carlos III e através da correspondência
oficial cruzada entre os administradores centrais da Renda e a instância central do
monopólio, uma das preocupações fundamentais do seu governo foi o contrabando.
Deste modo passar-se-à de uma atitude de impotência a uma posição beligerante contra
o contrabando e a corrupção155. A liberalização de 1852156 criou uma desconfiança
relativamente ao tabaco canário, o qual não se deixou entrar no mercado peninsular
até à Ditadura de Primo de Rivera em 1923. Sempre foram difíceis as relações entre o
Arrendatário de tabacos (1887) e Tabaqueira (1944) com os produtores das Canárias,
devido à desconfiança e ao contrabando.
O que é que se passou nos arquipélagos portugueses?
A situação geoestratégica dos arquipélagos de Medio Atlântico foi desde o início
do seu povoamento bem sentida, podendo mesmo dizer-se que, as Ilhas foram placas
giratórias do Atlântico, contribuindo assim, para a construção do Mundo Atlântico.
153 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2003), “La Renta de tabacos en Canarias. Del arrendamiento a la
administración directa”, in Anuario de Estudios Atlánticos, V. 49, 2003, pp. 447-473.
154 ELLIOTT, John H. (2012), “El atlántico español y el atlántico luso: divergencias y convergencias”, en
XX Coloquio de Historia Canario-Americana, http://coloquioscanariasamerica.casadecolon.com/index.
php/CHCA/issue/view/269. p. 27.
155 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago (1998), ”El funcionamento del estanco del tabaco en Canaria y Navarra.
Um ejercicio de historia comparada” in Actas del XIII Coloquio de Historia Canario-Americana, Las Palma
de Gran Canária, Cabildo de Gran-Canaria.
156 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias, Una
perspectiva institucional.Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA.
90
Contudo a sua pequenez física implicou uma subordinação económica com os impérios
europeus em geral e com a metrópole em particular. Esta dependência é bem notória
quando associada aos monopólios de fornecimento de alguns produtos157, como foi o
caso do Tabaco em relação aos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Esta situação
gerou, muitas vezes, revolta/ luta, que por diversas vezes se configuraram com o recurso
ao contrabando. Evidentemente que contabilizar a prática do contrabando é difícil e no
caso do tabaco, para os dois arquipélagos portugueses, ainda não foi muito estudado.
Todavia temos vários documentos que nos falam que este foi constante, até porque,
antes do contrato/ monopólio, no Reino e Ilhas era possível produzi-lo assim como obtê-
lo por via do comércio com outros países, como, por exemplo, no caso do Reino com
Castela e nas ilhas com os outros países que, habitualmente sulcavam as suas águas.
Não foi fácil impor o monopólio e para isso foi preparada muita legislação
de forma a serem punidos os infratores, que à maneira do Antigo Regime, estavam
hierarquizados segundo a condição social de cada um. Foi, ainda, criada a Junta da
Administração do Tabaco, instituição onde todos os assuntos do tabaco eram tratados.
As consultas feitas à Junta da Administração do tabaco mostram a complexidade de
toda esta problemática. Não foi por acaso que o reverendo John Colbacth, que visitou
Portugal nos finais de seiscentos, achou que o rigor que se tinha em Portugal com os
que pisavam tabaco para consumo próprio só era comparável com o que se tinha em
Inglaterra para com os falsificadores de moeda158.
A análise dos documentos compilados nas “consultas” à Junta da Administração
do Tabaco, mostram que são muitos e contínuos os protestos dos contratadores do
estanco de tabaco das ilhas dos Açores e Madeira, denunciando o fabrico e venda de
tabaco em vários conventos das ilhas, assim como em casa de nobres e que, apesar das
devassas feitas, ficavam impunes, o que levava a constantes descaminhos com grande
prejuízo para os contratadores159. O mesmo acontecia com o tabaco ilegal que vinha por
mar. Como referimos anteriormente os Açores e Madeira estavam bem integrados nas
rotas comerciais do império Português. Na verdade, apesar de algumas restrições, as
157 VIEIRA, Alberto (2014), Nova História Económica da Madeira, Lisboa, Esfera do Caos Editores, APCA
e Autor, p.40.
158 HANSON, Carl A. (1982), “Monopoly and Contraband in the Portuguese Tobacco trade, 1624-1702”,
Luso-Brazilian Review, XIX, 2, p.154.
159 ANTT - Junta da Administração do Tabaco, Consultas, maço nº1, doc. 88, Março de 1678; doc. 99,
Outubro de 1678; doc nº. 161, Abril de 1685; doc. nº 172, Julho de 1685; maço nº 3, doc. Março de 1689,
entre outros.
91
relações comerciais entre os Açores e o Brasil eram comuns. Podemos mesmo afirmar
que, no século XVIII, o Brasil era um dos destinos mais dinâmicos dos portos açorianos,
chegando diretamente às ilhas vários produtos daquela colónia. Era, pois, mais do que
provável, que a restrição feita à vinda do tabaco brasileiro fosse contornada, lançando
– se ao mar o tabaco clandestino, antes da chegada aos portos principais. Temos várias
notícias deste procedimento e foi devido a esta prática que os contratadores das Ilhas
tinham o privilégio de poderem enviar aos barcos que chegavam do Brasil, guardas
(pagos por eles) e lhes mandar dar buscas ou outras diligências sem que os senhorios ou
mestres dos navios os impedissem. Todavia as queixas continuam por toda a vigência
do contrato. Apreensões de tabaco vindo em barcos Espanhóis, de tabaco vindo da
Virgínia eram frequentes. A pesar de haver pedidos da Junta da Administração do
Tabaco ao Rei para uma ação mais efetiva dos governadores, dos ouvidores, juízes de
fora e mais funcionários régios, assim como ao Bispo e ouvidores clericais, para punirem
exemplarmente os infratores, fazendo buscas a casas, convento e barcos 160, a verdade
é que o contrabando continuava, como mostra várias referências do contratador de S.
Miguel, António José de Vasconcelos, que nas suas cartas aos Administradores Gerais,
refere a pouca vigia que os guardas faziam ao contrabando, não só do tabaco nacional
como, também, estrangeiro, nomeadamente da Virgínia. Era usual a entrada destes
tabacos, pela calada da noite, nas muitas reentrâncias da costa. Segundo António José
de Vasconcelos este era um problema grave que muito prejudicava o contrato161.
Na Madeira o panorama é idêntico e o facto do contratador Ayres de Ornelas
Vasconcelos ter arrematado o contrato do tabaco para aquele Arquipélago, em 1680,
por um preço considerado alto - 2:300$000 réis - teve como contrapartida a anulação
de uma decisão do Provedor da Fazenda da ilha da Madeira contra o arrematante e
seus familiares, pelo crime de descaminho de tabaco162.
Em conclusão penso que podemos afirmar que o contrabando nas ilhas
portuguesas em relação ao tabaco era considerável, corroborando a teoria acima
expressa por Santigo Luxan Mellendez.
160 ANTT - Junta da Administração do Tabaco, Consultas, maço no 1, doc. 73, 29 de Junho de 1671; maço
nº 2, doc. 34, Março de 1681, doc. nº 105 de 4 de Agosto de 1683, entre outros.
161 AP - A. F.V, Copiadores de Correspondência com o Contrato Geral do Tabaco, Carta de António José
Vasconcelos a Pedro Quintela, 28 de Março de 1804.
162 ANTT - Junta da Administração do Tabaco (JAT), maço nº2, 17 de Abril de 1680.
92
6. A resposta dos afetados perante o estabelecimento do
Estanco do Tabaco: a dinâmica histórica dos estancos
Como temos assinalado a implantação da administração direta nas Canárias foi
traumática e uma boa prova disso foi a revolta contra o prefeito Cavallos, que acabou com
sua vida e que foi paralela às revoltas de vegueras contra a Fábrica de Havana en 1717.
No processo de mudança de Império a Nação, a liberalização do tabaco na Ilha
de Cuba (Real Decreto de 23/06/1817) quebrou a dependência com a instituição do
monopólio e deu entrada a uma nova realidade. Tentou-se cultivar tabaco em Espanha,
especialmente entre 1824-1833, e foi difícil encontrar novas fórmulas para abastecer
o estanco, uma vez que a dissolução da Fábrica de Havana ocorreu e o processo de
independência das colônias americanas foi concluído. A proibição do cultivo do tabaco em
Espanha, — não esqueçamos que é um dos fundamentos do sistema —manter-se-á, mas
abrir-se-ão fendas: liberalização das Cortes de Cádis de 1813 e do Triénio Constitucional
em 1820, Porto Franco de Cádis em 1828, ensaios de cultivo em diversas partes da
Península e nas Ilhas Canárias — que foram valorizados de forma contraditória (1824-
1840) — ou, finalmente, o Real Decreto de Portos Francos de Canárias de 11/07/1852, ao
qual já nos referimos163.
No século XIX as relações entre o poder político e económico foram enunciadas,
no que se refere ao tabaco em Portugal, por Esteves dos Santos e por Maria Filomena
Mónica. Como no caso espanhol estudado ultimamente por Galván Rodríguez, a
questão da abolição do estanco foi muito discutida nas Cortes e na Imprensa, e apenas
em alguns breves momentos posta em prática.
No início do século XIX e em particular na sua segunda metade, as ilhas passam
por problemas económicos graves. Nos Açores foi o declínio da produção dos citrinos,
devido a uma doença nos laranjais, e consequente queda do seu comércio exportador,
e na Madeira a difusão da filoxera pelos vinhedos que prejudicou a produção de vinho,
na altura a grande exportação Madeirense.
Era necessário arranjar alternativas. Estávamos numa época em que a
industrialização começava a dar os primeiros passos em Portugal, ainda que
163 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), “Cultivo, abastecimiento y estanco del tabaco en España en
el tránsito del Antiguo Régimen al Estado Liberal”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de y FIGUEIROA-
REGO, João, coord., (2018), El tabaco y la esclavitud en la rearticulacíon imperial ibérica/o tabaco e a
escravatura ma rearticulação imperial ibérica, séculos XVII-XX), CIDEHUS, Universidade de Évora.
93
timidamente. Nos Açores e Madeira a solução encontrada foi a de aliar-se o
desenvolvimento da tradicional agricultura com a introdução de plantas passíveis de
industrialização. Dentro deste grupo de agroindustriais, nos Açores o tabaco foi um
dos elementos de eleição e, embora, se tivesse feito sentir pouco na Madeira, a luta
pela sua produção e manipulação também, se verificou.
Em S. Miguel, desde o início do século XIX, por volta de 1810, ou seja, em
plena vivência do monopólio do tabaco, que se iniciaram experiências de produção da
planta tabaqueira. Estes primeiros ensaios foram bem-sucedidos, mas a oportunidade
de serem conhecidos só apareceu em 1825, altura em que a conjuntura política de
Portugal mudara e o liberalismo, não só político como económico começava a
fazer-se sentir. Em 1820, com a revolução liberal, a monarquia Portuguesa passara
a constitucional, e o novo governo mandou fazer um relatório sobre os problemas
económicos das Ilhas. O encarregado deste relatório foi o Desembargador José Vicente
Cardoso, precisamente o proprietário dos terrenos onde se tinham feito os primeiros
ensaios da cultura do tabaco. Aparecera, finalmente, a altura propícia para apresentar,
oficialmente os resultados obtidos nas experiências com a planta do tabaco. Assim no
relatório de 1825, Vicente Ferreira Cardoso, não só dá conta dos resultados positivos
como desenvolve a hipótese de que se deveria expandir esta cultura na ilha de S.
Miguel, de modo a que não só o tabaco servisse para consumo próprio, como também
punha a possibilidade de S. Miguel passar a exportar o tabaco para o Reino, deixando
este de estar dependente das importações estrangeiras (não esquecer que o Brasil
obtivera a sua independência em 1822)164.
Apesar de algumas diligências feitas por alguns deputados açorianos nas Cortes
ou por dirigentes locais, a verdade é que pouco foi conseguido. A Lei de 25 de Abril de
1835 parecia abrir alguma possibilidade ao cultivo do tabaco nos Açores, mas a cláusula
que dava ao Governo e aos Contratadores do tabaco, o direito de se pronunciarem
primeiro, impediu qualquer desenvolvimento.
Só mais tarde, com a ação dinamizadora da Sociedade Promotora da Agricultura
Micaelense, criada em 1843, que se iniciou uma verdadeira luta em prol da produção
do Tabaco. Um dos primeiros passos, foi a publicação do relatório de José Vicente
Ferreira Cardoso de 1825, com uma introdução de José do Canto, onde se esplanava a
164 MACHADO, Margarida Vaz do Rego (2014), ”O contrato do tabaco nos finais do Antigo Regime ... ob.
cit.”, pp.171 e 172.
94
ideia de: sublocar o Exclusivo do Tabaco nesta ilha, ficando assim libertos da proibição,
ou alcançar do Corpo Legislativo aquela faculdade, mediante uma indemnização anual ao
tesouro na importância do exclusivo, repartida esta quantia pela produção num sistema
de dízimos ou cobrado pelas alfandegas na ocasião de exportação165.
Solicitou-se ao Governo e aos Contratadores do Tabaco permissão para se
cultivar alguns terrenos, à experiência, mas as respostas foram o completo silêncio.
Para além de pedidos oficiais dos Deputados como, por exemplo, o de 1848, levado à
Câmara dos Deputados por José Silvestre Ribeiro, ou a carta enviada pelo presidente
da SPAM, Jàcome Correia, ao Ministro e Secretário do Estado dos Negócios do Reino
ou ainda alguns pedidos do Governador Civil, será o Jornal O agricultor Micaelense
o palco principal desta luta, nomeadamente na década de 1850, quando finalmente
os Contratadores Gerais do Tabaco se pronunciaram contra qualquer liberalização da
produção.
A luta endureceu, muitas vezes contra os próprios contratadores insulares. Os
jornais da época estão cheios de artigos e caricaturas contra a pouca consideração que
o Contrato tinha para com os consumidores insulares, principalmente quando o preço
se elevava ou quando o tabaco não chegava às ilhas a tempo. Na Madeira, num relatório
da Junta Geral, ainda em 1864, refere-se o excessivo preço porque eram vendidos
os tabacos na Madeira, situação que ia contra todos as condições estabelecidas nos
contratos de arrematação, desde o início do século XVIII166.
Finalmente o decreto da abolição do contrato chegou em 1864. Todavia se agora
era possível cultivar e manipular tabaco nas ilhas, os entraves não acabavam e logo de
início se exigiu uma contrapartida: adicionais às contribuições diretas e a imposição
de um novo imposto sobre o consumo. Protestaram os Açorianos, protestaram os
Madeirenses mas os obstáculos continuavam, o que não impediu que, os insulares tudo
fizessem para contornar os entraves. No primeiro ano de cultura autorizada, produziu-
se 5 066Kg de tabaco em S. Miguel, 5 anos mais tarde, a produção elevava-se para 43
564,954 Kg e em 1890 a cifra aumentou para 200 000Kg. Na ilha Terceira, verificava-se
o mesmo, e na década de noventa produzia-se cerca de 80 000Kg167. Segundo vários
165 BPARPD - Fundo da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, Artigo sobre o Tabaco de José
do Canto in O Agricultor, Abril de 1848.
166 MACHADO, Margarida Vaz do Rego, (2017),”Ponta Delgada e o Funchal: entre o contrato … ob. cit.”,
p.156.
167 JOÃO, Maria Isabel, (1991) Os Açores no século XIX. Ob. cit., p. 54.
95
testemunhos dos proprietários das fábricas, não se produzia mais por falta de mercado
de consumo.
Paralelamente ao desenvolvimento da produção agrícola,foram-se fundando
várias fábricas. A primeira surgiu em S. Miguel, em 1866, havendo, em 1890, 6
fábricas nos Açores: três no Concelho de Ponta Delgada, uma no da Ribeira Grande
e duas no de Angra. No Faial, nos anos setenta fundaram-se 3 fábricas, todavia a
sua laboração foi efémera, tendo apenas a Fábrica Boa Viagem durado um pouco
mais, até 1880168.
Na Madeira, nos finais de oitocentos, embora a maioria dos seus habitantes
preferisse apostar em outras culturas, os jornais dão conta, nomeadamente em 1878,
de experiências feitas, em diversos locais da Ilha, da cultura do tabaco, informando
que este era de ótima qualidade e que os resultados eram deveras animadores. No
mesmo jornal, noticiava-se a abertura de uma fábrica de tabaco, dando bastante relevo
á sua inauguração169.
Apesar de toda este otimismo havia um grande problema: o tabaco insular só
podia ser vendido nos Açores, pois os impostos alfandegários, tanto para a folha como
para o consumo tornavam os tabacos açorianos pouco competitivos.
Em 1885, há uma pequena vitória por parte dos insulares ao conseguirem que o
tabaco manipulado no arquipélago passasse a pagar apenas direitos sobre a matéria-
prima. Todavia esta vitória foi efémera pois, a lei de 18 de Agosto de 1887 anulava
a anterior e determinava que os “tabacos manipulados que fossem das ilhas para o
continente, também reciprocamente os que viessem do continente para as ilhas, pagariam
como estrangeiros”170. Era, novamente, retirada a possibilidade da venda do tabaco fora
do arquipélago, realidade esta, que se agravou com a lei de 22 de Maio de 1888 e que
criou o regime da règie ou seja: O Estado voltava a administrar o fabrico do tabaco,
comprando nas ilhas 5% do tabaco consumido no continente.
A 20 de Novembro do mesmo ano, nova ordem baixava os direitos sobre o
tabaco estrangeiro, pagando os açorianos direitos sobre a folha estrangeira superiores
aos do que pagava a régie no continente. Os problemas continuarão na última década
168 IDEM, p. 54.
169 MACHADO,Margarida Vaz do Rego (2017),”Ponta Delgada e o Funchal: entre o contrato ... ob. cit.,
p.156.
170 BENSAÚDE, José, (1888), A questão do tabaco nas ilhas, S. Miguel, Typ. dos Açores, p.3.
96
do século XIX, nomeadamente com a criação do Contrato no continente e a fundação
da Companhia dos Tabacos.
O ambiente político e social nas ilhas era tenso, assistindo-se na última década
de oitocentos à criação do Primeiro Movimento Autonómico onde o lema era:
O estado não só gasta pouco com os Açorianos como gasta mal, por
isso lutemos pela livre administração dos Açores pelos Açorianos. Um dos
aspetos usados para exemplificar esta situação foi precisamente o do
tabaco: Estudou-se e desenvolveu-se a cultura do tabaco; estudaram-se
também os melhores processos de fabrico e estabeleceram-se fábricas, […]
e, quando tudo estava preparado com muito trabalho, estudo e dispêndio
de capitais, para que aproveitando-se o benefício que nos fora concedido,
pela lei de 1885, de se aplicar no continente ao nosso tabaco manipulado o
mesmo direito que pagava a folha estrangeira, abrindo-se-lhe os mercados
continentais ao consumo, tudo cai por terra, morto pela régie e pelo
monopólio e ficamos reduzidos ao consumo das ilhas que não excede a
150000K171.
O sonho da exportação para o continente ficou adormecido. No início do século
XX, o seu mercado eram as ilhas (Açores e Madeira), apenas a Fábrica de Tabaco
Micaelense conseguia exportar para as Colónias de África.
Conclusões
Os estancos ibéricos tiveram estruturas diferenciadas, marcadas, em primeiro
lugar, pela sua inserção no Atlântico: Brasil sempre esteve à margem do estanco,
enquanto a Monarquia espanhola tentou construir um monopólio imperial. Do outro
lado, a renda do tabaco em Portugal praticamente sempre esteve arrendada e neste
sentido se parece mais com o modelo francês, no entanto no caso espanhol, de um
modo geral a partir de 1730, esteve em administração direta. Numa outra prespetiva,
do Brasil e em termos de intercâmbio, trocou-se tabaco por escravos. Os fluxos de
171 Representação do povo micaelense em julho de 1891.
97
câmbio no caso Espanhol foram o inverso, já que o tabaco era pago por escravos pelas
empresas que realizavam esse tráfico, principalmente nas Antilhas.
Os arquipélagos portugueses e espanhóis do Atlântico médio estiveram imersos,
desde a restauração portuguesa de 1640, em dois mundos diferentes.Enquanto que
na península o estanco espanhol recebeu tabaco principalmente de Cuba juntamente
com tabaco brasileiro e virginiano, no arquipélago das Canárias só se importou tabaco
das Antilhas.Mesmo depois do Real Decreto de Portos francos de 1852, apesar de ter
havido uma fase prévia de ensaios, não se cultivou nem se elaborou. Por outro lado
a Madeira e os Açores dependeram exclusivamente da planta cultivada na Bahia, até
que, como nas Canárias, iniciou-se o seu cultivo século XIX.
Até 1717 o mercado das Canárias dependeu quase exclusivamente de Havana.
Depois os acréscimos foram distribuídos pela Fábrica de Havana e pela Fábrica de
Sevilha, ainda que numa proporção de 2/3 a favor da Ilha antilhana. Porém, entre o
Brasil e os Arquipélagos portugueses, não houve conexão direta embora, se realizassem
intercâmbios diretos com outros produtos. O tabaco do Brasil que chegava às Ilhas, tinha
de vir, necessariamente, do Jardim de Lisboa e era controlado pelos Contradores-Gerais.
Os subarrendadores das Ilhas nos finais de setecentos eram meros administradores do
contrato-geral. O tabaco cubano consumido nas Canárias era quase exclusivamente em
pó de mediana qualidade, portanto as Ilhas estiveram fora da órbita do tabaco fumado.
Na Madeira e nos Açores, usava-se mais o tabaco fumado,uma vez que o tabaco chegava,
maioritarimanete, em rolos embora, também, cheirassem tabaco em pó.
Houve relações de intercâmbio entre Açores e Madeira, mas pelo menos no caso
do tabaco não nos chegou informação que este comércio se estendesse às Canárias.
Ponta Delgada (S. Miguel) foi o porto que recebeu maior número de tabaco, embora
também chegasse tabaco aos portos de Angra (Terceira) e da Horta (Faial). Nas
Canárias a receção esteve concentrada em Santa Cruz de Tenerife, ainda que antes da
administração direta, també, chegasse a outras Ilhas.
Os navios que transportavam tabaco das Índias para as Canárias eram de registo
insular. De Cádis, além de barcos espanhois, chegavam holandeses, portugueses, fran-
ceses, genoveses, etc. Porém os navios de Portugal eram maioritariamente estrangeiros.
Açores trocavam tabaco por cereais, necessários para suprir o déficite cerealífero
de Portugal continental. Por seu turno, as Canárias contribuiram com uma receita
fiscal muito importante, em termos relativos, para os cofres da monarquia.
98
Outra diferença fundamental foi a existência ou não de fábricas nas Ilhas,
embora a sua produção deva ter sido muito limitada e quase não haja referências
documentais até ao século XIX. As portuguesas contaram desde finais do século XVII
com manufaturas (uma na Madeira e duas nos Açores). As espanholas não fabricaram
tabaco até ao último terço do século XIX, sendo o seu mercado principal a península
e o secundário a vizinha costa africana.Quanto às açorianas, apenas no século XX,
exportaram, mas em pequena quantidade, para as colónias africanas portuguesas.
Nas Canárias antes de 1852 podemos assinalar duas etapas na história da
economia tabaqueira. Uma fase de fundação do estanque, principalmente em mãos
de arrendadores privados – que, por sua vez, subarrendavam a renda pelas ilhas
até 1717 e um período de administração direta de 1717 a 1852, altura em que o se
extinguiu o estanco, originando um progresso na economia tabaquera insular que,
durante o século XX, alcançou o seu máximo desenvolvimento, convertendo-se numa
especialidade regional. Nos arquipélagos portugueses a primeira etapa alargou-se até
finais do século XVIII e caracterizou-se por um sistema de subarrendamentos insulares
por parte dos contratadores gerais. O segundo período alargou-se desde esta data até
1864, altura em que se aboliu o contrato em Portugal.
O sistema monopolista levou a que ambos os arquipélagos ficassem inseridos nas
redes do contrabando.No caso canário, com o sistema de administração direta,tentou-
se acabar com este problema mas sem êxito. Nas ilhas portuguesas, apesar de ainda
ser um tema pouco estudado, há algumas notícias que reproduzem o que acontecia
em Portugal continental, sendo frequentes as apreensões de barcos espanhois e
virginianos.
Finalmente, devemos assinalar que, será no século XIX, que os caminhos
iniciados pelas Canárias e os arquipélagos portugueses parecem convergir, quando
se desenham estratégias semelhantes que têm no tabaco, especialmente entre o
Arquipélago espanhol e os Açores, pois a Madeira ficará pela cana do açúcar, como
uma das principais alternativas par o crescimento económico.
99
O açúcar na vida quotidiana insular: o caso
dos Açores nos séculos XVIII e XIX
Sugar in everyday island life: the case of the
Azores in the 18th and 19th centuries
Susana Serpa Silva (CHAM/ UAc)
susana.pf.silva@uac.pt
Resumo
Na sequência das descobertas ultramarinas portuguesas, a produção de cana
de açúcar também chegou às ilhas dos Açores, na segunda metade do século XV. Com
alguma relevância nas ilhas de S. Miguel e de Santa Maria (Grupo Oriental), acabou por
não ser uma cultura de longa duração, devido a múltiplas vicissitudes. Não obstante,
o consumo de açúcar entrou, gradualmente, nos hábitos quotidianos insulares, com
diversas utilizações, entre as quais destacamos a produção da doçaria conventual e
popular. Com base em estudos e fontes diversificadas – desde o Arquivo dos Açores à
literatura de viagens e à imprensa – iremos apresentar algumas notas sobre a presença
deste produto na vida diária dos açorianos, nos séculos XVIII e XIX, sem esquecer a
implantação da fábrica de açúcar micaelense.
Palavras-Chave: cana de açúcar; produção açucareira; doçaria; hábitos do
quotidiano; Açores; séculos XVIII e XIX.
Abstract
Following the Portuguese overseas discoveries, sugar cane production also
reached the islands of the Azores, in the second half of the 15th century. With some
100
relevance on the islands of S. Miguel and Santa Maria (Eastern Group), it ended up
not being a culture of long duration, due several vicissitudes. Nevertheless, sugar
consumption gradually entered the island’s daily habits, with different uses, among
which we highlight the production of conventual and popular pastry. Based on diverse
studies and sources — from the Archive of the Azores to travel literature and the press
— we will present some notes on the presence of this product in the daily lives of
Azoreans, in the 18th and 19th centuries, without forgetting the implantation of the
S. Miguel island sugar factory.
Keywords: sugar cane; sugar production; pastry; everyday habits; Azores; 18th
and 19th centuries.
1. A efémera produção de cana de açúcar nos Açores
Segundo o cronista Gaspar Frutuoso — cuja obra é considerada, por Avelino Meneses,
como “o melhor meio de entendimento dos Açores no século XVI”172 —, na centúria de
quinhentos, as ilhas de S. Miguel e da Terceira encontravam-se cobertas de campos de
trigo e de pastel, que geraram inúmeros proveitos. Enquanto a produção cerealífera se
destinava ao abastecimento do reino e dos presídios de Marrocos, devido à insuficiência
frumentária de Portugal e à especialização sacarina da Madeira, a exploração de plantas
tintureiras era incentivada pela procura da indústria têxtil europeia que necessitava do
fornecimento de corantes. No entanto, outros cultivos também surgiram nas ilhas dos
Açores, desde tempos bem remotos. Com o propósito de granjear mais receitas e de
garantir subsistências, o próprio poder político incentivava novas culturas e, por isso,
ainda no século XV, também se cultivou a cana de açúcar173. Como refere Avelino Meneses:
À margem das culturas predominantes, que geram o enriquecimento
dos particulares e o proveito da coroa, persiste sempre uma pluralidade
172 MENESES, Avelino de Freitas de (2005), “[Açores] A Economia e as Finanças”, in Artur Teodoro de
MATOS, coord., A Colonização Atlântica, Tomo I, direção de Joel SERRÃO e Oliveira MARQUES, Nova
História da Expansão Portuguesa, Lisboa, Ed. Estampa, p. 333.
173 GOMES, Augusto (1997), Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel, 2ª edição, Angra do Heroísmo,
SREAS / Direção Regional da Cultura, p. 21, [ed. original: 1987].
101
de produções, mais adequada à diferenciação dos solos e à salvaguarda
das subsistências. (...) entre os cultivos secundários, tanto individualizamos
os frutos mais tradicionais, indispensáveis ao quotidiano das gentes, como
os bens mais inovadores, susceptíveis da conquista dos mercados. As
experiências vinícola e sacarina, com evoluções bem distintas, constituem
talvez os melhores exemplos174.
As ilhas atlânticas foram, então, laboratórios de novas e diferentes culturas, a
par de inovadores modelos de administração. De acordo com a crónica frutuosiana, foi
na ilha de Santa Maria que se introduziram as primeiras canas sacarinas, à semelhança
da Madeira. Para o efeito, terá vindo, desta ilha, um “mestre António Catalão, o qual
as prantou e fez prantar logo no princípio, e deram-se muito boas”175. Na descrição
que fez da mesma ilha, Gaspar Frutuoso refere-se aos lugares — situados adiante da
Vila, para os lados de Nossa Senhora dos Anjos — do Ginjal e dos Canaviais “porque,
antigamente, estiveram ali de açúcar”176. Ainda nas palavras do cronista, as canas
foram
a moer nesta ilha de São Miguel, em Vila Franca, e fez-se delas
muito bom açúcar; mas, pela pouca curiosidade dos homens, ou por não
haver regadias, ou pelo pouco poder, cessou a granjearia delas177.
Como se depreende, a cultura sacarina conheceu maior expressão nas ilhas de
Santa Maria e de S. Miguel, ou seja, no Grupo Oriental, onde terá sido introduzida
no século XV, embora com uma duração muito curta. Segundo Carreiro da Costa, são
vários os factos e os documentos que nos permitem inferir que a introdução do açúcar,
nos Açores, em particular na ilha de S. Miguel, ocorreu na 2.ª metade do séc. XV. Em
primeiro lugar, a vinda do Capitão Rui Gonçalves da Câmara, proveniente da Madeira,
por ter comprado a capitania desta ilha a João Soares de Albergaria. Em segundo lugar,
o depoimento de Gomes Eanes de Zurara ao afirmar que o Infante D. Pedro, antes de
174 MENESES, Avelino de Freitas de (2005), “[Açores] A Economia e as Finanças”, in ob. cit., p. 343.
175 FRUTUOSO, Doutor Gaspar (1971), Livro Terceiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Ed. do
Instituto Cultural de Ponta Delgada, p. 14.
176 IDEM, p. 96.
177 IBIDEM, p. 14.
102
falecer em 1449, fizera plantar açúcares nas ilhas de S. Miguel e Santa Maria e, por fim,
o teor do Foral das Alfândegas das Ilhas dos Açores, de 1499, que determinava que todo
o açúcar aqui carregado para o reino, em navios portugueses, não pagasse dízimo178.
Apesar da prevalência do Grupo Oriental, terá havido alguma cultura sacarina na
ilha do Faial, por volta de 1490, como atesta uma nota da lavra de Martim Behaim179,
enquanto, na Terceira, tudo indica que não terá passado de uma intenção do então
Provedor das Armadas, Pero Anes do Canto180.
A introdução do açúcar nos Açores não traduz nada de inusitado. Em Portugal,
registaram-se experiências de cultivo de cana sacarina, precisamente, no século XV, em
terras algarvias181, seguindo-se a ilha da Madeira que, na segunda metade da centúria,
já assumia um papel central nesta produção, quer pela qualidade do açúcar, quer pelos
preços acessíveis, exportando para o reino, a Flandres, Castela e Inglaterra182. Logo,
o cultivo nos Açores deu-se também, pela mesma altura, em virtude da forte procura
europeia. Não obstante, o fabrico do açúcar remonta à Antiguidade, em regiões da
Ásia (como a Índia e a Pérsia) ou o Egipto, onde a produção açucareira atingiu grande
qualidade. Foi através dos árabes que se deu a introdução da cana sacarina na orla
do Mediterrâneo, incluindo a Península Ibérica, contribuindo, depois, os genoveses
para a sua difusão. A utilização do açúcar era muito variada: com fins medicinais,
como adoçante e alimento dos mais ricos, como moeda-padrão, oferta de embaixadas
reais ou objeto de disposições testamentárias. No entanto, ainda em finais da Idade
Média este era considerado um produto de luxo sendo, por isso, apetecível, mas raro
178 COSTA, Carreiro da (1949), “A cultura da cana de açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua
história”, in Boletim da Comissão Reguladora dos Cereais do Arquipélago dos Açores, Ponta Delgada, Ano
V, n.º 10, 2.º sem., pp. 20-21.
179 “Martim Beheim e o seu Globo de Nuremberg”, in Arquivo dos Açores, ed. fac-simile, Ponta Delgada,
Universidade dos Açores, 1981, vol. I, p. 443.
180 COSTA, Carreiro da (1949), ob. cit., pp. 28-29. Avelino Meneses refere que, em 1552, Pero Anes do
Canto solicitou o uso de águas das ribeiras públicas nas plantações sacarinas a constituir na Agualva
e nas Lajes. Mas, este intento não se terá concretizado. Cf. MENESES, Avelino de Freitas de (2005), ob.
cit., p. 352.
181 As primeiras experiências em território luso ocorreram, por iniciativa árabe, nas regiões de Silves
e Tavira, ainda antes da reconquista cristã, devido às condições propícias do clima algarvio. Em 1404,
voltaram a surgir canaviais na Quarteira, pela mão de um mercador genovês. Cf. MIGUEL, Carlos
Frederico, “Açúcar”, in SERRÃO, Joel, dir. (1985), Dicionário de História de Portugal, Porto, Livraria
Figueirinhas, vol. I, p. 24.
182 IDEM, pp. 24-25.
103
e dispendioso183. Os médicos recomendavam-no como um reconstituinte e fonte de
energia184.
Na ilha de S. Miguel, o primeiro indivíduo que mandou pisar e espremer canas
de açúcar terá sido Lopo Anes de Araújo, que as terá adquirido a Sebastião Pires, ambos
habitantes de Vila Franca do Campo. Uma vez mais, a crónica frutuosiana narra como
este último obteve as canas:
Vindo da Ilha da Madeira uns mercadores que se agasalharam em sua
casa, deram a sua mulher algumas canas de açúcar que traziam, das quais ela,
como coisa por demais ou por curiosidade, plantou em um quintal pequeno de
casa uns pedaços, que em pouco tempo arrebentaram e cresceram (...). D’ali
começaram de espalhar e repartir por muitas pessoas da dita vila (...)185.
Segundo Urbano de Mendonça Dias, que nos seus estudos sobre Vila Franca
do Campo se reportou também à cultura da cana sacarina, os bons resultados que
se alcançaram com a cana madeirense, levaram um tal de Fernão Vaz, da ilha da
Madeira, a montar um engenho de moer cana, — que deu nome ao lugar (Engenho),
— muito semelhante ao usado no pastel. A mó é que era diferente, por ser uma
pedra grande e cavada, furada no fundo, para sair o sumo da cana. De acordo com
o mesmo autor, por meados do séc. XVII, ainda se encontravam engenhos nesta
região da ilha de S. Miguel, como comprovam as próprias correições. Os engenhos
tinham-se difundindo por Água d’Alto e Ribeira Seca186 e, em 1635, o município
de Vila Franca tentava proteger a cultura da cana, chegando a câmara a proibir o
transporte desta para fora do concelho (o que motivou furtos e desvios, obrigando,
de novo, a câmara a legislar). A venda do açúcar não era livre, pois uma parte era
tomada aos cultivadores ou arrolada pela Câmara, para o consumo público, com a
183 IBIDEM, p. 24.
184 RITCHIE, CARSON I. A. (1995), Comida e Civilização. De como a História foi influenciada pelos gostos
humanos, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 161. Veja-se também: BRAUDEL, Fernand (1992), Civilização
Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII. As Estruturas do Quotidiano, Lisboa, Teorema, pp.
191-192; MINTZ, Sidney W. (1986), Sweetness and Power. The Place of Sugar in Modern History, Viking,
Elisabeth Sifton Books, pp. 78 e ss.
185 FRUTUOSO, Doutor Gaspar (1971), Livro Quarto das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Ed. do
Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. II, pp. 58-59.
186 DIAS, Urbano de Mendonça (1944-1948), A Vida dos Nossos Avós, Vila Franca do Campo, Tip. A
Crença, vol. 4, p. 168.
104
designação de exames: em média, consistiam em um ou dois pães de açúcar e em
uma a três botijas de mel187.
Ao longo da 1.ª metade do século XVI, há noticias da vinda de mestres de açúcar,
oriundos da Madeira e das Canárias, para a ilha de S. Miguel. No arquipélago açoriano,
a produção anual rondava as 20.000 arrobas, sobressaindo, porém, o contributo da
ilha de S. Miguel e, em especial, de Vila Franca do Campo188. Não foi mera coincidência
que, em 1551, um dos argumentos aduzidos para a edificação do forte de S. Brás, em
Ponta Delgada, se relacionasse com o resguardo do açúcar face à cobiça de corsários e
de piratas189. Por meados de quinhentos, uma arroba de açúcar, produzida na Ribeira
Grande, na costa norte da ilha, para onde se estendera a produção, custava 800 réis190
o que faz estimar, como receita média anual, o montante de 160.000 réis. Chegaram
a construir-se engenhos no lugar das Furnas e houve alguns bastantes extensos nos
arredores de Ponta Garça, mas os elevados custos, as pragas e alguma ganância ditaram
a rápida queda da produção de cana191.
Apesar de alguns sinais de vitalidade, que se terão prolongado, modestamente,
em terras vilafranquenses, até ao século XVII, de acordo com Avelino Meneses, já no
século XVI se assistiu ao declínio irreversível da cana do açúcar nos Açores, em boa
parte por condicionalismos internos, mas também como consequência da concorrência
da Madeira, de S. Tomé e do Brasil. Para Arlindo Cabral e Carreiro da Costa foram
numerosas as causas da quebra desta produção, entre elas: as características dos solos,
que não aguentaram esta esgotante cultura; a escassez de lenhas para os engenhos;
os vendavais (e talvez o terramoto de Vila Franca do Campo); a praga que devastou os
canaviais, nomeadamente, o bicho da cana (Nonagria Sacchari) — uma espécie de larva
que logo na primeira metade do século XVI começou a atacar as plantações, formando
galerias no interior dos caules que começavam a fermentar — e, por fim, o abuso das
falsificações que terão afastado os compradores externos192.
187 IDEM, pp. 168-172.
188 MENESES, Avelino de Freitas de (2005), ob. cit., p. 352.
189 IDEM.
190 “Produção d’Assucar em S. Miguel em 1554”, in Arquivo dos ... ob. cit., 1983, vol. XI, pp. 305-306.
191 Veja-se FRUTUOSO, Doutor Gaspar (1971), Livro Quarto das Saudades ... ob. cit., vol. II, pp. 58-61.
192 CABRAL, Arlindo (1950), “Agricultura e Economia do Distrito de Ponta Delgada”, in Boletim da
Comissão Reguladora dos Cereais do Arquipélago dos Açores, Ponta Delgada, Ano VI, n.º 11, 1.º sem., p
25; COSTA, Carreiro da (1949), ob. cit., pp. 25-27.
105
Por meados do século XVIII, quer em S. Miguel, como na Terceira, terá sido
tentada, novamente, esta cultura, embora sem sucesso. No decurso de oitocentos,
alguma opinião pública persistiu, ainda, no sentido de incentivar o regresso do cultivo
da cana sacarina. Por exemplo, no jornal O Açoriano Oriental, encontra-se um artigo,
dirigido aos proprietários micaelenses, escrito por António Maria da Silva, continental
que se encontrava há três meses na ilha e que defendia o seguinte:
O clima desta ilha, a natureza do seu terreno, a humidade, que
sempre conserva a nutrição das terras e os abrigos dos muros e arvoredos,
tudo isto proporciona meios vantajosos à cultura da cana d’açúcar.
A Madeira já não oferece tantas e tão boas vantagens (…)193.
No mesmo artigo, também se afirmava que a cana queria boa terra, preparada e
adubada, pelo que, querendo os proprietários, esta poderia ser uma cultura de futuro e
uma fonte de riqueza. Sugeria-se a formação de uma sociedade e a aquisição de cana
na Madeira. Considerava, ainda, o autor que esta era uma cultura com muito potencial,
dado que podia levar à produção de aguardente e até a própria palha, depois de seca,
servia para queimar nos engenhos e para adubar a terra. Contudo, o rumo da produção
açucareira viria a ser muito diferente e, até aos novos investimentos nesta área, restou a
importação do açúcar do Brasil, como demonstra a tabela I.
Tabela I – Comércio Import / Export nos Açores (década de 20 do século XIX)194
Exportações Importações
Laranja e limão -150.000 caixas
Vinho – 14.000 pipas
Aguardante – 600 pipas
Carne (Vaca e porco)
Milho – 8.000 moios
Trigo – 6.000 moios
Fava, feijão e outras leguminosas
Manteiga e toucinho
Panos de linho – 12.000 varas
Peles e queijos
DESTINOS – Inglaterra, Portugal, Brasil, EUA,
Hamburgo, Rússia e França.
Inglaterra – panos de toda a qualidade e tecidos
de seda, loiças, papel e ferro.
Portugal – sal, pedra de cal, pinho de figueira,
chá, imagens, relíquias, brasões, diplomas, livros
e outros.
Brasil – algodão, madeiras, arroz, açúcar, café e
anil, alguma aguardente de cana.
Estados Unidos – azeite de peixe, pinho, aduelas
e linhaça.
Hamburgo, Rússia e França – vidros, ferro bruto
e em obra, lonas, brins, cobre, cordame, alcatrão,
resinas e linho.
Somente nos alvores do século XX, a produção de açúcar voltaria a despontar,
na ilha de S. Miguel, através da Fábrica de Açúcar de Santa Clara que fora convertida,
desde Outubro de 1884, em destiladora de álcool de batata doce. Em 1906, iniciou
193 O Açoriano Oriental, n.º 1.135, de 26 de Dezembro de 1857.
194 SOUSA, João Soares de Albergaria e (1995), Corografia Açórica. Descrição física, política e histórica dos
Açores, Ponta Delgada, Jornal de Cultura [Ed. Original: 1828].
106
a laboração de açúcar de beterraba, enquadrada na União de Fábricas Açorianas de
Álcool, consórcio estabelecido em 1902, com a fusão de cinco indústrias congéneres,
devido às rigorosas e protecionistas medidas governamentais que colocavam
entraves à entrada do álcool açoriano no continente195. A Fábrica de Santa Clara,
a par da indústria açucareira do Torreão, na Madeira, passaram a constituir as
únicas do género no país, ainda que cada uma extraísse o açúcar de matérias-primas
diferentes: a beterraba196 e a cana.
Segundo Augusto Gomes (sem referência a qualquer fonte), o cultivo da
beterraba, na ilha de S. Miguel, para aproveitamento forraginoso, parece datar dos
inícios do século XIX, embora exista a possibilidade da sua introdução ter ocorrido em
finais do século XVIII, por iniciativa de João Carlos Scholtz, prussiano que se fixara
na ilha e procedera à aclimatação de diversas espécies197. Não obstante, foi necessário
aguardar pelas experiências do agrónomo José Canavarro de Faria e Maia, para que
se procedesse à extração de açúcar, à moda da França e, com a fábrica, arrancasse a
produção açucareira198.
A produção de beterraba passou a ocupar vasta área da ilha de S. Miguel, tornando-
se uma importante fonte de receita para muitos agricultores micaelenses, bem como um
fertilizante natural dos solos e fonte alimentar para o gado. A época de laboração fabril
ia de julho a novembro, motivando intenso tráfico de carroças carregadas de beterraba,
entre os campos de cultivo e o portão sul da fábrica, situada em Ponta Delgada. À chegada,
os tubérculos eram tombados nos silos-canais de água corrente, operando-se, em
seguida, a transformação em polpa e depois em açúcar de elevado poder adocicante199. A
195 “Fábrica de Açúcar de Santa Clara”, in Madeira-Açores, n.º 2, 30 de Junho de 1951, p. 43. Segundo o
Eng. Vasconcelos Raposo, autor de um opúsculo intitulado Breve Resenha Histórica do Fabrico de Açúcar
de Beterraba, em S. Miguel, editado pela Sociedade Industrial Agrícola Açoriana, o grande impulsionador
desta nova indústria foi o decreto de 1901, que proibiu o emprego de álcool no tratamento do vinho do
Porto, pondo em causa a sobrevivência de muitas das fábricas de álcool dos Açores (as duas da Terceira
e as três de S. Miguel: Lagoa, Ribeira Grande e Santa Clara). Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 160.
196 Em 1744, Andreas Marggraf publicou um artigo sobre a possível extração de açúcar a partir da
beterraba. As suas ideias foram aperfeiçoadas e desenvolvidas, mais tarde, por um químico francês,
Benjamin Delessert que veio mesmo a produzir açúcar de beterraba em Passy. Em 1812, Napoleão
visitou a fábrica de Delessert e ficou tão bem impressionado que lhe atribuiu a cruz da Legião de Honra.
Cf. RITCHIE, CARSON I. A. (1995), ob. cit., pp. 184-185. Sobre as origens da produção de açúcar a partir
da beterraba, veja-se: AUSTIN, Harry A. (1928), History and Development of the Beet Sugar Industry,
Washington D. C., National Press Building.
197 GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 160.
198 IDEM, p. 160.
199 “Fábrica de Açúcar de Santa Clara”, in ob. cit., p. 44.
107
implementação desta fábrica está associada à intervenção do micaelense Hintze Ribeiro,
enquanto primeiro-ministro de Portugal. Tratou-se da única fábrica açucareira dos
Açores, não obstante os insistentes pedidos das forças vivas da ilha Terceira200. Acontece
que aquando do encerramento das fábricas de álcool, foram extintas as duas desta ilha,
bem como a da Ribeira Grande, em S. Miguel, tendo-se mantido a da Lagoa e promovido
a transformação da de Santa Clara em fábrica de açúcar de beterraba. Esta indústria ainda
hoje subsiste, mormente as dificuldades financeiras enfrentadas. Anteriores dificuldades
ocorreram em contexto da Grande Guerra, e suas consequências, quando a escassez deste
produto afetava as famílias de Ponta Delgada, obrigando à organização e racionamento do
consumo, por intermédio da intervenção da própria Administração do Concelho201.
2. A utilização do açúcar na vida quotidiana insular
O consumo do açúcar é indissociável da confeção de doçaria, embora em
pleno século XIX ainda fosse, por vezes, ministrado por prescrição médica, devido
às suas qualidades energéticas. A grande novidade deste período, residiu numa certa
democratização do consumo açucareiro, uma vez que já não se circunscrevia à alimentação
dos ricos. A exploração da beterraba e a industrialização muito contribuíram para esta
realidade. Além disso, desde o século XVII, a sua produção, com base na cana sacarina,
tornara-se mais rentável devido à descoberta de um novo tipo de bebida, proveniente do
processo de destilação: o rum.
Nos Açores, as receitas de doçaria chegaram nos tempos do povoamento,
particularmente por via dos mais abastados e das ordens religiosas femininas. Entre estas,
terão sido a professas, oriundas de boas famílias, a desenvolver e a aprimorar a confeção
de doces. Como explicam Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, na Europa, desde o
século XVI, a cozinha era uma atividade servil, mas a feitura de confeitaria e de gulodices
era do interesse das damas e das senhoritas das elites sociais. Daí o surgimento dos
primeiros livros de receitas que eram autênticas “compilações de segredos”202. Muitas
receitas, aliás, ficaram na posse de conventos ou de algumas famílias durante séculos.
200 BPARDP – Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro – Documentos sobre produção de açúcar – 8.35.6.
201 Correio dos Açores, n.º 279, 17 de abril de 1921.
202 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998), História da Alimentação, São Paulo, Estação
da Liberdade.
108
De acordo com Augusto Gomes203, na ilha de S. Miguel, os marcantes contrastes
sociais existentes, deste longa data, refletiam-se na própria cozinha, podendo-se distinguir
a cozinha rica, a burguesa e a pobre. A primeira diversificou-se e aprimorou-se, nas casas
solarengas, graças às múltiplas viagens das grandes famílias micaelenses, à passagem de
inúmeros viajantes estrangeiros e nacionais, a receitas vindas da Inglaterra, no tempo
áureo do comércio da laranja e ainda aos receituários oriundos dos conventos, muito ricos
no domínio da doçaria. Já a cozinha burguesa, que nasce da chamada classe média, terá
raízes nos diferentes períodos económicos, do trigo aos citrinos, traduzindo-se em
pratos substanciais com características regionais. A sua doçaria
abrange alguns doces conventuais, bolos de confeção vulgar, biscoitos,
doces de frutas e licores caseiros204.
Segundo Luís Arruda, até meados do século XX, a confeção de doces mais
elaborados manteve-se restrita às cozinhas das casas mais abastadas e, a seu tempo,
também às dos conventos. Muitas das receitas foram levadas daquelas casas pelas
professantes, que as modificaram ou aperfeiçoaram durante o tempo passado na
clausura. Posteriormente, estas melhorias foram transmitidas a familiares e alargaram-
se às comunidades, em especial depois da extinção dos conventos205.
O relevante papel das ordens religiosas femininas na elaboração de sobremesas
e na intrínseca utilização de açúcar é, assim, reconhecida por diferentes historiadores.
Luís Mendonça sublinha mesmo que a doçaria açoriana foi impulsionada pelas freiras,
que emprestavam um enorme primor à confeção de doces, caracterizados pelo uso de
grandes quantidades de açúcar e de gemas, como acontecia, aliás, por todo o país. Além
disso, o mesmo autor destaca ainda a variedade da doçaria regional, indissociável das
famílias mais prósperas e das festividades religiosas206.
Desde longa data, pois, a difícil “arte de fazer doces” integrava a vida quotidiana
das ordens religiosas, associada, por vezes, a ocasiões ou datas especiais e, ainda, à
arrecadação de receitas, muito importantes para a própria sobrevivência das freiras e
dos seus conventos. Leite Ataíde descreve o que considerava uma “praxe” própria da
203 GOMES, Augusto (1997), ob. cit.
204 IDEM, p. 22.
205 ARRUDA, Luís (2003), “Doçaria”, in Enciclopédia Açoriana, Governo dos Açores / Direção Regional da
Cultura, disponível em: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=2762
206 MENDONÇA, Luís (1998), Aspectos da Vida Quotidiana nos Açores (perspectiva histórica), Ponta
Delgada, Nova Gráfica, pp. 53-54.
109
vida monástica:
Presentear o afeiçoado, o protector do convento, ou as famílias das
freiras com guloseimas, dando por esta forma uma prova de reconhecimento
aos eclesiásticos e aos colaboradores das festividades religiosas, era uma
praxe, um uso seguido nos mosteiros (...). A estas prendas, tão agradáveis pelo
sabor como finas pela intenção, deram as freiras a graciosa denominação
de mimos, termo que encerra todo o sentido da vida conventual (...).
A arte de fazer doces era complicada, tinha os seus segredos,
receitas misteriosas exigindo cuidados infinitos e particular perícia. Os
doces apareciam a propósito de tudo, nas profissões, nas visitas dos Bispos,
nas festas da igreja, nas procissões e constituíam uma importante fonte de
receita (...)207.
Alguns dos estrangeiros que visitaram os Açores, no século XIX, legando, à
posteridade, relatos e descrições das paisagens e dos costumes insulares, refletem
nos seus testemunhos apreciações sobre a vida conventual e, por consequência,
também sobre a própria doçaria. O britânico Briant Barrett, que percorreu sete ilhas
do arquipélago entre 1812 e 1814, relata, assim, a visita que fez ao convento de Vila
Franca do Campo, em S. Miguel:
O Padre Secretário levou-nos, nessa mesma tarde, a fazer uma visita
à Abadessa do Convento das Freiras; ela recebeu-nos, afavelmente e, como
era habitual, fez-nos imensas perguntas.
A Abadessa era uma senhora bonita, fina e distinta que tinha
cinquenta e seis anos de idade, mas o seu rosto aparentava uma
juventude e saúde de quarenta anos. (...). O Convento das Freiras, em
Vila Franca, era grande e nele habitava muita gente, tendo cerca de 200
freiras professas e não professas. O seu rendimento, de acordo com o
preço do cereal em Ponta Delgada, no ano de 1812, era equivalente a
6.000 libras por ano.
207 ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), Etnografia, Arte e Vida Antiga dos Açores, Coimbra, Biblioteca
Geral da Universidade, vol. I, pp. 387-389.
110
A Abadessa abriu os grandes portões para que pudéssemos apreciar o
primeiro pátio que tinha um fontenário (...). As freiras cantavam e trabalhavam
nas suas respectivas celas (...). Fomos obsequiados pela Abadessa que nos
ofereceu uma grande variedade dos melhores doces ali confecionados, bem
como um grande pudim de arroz que foi muito apreciado (...)208.
No final da passagem anterior, Barrett refere-se, certamente, ao conhecido
“arroz doce”, feito à base de arroz, leite, açúcar, gemas e canela (polvilhada) e que,
ainda nos nossos dias, é muito popular nestas ilhas. Aliás, o consumo de arroz
vulgarizou-se, em Portugal, desde inícios de oitocentos, sendo aplicado em inúmeros
pratos e receitas209.
Aquando da sua estada na ilha do Faial, o mesmo viajante também registou
o elevado montante de rendimentos dos conventos de freiras, lamentando, porém,
que os síndicos os administrassem mal e a seu favor, remetendo as religiosas para
situações de autêntica pobreza. Segundo Barrett, o que então lhes valia era o auxílio
de familiares, bem como a confeção e venda de flores artificiais, velas de cera, bolos
e doces, bem como a fiação de linhos210. Quer isto dizer que as freiras eram mulheres
empreendedoras, procurando, com os seus dotes manuais e culinários, obter os
proventos necessários ao seu sustento.
Em 1821, John Webster, médico norte-americano, também se referiu, nos seus
escritos, às visitas que as freiras recebiam nos conventos e nos respetivos locutórios
(grades), as quais incluíam, naturalmente, diferentes familiares, mas também amigos,
conhecidos e até estrangeiros. No interior das instalações, as religiosas preparavam
chá, que colocavam numa bandeja, juntamente com inúmeros bolos e doces, que
passavam, às visitas, por uma abertura na parede. Os criados que as acompanhavam
serviam-nas e depois serviam-se a si, “comendo sem cerimónia alguma”211. Já para
Walter F. Walker (1885), a inutilidade dos conventos só era atenuada pelo mérito de
208 BARRETT, Briant (2017), Relato da Minha Viagem aos Açores, 1812-1814, 1.ª edição, Ponta Delgada,
Letras Lavadas, pp. 123-124.
209 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), Portugal à Mesa. Alimentação, etiqueta e sociabilidade,
1800-1850, Lisboa, Hugin Editores, p. 44.
210 IDEM, P. 248.
211 WEBSTER, John (1983), “Descrição da Ilha de S. Miguel em 1821”, in Arquivo dos Açores, ed. fac-si-
mile, Ponta Delgada, 1983, vol. XIII, p. 144.
111
fornecerem ao público flores de penas ”de feitura primorosa” e numerosas compotas
e doces elaborados ”com notável perfeição” e cujo produto das vendas revertia a favor
da subsistência das próprias212.
De um modo geral, a oferta de frutas e doces, incluindo bolos e malassadas,
integrava os hábitos da população insular, como sinal de gratidão ou como recompensa
por serviços ou favores que se deviam. Em sociedades onde prevalecia o setor
primário, era natural que estas dádivas fossem sustentadas em animais domésticos,
produtos agrícolas e outros de confeção artesanal e da natureza gastronómica. Assim
testemunhou Webster:
O costume de presentear amigos e conhecidos em certas ocasiões do
ano é cumprido com grande pontualidade por todas as classes. Assim, pela
Páscoa, seria considerado altamente vergonhoso não mandar ao médico da
família, galinhas, porcos, frutas, doces, etc. A pessoa mais pobre, por ele
tratada, empenha-se em lhe oferecer qualquer lembrança, e considerar-se-
-ia ofendida se ela não fosse aceite. Pelo Natal, e algumas outras festas, as
famílias fazem uns bolos especiais, que mandam ao marchante, alfaiate,
sapateiro, lavandeira e outras pessoas, por elas empregadas durante o ano.
Na terça-feira de Carnaval as freiras presenteiam todas as pessoas das suas
relações com grandes quantidades de amêndoas, doces secos e malassadas.
Nestes dias fazem-se, às vezes, presentes de grande valor a funcionários
públicos; e outros de menor importância aos empregados da casa213.
Entre a doçaria conventual, podemos destacar as queijadas de Vila Franca, na
ilha de S. Miguel e o pudim do Conde da Praia da Vitória, na ilha Terceira. As primeiras,
estão ligadas ao convento de Santo André, da 1.ª Regra de Santa Clara, edificado em
1533, em Vila Franca do Campo, no qual também se confecionavam os biscoitos de
aguardente e os bolos de D. Adélia. As queijadas remontam ao século XVII e começaram
por ser feitas por ocasião da procissão do Santíssimo Sacramento214. Nos finais do
212 WALKER, W. Frederick (1967-1968), “Os Açores ou Ilhas Ocidentais”, in Insulana, ICPD, vol. XXIII,
1.º sem., p. 54.
213 WEBSTER, John (1983), “Descrição da Ilha....”, in ob. cit., p. 46.
214 Cf. ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., pp. 390-391.
112
séc. XVIII vieram para o convento freiras de origem holandesa e espanhola, que
confecionavam as queijadas em conformidade com uma receita secular. Trata-se de
uma “queijada macia, suculenta e doce, com larga tradição e de grande qualidade”215.
Fig. 22 – Queijada da Vila.
Fonte: https://www.noticiasdecoimbra.pt/vila-franca-do-campo
O pudim do Conde da Praia da Vitória é igualmente um doce conventual, feito
à base de puré de batata, dúzias de gemas e açúcar. Remonta ao século XVII e está
ligado às religiosas do Convento de S. Gonçalo, em Angra do Heroísmo. Tomou o nome
do Visconde de Bruges, 1.º Conde da Praia da Vitória, Teotónio Ornelas de Bruges,
por ser o seu pudim favorito, servido habitualmente nos banquetes que oferecia em
sua casa. Posteriormente, o pudim terá sido levado para outras casas da nobreza
terceirense, acabando por dar origem a queijadas, mais apreciadas nas festas216. De
acordo com o estudo de Isabel Drumond Braga, no século XIX, o recurso à batata, na
culinária, abrangia inúmeras receitas e ia dos pratos principais às sobremesas. Numa
obra publicada em 1849, e que a autora refere217, aparecem duas receitas de pudim
215 Veja-se: http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/docaria-regional/queijadas-de-vila-franca/.
Veja-se ainda: Confederação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas – Região Autónoma dos
Açores. Disponível em: https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/zona-geografica/regiao-autonoma-dos-
acores?start=20
216 Cf. https://cozinhaacoriana.pt/pudim-conde-da-praia/. Veja-se também: http://www.jornaldapraia.
com/noticias/ver.php?id=890
217 Collecção de Verdadeiras e Proveitosas Receitas que servem para fabricar com Economia e Facilidade
varias Qualidades de Doces, Bolachinhas e Liquores, com o Conhecimento dos Pontos do Assucar, e o Modo
113
de batatas (uma do reino e outra das ilhas) e em ambas, ao puré do tubérculo, depois
de cozinhado, juntavam-se muitas gemas, poucas claras, açúcar e uma boa porção de
manteiga, levando-se este preparado ao forno218.
Fig. 23 – Pudim do Conde da Praia da Vitória.
Fonte: https://cozinhaacoriana.pt/pudim-conde-da-praia/
Já em 1824, por carta que enviou ao seu amigo de Ponta Delgada, António
José de Vasconcelos, o desembargador Vicente José Ferreira Cardoso da Costa, que se
encontrava em Mafra, solicitava o envio de batatada, um doce que ainda era diferente
dos pudins anteriores219. Na missiva, dizia assim:
Envie-me batatada e venha feita com açúcar refinado para ser mais
clara. Há um modo de a fazer mais singular, que é assando a batata no
forno, em vez de a cozer e depois ralando-a como se faz à cozida. Quero
algumas dúzias dela assim, são para as Senhoras Infantas. Se viesse em
copos de dois ou três ou quartilho era melhor.
Da ordinária quero sessenta dúzias de canecas. Quero também
batatas em raposas ou barricas. No Cabouco deixei muita plantada. (...).
Como me dizem que eu quero pôr Sua Majestade um mangericão e que me
de preparar as Bandejas de Doces, por B.A.B., Lisboa, Tipografia e A. Rebelo e Irmãos,1849.
218 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), ob. cit., pp. 47-48.
219 ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., p. 392.
114
querem fazer a vontade é necessário adoçar-lhe a boca220.
A batatada também fazia parte da doçaria conventual que era, porém,
muitíssimo variada, incluindo ainda: especiones, morgados221, bolos de esperança222,
biscoitos cobertos, lágrimas e repentes, raivas, fatias da China223, suspiros, bocas de
dama, barrigas de freira224, bolos de amor225, pingos de tocha226, maçarocas e flores de
massa de ovos e amêndoa, estas duas últimas verdadeiras obras de arte executadas
pelas freiras mais habilidosas do Convento da Esperança, em Ponta Delgada227. De um
modo geral, entre os ingredientes predominantes contam-se açúcar, em abundância,
e que é fundamental pelos diferentes pontos de calda que propicia. Acresce o elevado
número de gemas (as claras eram pouco utilizadas porque serviam para outros usos,
tais como engomar os hábitos das religiosas ou os fatos dos homens mais prósperos)
220 Ao adoçar a boca de D. João VI, das Infantas e da Corte, o desembargador procurava conseguir bons
negócios da administração pública a favor da ilha de S. Miguel e dos Açores. Cf. ATAÍDE, Luís Bernardo
Leite (1973), ob. cit., p. 393.
221 Estes doces, com recheio de doce de ovos, eram muito característicos da então vila da Ribeira
Grande, sendo confecionados pelas freiras Clarissas do Convento de Jesus, desta localidade, e muito
apreciados em Ponta Delgada. Depois da extinção das ordens religiosas e do encerramento de
conventos, algumas pessoas (leigas e religiosas) começaram a fazê-los em suas casas, mas a receita
acabou por ser um pouco adulterada. Em vez da massa tenra muito fina, coberta por um calda de
açúcar, passaram a ser cobertos apenas por uma calda grossa de açúcar. Veja-se GOMES, Augusto
(1997), ob. cit., p. 184.
222 Além do açúcar em ponto de pasta, leva-se ao lume miolo de pão, cidrão picado, canela, amêndoas
pisadas e manteiga. Fora do lume, adiciona-se uma dúzia de gemas e volta a cozer. Cobrem-se com
massa fina e então vão ao forno. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 170.
223 Desconhece-se a origem deste doce, mas há quem o atribua ao Convento de Santa Iria em Tomar,
pelo que além da designação de fatias da China, também são conhecidas como fatias de Tomar. São
feitas à base de dúzias de gemas, muito bem batidas e cozinhadas em banho-maria. Depois de cortadas,
são mergulhadas numa calda de açúcar. Disponível em: https://lifecooler.com/artigos/fatias-da-china-
ou-de-tomar/7539
224 Pudim atribuído à Ordem das Ursulinas, do Convento de Vale da Mó, no concelho de Anadia. É
feito à base de grande quantidade de gemas, açúcar, água e manteiga. No entanto, existem várias
versões, algumas das quais utilizam fatias de pão de trigo, sem côdea ou de pão de ló. Disponível em:
https://ncultura.pt/-5receitas-divinais-da-docaria-conventual-portuguesa/. Veja-se também: GOMES,
Augusto (1997), ob. cit., pp. 191-192.
225 Também eram confecionados à base de batata cozida e ralada, muito açúcar, gemas de ovos e algumas
claras, juntando-se ainda canela, casca de laranja e farinha suficiente para que a massa permita moldar
os bolos com forma arredondada. Cf. GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 169.
226 São doces feitos à base de fios de ovos e calda de açúcar e, em S. Miguel, eram muito característicos do
Convento de Santo André, em Ponta Delgada. Atribui-se a origem dos fios de ovos ao Mosteiro de S. Bento
de Avé Maria, no Porto. Disponível em: https://confeitarianacional.com/portfolio/pingos-de-tocha/
227 ATAÍDE, Luís Bernardo Leite (1973), ob. cit., pp. 389 e ss.
115
e, por vezes, a amêndoa, o fruto seco que mais se destacava228.
O elevado teor calórico desta doçaria atesta uma particularidade gastronómica
que se fez sentir a partir dos séculos XVII e XVIII, pois a pretexto de um novo gosto, as
preocupações dietéticas deram lugar à gulodice. Os refinamentos da cozinha deixaram
de buscar a boa saúde, em prol da satisfação dos mais gulosos229.
Se alguma desta doçaria terá vindo, para as ilhas, pela mão de famílias proemi-
nentes, outra terá sido adaptada ou terá mesmo surgido nas próprias ilhas, tornando-
-se típica da região. O alfenim, por exemplo, que se crê ser de origem árabe (al-fenid),
terá sido introduzido, na região, através de habitantes do reino, mas tornou-se numa
antiga guloseima tradicional da ilha Terceira, associada a festividades religiosas, sen-
do confecionada com água, vinagre e açúcar. O segredo reside no ponto do açúcar e,
com esta massa, ainda quente, moldavam-se animais ou partes do corpo humano, as-
sumindo assim também um carácter simbólico (ex-voto)230.
Fig. 24 – Pombinha de alfenim, muito usada pelas Festas em honra do Divino Espírito Santo.
Fonte: http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/docaria-regional/alfenim/
Fig. 25 – Queijadas D. Amélia.
228 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), ob. cit.,p. 42.
229 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (1998), ob. cit., p. 549.
230 Cf.: http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/docaria-regional/alfenim/
116
Fonte: https://medium.com/made-in-azores/dona-am%C3%A9lia-um-doce-de-rainha-6128784d4211
Também oriundas da ilha Terceira são as queijadas D. Amélia, pequenos bolos,
de aspeto simples, textura melada e sabor exótico, por incluírem muito açúcar e
várias especiarias (como canela e noz moscada). São tidos como uma homenagem da
sociedade angrense à rainha D. Amélia, na sequência da visita régia de 1901. Há quem
considere que estas queijadas terão resultado de uma adaptação do chamado Bolo
das Índias, cuja receita, surgida na época das descobertas ultramarinas portuguesas,
refletia o abundante comércio de especiarias, repletas de propriedades conservantes
que asseguravam o consumo deste bolo durante muito tempo231. Segundo Eduardo
Justo Nobre, foi no gigantesco piquenique da feira pecuária, realizada na planície do
Paúl (onde se reuniram mais de 30.000 pessoas), que D. Amélia provou estes bolinhos,
feitos com base nos tradicionais “pudins terceirenses”, repletos de ovos, açúcar,
manteiga, farinha de milho, mel de cana, cidrão e especiarias e aos quais ainda se
adicionava o não menos tradicional doce de laranja. Porém, a frágil consistência dos
bolos e o acidentado do percurso, em carros de bois, levou alguém a sugerir que se
retirasse o doce de laranja, aumentando a consistência dos mesmos. Uma vez que
a rainha elogiou e apreciou os bolinhos, as queijadas batizadas com o nome de D.
Amélia, tornaram-se, até hoje, uma especialidade da doçaria da ilha Terceira232.
A população açoriana, em geral, não tinha meios para poder confecionar receitas
231 Cf. Rogério Sousa, in https://medium.com/made-in-azores/dona-am%C3%A9lia-um-doce-de-
rainha-6128784d4211
232 Eduardo Justo Nobre (2001), “A Visita Régia à Madeira e aos Açores”, in Notícias Magazine. Diário de
Notícias, n.º 483, agosto, pp. 25-26.
117
elaboradas ou para usar a doçaria para além de datas festivas. Como refere Braudel,
a “revolução do açúcar” teve lugar precocemente, mas progrediu muito devagar e não
chegava a todas as mesas233. Entre as classes populares este ingrediente continuava a
ser, ainda no século XIX, um produto de luxo e, como tal, usado em ocasiões especiais.
De acordo com Urbano Mendonça Dias, os batizados, por exemplo, celebravam-se,
desde oitocentos, dentro de 30 dias após o nascimento, motivando a realização de uma
pequena festa, em família: um almoço em casa dos pais, com a presença dos padrinhos,
dos avós e da parteira. Os padrinhos, conforme as suas posses, contribuíam para o almoço,
além de oferecerem o vestido e uma lembrança. Alguns davam o vinho, outros ofereciam
as galinhas ou carne de vaca e não podiam faltar pão e massa sovada234, uma espécie de pão
macio e doce, cuja designação se deve ao processo de amassar, ou seja, muito sovado. Esta
gulodice era e ainda é muito apreciada no meio rural açoriano, sendo caracterizada por
um miolo amarelo e uma côdea acastanhada. Assume diferentes designações consoante
o formato e a época festiva, não obstante estar particularmente associada aos festejos em
louvor do Espírito Santo, profundamente arreigados entre o povo açoriano235.
Fig. 26 – Bolo de massa sovada.
Fonte: https://www.iloveazores.net/2020/04/aprenda-receita-da-massa-sovada-para.html
No tocante às crianças, nos primeiros dias após o nascimento, as mais
abastadas eram alimentadas com o leite materno ou da ama ou, na falta deste, com
233 BRAUDEL, Fernand (1992), ob. cit., p. 193.
234 DIAS, Urbano de Mendonça (1949), A Vida dos Nossos Avós, Vila Franca do Campo, Tip. A Crença, vol.
9, p. 47-48. No século XVIII haviam sido proibidas, pelo Bispo da Diocese, a oferta de velas de alfenim,
por ser contra as cerimónias próprias da Igreja. IDEM, p. 50.
235 Veja-se GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 31.
118
leite de vaca desnatado e cortado com água. As crianças mais pobres, comiam sopas
de pão de trigo, fervidas em água e envolvidas com um pouco de açúcar. Também
era habitual, para sossegar as crianças, meter-lhes na boca uma chucha de sopas
de trigo, enroladas com açúcar, tudo atado a um pano ralo, a que davam o nome de
boneca236.
Quanto aos casamentos, tanto para os pobres, como para os ricos,
representavam uma importante festa de família. Entre as camadas populares, depois
da cerimónia, seguia-se a boda que, habitualmente, se realizava em casa dos pais da
noiva. A comida era abundante e não podiam faltar carnes de vaca, galinhas, massa
sovada e arroz doce. Consoante a ilha, podiam servir-se também espécies, rosquilhas
de aguardente, bolo de coalhada, doce branco (S. Jorge), queijadas de leite, pastéis de
arroz e encharcados de ovos (Graciosa), os melindres (Terceira), as rosquilhas e os bolos
de véspera (Pico), os biscoitos encanelados, biscoitos de orelha, as cavacas e orelhas de
abade (Santa Maria). De toda esta variedade, destaquemos apenas alguns exemplos
típicos.
Fig. 27 – Espécies.
Fonte: https://radiolumena.com/especies-de-sao-jorge-sao-o-doce-mais-tradicional-da-ilha-caudio/
Fig. 28 – Cavacas.
Fonte: http://oqueenosso.blogspot.com/2008/11/receitas-marienses-cavacas.html
236 DIAS, Urbano de Mendonça (1949), ob. cit., vol. 9, pp. 52-53.
119
As espécies, características da ilha de S. Jorge, terão a sua origem nos tempos
de abundância das especiarias, razão, aliás, da sua própria designação. É possível, pois,
que remontem ao tempo dos povoadores, com influências do Alentejo e da Flandres237.
Entre as especiarias que condimentam o recheio encontram-se ervas doces, canela
e pimenta. Em forma de pequenas rosquilhas de massa tenra, transversalmente
golpeadas na parte superior, deixam sobressair o recheio contrastante de cor castanha.
Na ilha da Pico, os bolos de véspera estão muito associados às tradições em torno
dos Impérios e das festividades do Espírito Santo. Em todas as freguesias, e desde tempos
recuados, era hábito distribuir, pelos habitantes ou forasteiros, a massa sovada que,
conforme as localidades, assumia a forma de pão, de rosquilhas ou de vésperas. Estes
bolos, feitos à base de farinha, açúcar e muito leite, depois de levedarem são sovados até
a massa ficar macia. Em seguida, são estendidos e ficam com uma forma redonda. Têm
direito a chavão, ou seja, a serem marcados com as insígnias do Espírito Santo, pelo que
são marcados seis a nove vezes, no centro e à volta e, depois de cozidos em forno de lenha,
são benzidos e distribuídos três dias antes da festa. É esta a razão da sua designação238.
De origem portuguesa e popular, as cavacas tornaram-se muito típicas da ilha
de Santa Maria. Cobertas com uma calda de açúcar, a sua massa é confecionada à base
de farinha, ovos, azeite e água. Não obstante, também se designam como cavacas,
confecionadas de modo diferente, doces de origem conventual, como as cavacas de
237 “Espécies de S. Jorge”, disponível em https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/cat/doces-e-produtos-de-
pastelaria/698-especies-de-s-jorge
238 “Bolos de Vésperas”, disponível em https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/cat/doces-e-produtos-de-
pastelaria/683-bolos-de-vesperas
120
Resende (distrito de Viseu)239.
Entre as classes média e popular era costume o fabrico caseiro de licores de leite,
de café ou de cacau ou ainda aromatizados por frutos, como a tangerina e a laranja ou
por ervas, como o anis ou o poejo. Ao longo do verão, como afirma Mendonça Dias,
era hábito, entre as camadas média e alta da população açoriana, confecionar doces
ou compotas como meio de conservar a fruta e para consumir durante o inverno.
Assim, eram comuns os doces de amora, batata-doce, figo, marmelo e tomate-de-
capucho, mas também de araçá, goiaba, nêspera, groselha, entre outros e que incluíam
uma considerável quantidade de açúcar, que permitia a conservação. Também no
continente a conserva de frutas passava pela confeção de marmeladas, geleias, caldas,
doces e compotas, num processo de adição de açúcar (e, por vezes, de aguardante) e de
cozedura, a qual implicava a redução do primeiro, através do calor240.
Ainda de acordo com Mendonça Dias, entre as guloseimas obrigatórias nos
arraiais, casamentos e outras festividades, contavam-se os rebuçados, os confeitos e os
caramelos artesanais. Os primeiros eram feitos com açúcar em ponto e aromatizados
com raspa de limão ou laranja, sendo depois talhados em pequenos pedaços ou em
forma de estrelas, de pequenos animais ou de pequeno bastão e, por fim, embrulhados
em papéis de cores vivas. Os caramelos eram confecionados com uma mistura
de açúcar, leite, manteiga e cacau levada ao lume, a ferver, e depois de arrefecida
convenientemente, partida aos bocadinhos241.
O calendário litúrgico também marcava a culinária insular no que concerne à
doçaria. No Natal desde há muito que se cozia a massa sovada, pelo Carnaval fritavam-
se as malassadas242 (em que podemos encontrar algum paralelismo com as farturas do
continente), pela Páscoa consumiam-se os folares (massa sovada com ovos cozidos
semi-envolvidos no preparado) e as fatias douradas (modo de aproveitamento de fatias
239 Ver: https://maisresende.pt/cavacas-de-resende
240 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond (2000), ob. cit.,p. 90.
241 Na confeção de caramelos também se podia adicionar natas, mel, leite ou açúcar rosado. Dependia
do tipo de caramelo, fosse ele de chocolate, de leite, rosados ou melados. Cf. GOMES, Augusto (1997),
ob. cit., pp. 242-243.
242 Segundo Augusto Gomes, embora existam interpretações que defendem a existência da designação
de melassadas, por em tempos mais remotos se adicionar melaço da cana de açúcar, no seu entendimento
não faz muito sentido pois, assim, a grafia devia ser melaçadas. Na opinião deste estudioso da gastronomia
açoriana, a versão correta está na palavra mal-assadas, tomando por base o seu processo de confeção.
Existe mesmo a palavra mal-assada como referência a ovos batidos e fritos, cobertos com açúcar. Cf.
GOMES, Augusto (1997), ob. cit., p. 181. A base das malassadas está na farinha, no açúcar, ovos, leite,
fermento e alguma gordura, sendo o maior segredo o amassar muito bem e aguardar a levedura.
121
de pão, embebidas em leite e gemas, fritas e polvilhadas com açúcar e canela) e no dia
de Santa Maria de Agosto, os bolos lêvedos243, ainda hoje muito característicos da ilha
de S. Miguel e, em particular, da freguesia das Furnas. Enquanto na doçaria conventual
abundava o emprego do açúcar, na doçaria popular avolumava-se o uso da farinha.
Fig. 29 – Malassadas cobertas de açúcar.
Fonte: https://www.mulherportuguesa.com/receita/malassadas/
Ocasiões importantes em que as populações não dispensavam a confeção de
doçaria residiam nas Festas do Espírito Santo, a que já aludimos. Segundo descrição de
Francisco Afonso de Chaves, relativa às ilhas das Flores e do Corvo, em finais do século
XIX e inícios do século XX, decorriam assim as celebrações:
No sábado, pelas oito horas da manhã, vai o Rei da Coroa e mais pessoal,
levar uma posta grande de carne a casa de cada um dos Padres da freguesia, e às
do sacristão e sineiro, depois voltam para a casa do Espírito Santo (...). Nas casas
de pessoas da freguesia que por pobreza não puderam contribuir para o Império
é também dada uma posta de carne. Na ocasião em que se faz a distribuição da
carne, recebe-se dos Irmãos o pão que queiram servir (dar).
Nalgumas casas convidam para entrar todas as pessoas que
andam na distribuição das arreliques244, a quem dão vinho, aguardente e
farelórios (designação genérica de bolos, suspiros e massa sovada). (...).
243 MENDONÇA, Luís (1998), ob. cit., p. 54.
244 Nome de planta (Vicia angustifólia).
122
Acabada a distribuição das arreliques voltam todos para a casa do Espírito
Santo com o pão obtido. Dão então a cada Folião cinco quilogramas de carne.
(...)245.
Como se pode verificar, além da carne e do pão, os farelórios incluíam múltipla
doçaria, desde bolos, suspiros à massa sovada. Não obstante, também nestas ilhas
não podiam faltar rosquilhas e arroz doce, como testemunha esta Cantiga da Folia
habitual, durante o jantar dos domingos, em casa dos Imperadores:
Ora toma, do manjar toma,
O manjar foi de vitela
Ela estava bem adubada,
Tinha gosto de canela.
Ora toma, do manjar toma,
O manjar foi de rosquilha
Ela estava bem temperada,
Era mesmo uma maravilha.
Ora toma, do manjar toma,
O manjar foi boa sopa.
Ela estava bem adubada
Ficou o gosto na boca.
Ora toma, do manjar toma,
O manjar foi de pão leve.
O Senhor Espírito Santo
Paga bem a quem o serve.
Ora toma, do manjar toma,
O manjar foi arroz doce.
O Espírito Santo é meu
Assim eu do Divino fosse246.
Sendo certo, pois, que o uso do açúcar na vida quotidiana da população açoriana
245 CHAVES, Francisco A. (1983), “Festas do Espírito Santo nos Açores”, in Arquivo dos ... ob. cit., vol.
XIII, p. 15, [ed. original: 1903].
246 IDEM, pp. 32-33.
123
se destinava, preferencialmente, ao fabrico de sobremesas, compotas, guloseimas e
licores, ainda existiam outras finalidades em que era aplicado este produto. Umas
de cariz religioso, medicinal e beneficente. Outras mais perversas e até mesmo de
natureza criminal.
Segundo o norte-americano Lyman Weeks, durante o século XIX os emigrantes
açorianos, no Brasil, faziam dádivas de açúcar, joias e outras bens valiosos ao Senhor
Santo Cristo dos Milagres247, imagem inspiradora de enorme devoção, particularmente
entre a sociedade micaelense, e que se encontrava — como se encontra ainda hoje —
no coro baixo do Convento da Esperança de Ponta Delgada. As oferendas de açúcar,
a par de joias e outras bens valiosos, atesta bem o valor atribuído a este produto
alimentar que, de certo, muito concorreria para a confeção da doçaria conventual.
Por outro lado, o açúcar e o mel continuavam a ser considerados como remédios para
diversas doenças e, por isso, eram aplicados com finalidades medicinais. O açúcar
era tido como um cicatrizante, que servia para sarar ferimentos e infeções nos olhos,
na garganta e noutros órgãos. Assim, desde longa data, faziam-se grandes doações
ou pagamentos em açúcar às Misericórdias e aos respetivos hospitais. Em 1730, por
exemplo, a Alfândega de Ponta Delgada pagou 2 arrobas de açúcar, no valor de 5$120
réis, ao Tesoureiro da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada, como igualmente
pagou a conventos franciscanos248.
Dadas as características deste produto, havia também utilizações delituosas,
quando se recorria ao “nobre” açúcar para práticas de envenenamento. Em 1862, por
exemplo, algumas mulheres internadas numa enfermaria do Hospital da Misericórdia
de Ponta Delgada tiveram de ser examinadas por suspeita de estarem envenenadas.
Confirmado o diagnóstico, veio a apurar-se que o marido de uma delas, através de
um filho que a fora visitar, enviara uma porção de açúcar “para a consolar”, estando
este, porém, misturado com veneno (arsénico). Como a doente resolveu partilhar a
oferta com outras internadas, o caso ia-se tornando ainda mais grave, não fosse a
rápida intervenção médica ter-lhes poupado a vida249. Precisamente no mesmo ano,
um indivíduo das Capelas, na ilha de S. Miguel, visitou também a esposa no mesmo
247 WEEKS, Lyman H. (1959), “Nos Açores”, in Insulana, ICPD, vol. XV, 1.º sem., p. 54, [ed. original: 1882].
248 “Despeza paga pela Alfandega de Ponta Delgada em 1730”, in Arquivo dos Açores, ed. fac-simile,
Ponta Delgada, 1983, vol. XII, p. 29.
249 BPARPD – Fundo Judicial da Comarca de Ponta Delgada, Processos Penais, Maço 26, Proc. n.º 3207,
30 de julho de 1862.
124
Hospital, recorrendo, malevolamente, a idêntica estratégia. Ao oferecer-lhe açúcar
a pretexto de lhe suavizar o sabor dos medicamentos, misturou-o com uma dose de
arsénico, acabando a vítima por falecer. Segundo noticiou a imprensa o homicida
“vivia mal com a mulher e a sua vida era escandalosa”250. O arsénico consistia num
pó branco, altamente letal e impercetível precisamente quando misturado com sal,
farinha ou açúcar. Vulgarmente era conhecido como “açúcar de ratos”, por ser muito
utilizado, ao longo do século XIX, para extermínio destes roedores251.
Se, nos Açores, o consumo de açúcar fez parte da vida quotidiana, desde os
primórdios do povoamento e com diversas aplicações, já a produção sacarina foi
assaz efémera, persistindo, muito esparsa, ainda no século XVII, mas já sem grande
significado para a economia local. Apenas nos inícios do século XX, a extração da
polpa de beterraba veio impulsionar a produção fabril de açúcar, na ilha de S. Miguel,
perpetuando-se, somente, na toponímia os ténues sinais da presença de cana de
açúcar nestas ilhas. Alguns locais apresentam-se, ainda hoje, com o nome de Engenho,
como são exemplos os lugares da freguesia de S. Roque (Rosto de Cão), concelho de
Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel; da freguesia dos Altares, no concelho de Angra
do Heroísmo, na ilha Terceira; da freguesia do Topo, concelho da Calheta, na ilha de
S. Jorge e, por fim, da Vila da pequena ilha do Corvo252.
Notas Finais
De acordo com Carson Ritchie, o “desejo de comer” não é fisiológico, mas
psicológico e, por isso, embora alguns hábitos alimentares se tenham alterado ao
longo dos tempos, o desejo de açúcar persistiu inalterável253. Nos finais do século
XVI, a produção açucareira provinha essencialmente da cana de açúcar, cujo cultivo
e consequente produção representavam uma tarefa árdua. Acrescida das pragas e
de outras dificuldades, esta produção não atingiu grande dimensão nas ilhas dos
250 O Correio Michaelense, n.º 840, 2 de Julho de 1862.
251 SILVA, Susana Serpa (2012), Violência, Desvio e Exclusão na Sociedade Micaelense Oitocentista,
Ponta Delgada, CHAM, vol. I, p. 226. Sobre adulteração de alimentos, veja-se GRENHA, Paula Andreia
Magalhães (2011), Transformações do Consumo Alimentar na Época Contemporânea, Coimbra, Faculdade
de Letras [dissertação de Mestrado], pp. 25 e ss.
252 RIBEIRO, José Rodrigues (1979), Dicionário Corográfico dos Açores, Angra do Heroísmo, SREC / DRAC.
253 RITCHIE, CARSON I. A. (1995), ob. cit., pp. 161-162.
125
Açores, embora tenham existido engenhos com alguma expressão, em especial, na
ilha de S. Miguel. Muito mais tarde, por inícios do século XX, começou a aproveitar-
se, também nesta ilha, a polpa de beterraba para o fabrico açucareiro, dando mesmo
origem a uma fábrica, em Ponta Delgada.
Ainda assim, desde longa data, o açúcar fazia parte do quotidiano insular, sendo
utilizado com fins medicinais e culinários. Desde os séculos XVII e XVIII destacou-
se a doçaria conventual, marcada pelo requinte e pela abundância de açúcar e de
gemas de ovos. Ao longo do século XIX e no tocante às classes populares, ainda que
circunscrito a datas festivas e a ocasiões especiais, o consumo de açúcar fazia-se
através de doces, compotas e licores, não obstante predominarem, entre os primeiros,
os pães de massa doce, os farináceos e os biscoitos. Algumas receitas remontarão aos
tempos do povoamento das ilhas e ao surgimento dos antigos engenhos, passando
de geração em geração, em especial entre as famílias mais prósperas. Porém, muitas
delas terão sido adaptadas ao condicionalismo do meio insular e outras ainda terão
surgido por iniciativa popular.
Bebidas como o café e o chá — introduzido em S. Miguel por esforços envidados
pela Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense — também levaram à adição de
açúcar, algo que veio a suceder apenas após a introdução destes produtos na Europa,
pois nos territórios de origem não eram adoçados254.
As muitas utilizações do açúcar, nestas ilhas atlânticas, acabaram por ficar
plasmadas no próprio cancioneiro popular, com um exemplo do qual terminamos
este contributo para a história da via quotidiana e da gastronomia nas ilhas dos
Açores:
Ninguém se fie nos homens,
Nem no seu doce falar,
Que eles têm falas de açúcar
Coração de resalgar255.
Os olhos do meu amor
254 IDEM, p. 168.
255 Segundo Augusto Gomes trata-se de um cogumelo de cor vermelha e muito venenoso. Cf. GOMES,
Augusto (1997), ob. cit., p. 287.
126
São grãozinhos de confeito,
São bolas com que me atiram
Ao meu delicado peito.
Minha terra, minha terra,
Mais doce do que o mel,
Quem voltasse àquela terra
Do meu rico S. Miguel256.
256 IDEM, p. 287.
127
Imagens dos promotores do cultivo do
tabaco e representações plásticas do hábito
prazenteiro nas Canárias (Séculos XIX-XX)257
Images of tobacco cultivation promoters and
plastic representations of the pleasant habit
in the Canaries islands (19th-20th centuries)
María de los Reyes Hernández Socorro (ULPGC)
mariadelosreyes.hernandez@ulpgc.es
Santiago de Luxán Meléndez (ULPGC)
santiago.deluxan@ulpgc.es
Resumo
Este estudo é uma contribuição para o conhecimento da cultura do tabaco nas
Canárias, durante os séculos XIX e XX. As Ilhas ficam fora do monopólio do tabaco
espanhol desde 1852, e empreendem um caminho próprio. A imagem entendida de
modo amplo, como projeção social, como signo de identidade, ajuda-nos a compreender
este percurso.
Palavras-chave: História das Canárias, economia do tabaco, representação
plástica da cultura do tabaco
257 Este estudo insere-se no projeto de investigação La configuración de los espacios atlánticos ibéricos.
De políticas imperiales a políticas nacionales en torno al tabaco (siglos XVII-XIX) [A configuração dos
espaços atlânticos ibéricos. De políticas imperiais a políticas nacionais em torno do tabaco (séculos XVII-
XIX)], HAR2015- 66142-R
128
Abstract
This study is a contribution to the knowledge of tobacco culture in the Canary
Islands, during the 19th and 20th centuries. The Islands have been out of the Spanish
tobacco monopoly since 1852, and take their own path. The broadly understood image,
as a social projection, as a sign of identity, helps us understand this travel.
Keywords: Canary history, tobacco economy, plastic representation of tobacco
culture
Introdução
Neste artigo, realizamos um exercício de contextualização baseado em
investigações anteriores (principalmente Luxán 2006 e 2018), no qual traçamos as
grandes linhas da introdução do cultivo e desenvolvimento da indústria do tabaco
nas ilhas, colocando uma especial ênfase no Real Decreto dos Portos Francos de 1852
como ponto de partida, na mudança do modelo do monopólio de tabaco espanhol
ao arrendar-se em 1887, na entrada com menos entraves no mercado peninsular dos
produtos canários nos anos imediatamente posteriores à Grande Guerra, no novo
Regime económico-fiscal de 1972 e, finalmente, como ponto de chegada na nova grande
mudança institucional que significou a entrada na Comunidade Económica Europeia,
na qual o arquipélago apostou pela plena integração. De seguida, fazemos uma pequena
reflexão necessária para compreender a construção da imagem do tabaco, sobre o
percurso da nicotiana tabacum, desde a sua exaltação pelas suas virtudes medicinais, até
à sua má consideração (o tabaco mata), passando pela sua vasta presença como parte
da cultura ocidental, entendido o seu uso como um hábito prazenteiro. A terceira parte
centra-se na apresentação da imagem construída pelos artistas, que vai desde os rostos
dos primeiros produtores, aos usos prazenteiros, sem nos esquecermos da diferenciação
social perante o seu consumo. Por último, fazemos um pequeno apontamento sobre
o que chamámos imagem industriosa do tabaco, o que nos recorda que esta linha da
economia canária que começa no siglo XX foi um dos sectores mais importantes da
sua atividade produtiva. O cartaz do pintor Néstor do pássaro canário a fumar um puro
canário é a melhor síntese que se pode fazer desta mensagem.
129
1. O contexto histórico e institucional do tabaco nas
Canárias 1636-1986
A história do tabaco nas Canárias pode ser estruturada em duas grandes etapas.258
Na primeira delas (1636–1852), o arquipélago foi uma área consumidora com certas sin-
gularidades, derivadas essencialmente da sua posição geográfica, mas sujeita à regula-
mentação geral do monopólio espanhol, que esteve em vigor até 1986. Entre 1636-1717,
a Renda esteve arrendada a particulares —Baltasar Vergara e Grimón, primeiro marquês
de Acialcazar e seus descendentes— e, posteriormente, como no resto do país, sujeita à
administração direta por parte da Monarquia259.
Devem destacar-se como características principais do mercado do tabaco nas ilhas
durante este longo período:
1. Uma transição tardia para o “tabaco de fumo”, em primeiro lugar, que ao
ORQJRGRV«FXOR;9,,,VHPDQWHU£ķ¢YROWDGRVGRFRQVXPRVHQGRSUHGRPLQDQWH
então, o hábito de consumir tabaco em pó, ainda que de média e baixa qualidade.
2. A distância em relação ao território do estanco, em segundo lugar, que
condicionará de modo significativo o abastecimento do produto: desde Sevilha,
Cádis ou Havana.
3. A difícil estruturação do mercado regional, em terceiro lugar, que de-
terminará a configuração, tanto da administração do estanco, como do próprio
mercado, sujeito a preços discriminatórios por ilhas até estar o século XVIII muito
avançado.
4. A posição estratégica na “Carreira das Índias”, em quarto lugar, que pos-
sibilitará o abastecimento direto desde Cuba e, consequentemente, a via do comér-
cio fraudulento, como se demostrará de modo palpável em inícios do século XVIII,
quando se trate de estabelecer a Intendência (1717–1720).260
5. A divisão em ilhas reais e senhoriais, em quinto lugar, deixou aos senho-
res uma parte importante do controlo da Renda do tabaco.
258 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una
perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA.
259 MELIÁN PACHECO, Fátima (1986), Aproximación a la renta del tabaco en Canarias 1636-1730.
Tabacanarias, Santa Cruz de Tenerife.
260 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de: (2003), “La Renta de tabacos en Canarias. Del arrendamiento a la
administración directa” in Anuario de Estudios Atlánticos, vol. 49, pp. 447-473.
130
6. Os problemas de falta de moeda fracionária (equivalente a uma fração
da unidade monetária), por último, juntamente com a existência de um numerá-
rio diferente do de Castilha — ambos os fatores destacados pelos responsáveis da
administração do tabaco—, que resultarão em práticas de câmbio no consumo do
tabaco e em atividades fraudulentas de difícil controlo.
Na segunda etapa (1852–1986), o arquipélago canário ficou fora da economia
tabaqueira nacional, ao transformar-se, não sem dificuldades, em zona produtora,
tanto de folha de tabaco, como de tabaco processado261.
261 MILLARES CANTERO, Agustín (1975), Aproximación a una fenomenología de la Restauración en la Islas de Gran
Canaria. Las Palmas de Gran Canaria, Boletín nº 19 do Centro de Investigación Económica y Social de la Caja
Insular de Ahorros de Gran Canaria (CIES). BRITO GONZÁLEZ, Oswaldo (1979– 1980), “La industria tabaquera.
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in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de; FIGUEIROA-REGO, João e SANZ ROZALÉN, Vicent (eds.), Grandes vicios,
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hemispheric, transatlantic and global history”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de; FIGUEIROA REGO, Joao y SANZ
ROZALÉN, Vicent (eds.), Grandes vicios, grandes ingresos. el monopolio del tabaco en los imperios ibéricos. siglos
XVII-XX, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales (no prelo).
131
A sua posição passou a ser especial, relativamente ao território sob monopólio,
e as suas relações ficaram condicionadas pelo novo ordenamento e a capacidade de
negociação que, a partir dessas datas, foram demonstradas pelos tabaqueiros canários,
uma vez que o tabaco insular foi considerado como estrangeiro para entrar no território
nacional.
Efetivamente, durante a sua história contemporânea, o arquipélago canário
esteve “à margem” do monopólio e, consequentemente, a economia produtiva e
consumidora do tabaco teve as suas regras específicas e o seu próprio desenvolvimento,
muito condicionado, contudo, pelo grau de relação mantido com o mercado do
monopólio.
Até à integração na Comunidade Europeia, simultaneamente com o desapare-
cimento do monopólio de tabacos em Espanha, o arquipélago dispôs de três marcos
institucionais diferentes:
1. O Real Decreto de Portos Francos de 11/VII/1852 (revisto em 1870 e
1900), em primeiro lugar, trouxe como consequência mais relevante, para o que
aqui nos ocupa, a liberalização do tabaco e, portanto, uma posição diferenciada
das Canárias dentro do mercado tabaqueiro nacional. Podemos considerar que
esta situação se manteve, com as reformas a que aludimos, até à Guerra Civil
de 1936.
2. A Guerra significou um parêntesis que mergulhou o arquipélago, como
ocorreu no resto do país, num regime autárquico (“El Mando Económico”), do
qual não se sairia até 1948 e só se saiu, definitivamente, depois do Plano de
Estabilização de 1959.
3. Por último, o terceiro enquadramento regulamento institucional
começa em 1972, data em que se aprovou o REF (Regime Económico e Fiscal), que
significou a atualização e melhoria do Decreto de Portos Francos, possibilitando
que se pudessem concertar os interesses comerciais com os industriais, ainda
vigente quando ocorreu a entrada na Comunidade Europeia, momento no qual
se iniciou o desmantelamento do monopólio de tabacos (1986).
Nestes três cenários, o ramo do tabaco teve um destino específico relativamente
à economia canária na sua generalidade, uma vez que, desde o princípio, surgiu como
132
uma iniciativa especialmente dirigida ao território nacional, o seu mercado natural
segundo García de Torres262.
Depois do período de provas iniciado em finais do reinado de Fernando VII263,
em 1852 ocorreu a liberalização e, com ela, uma aparente libertação do monopólio.
Nada mais distante da realidade. As Canárias tentarão com pouco êxito, especialmente
a partir da década de 1870, quando a crise da cochinilha é previsível, aproveitar as
suas condições privilegiadas relativamente ao território da Renda (livre cultivo e livre
processamento) para negociar com a administração central — a sua interlocutora
inicial era a Direção Geral de Rendas do Estanco — a colocação no mercado nacional,
primeiro da folha apanhada e, de seguida, dos seus tabacos processados.
Por um lado, o enquadramento institucional (Portos Francos), que não
contemplava a entrada do tabaco, e tão pouco do açúcar, como produtos nacionais
na Península e nas Baleares, e por outro lado, sobretudo na última década do século
XIX, a nova alternativa, muito mais favorecida pelo capitalismo internacional (leia-
se britânico), da trilogia canária (bananas, tomates e batatas), tornarão inviável
esta solução. A experiência agrícola tinha aberto as portas, todavia, à atividade
industrial. Como consequência mais imediata irão se estabelecendo uma série de
pequenas fábricas — será melhor dizer fabricantes—, que começarão a fazer as suas
misturas com matéria-prima local, mas muito rapidamente, aproveitando os fluxos
mercantis e o próprio enquadramento dos Portos Francos, trabalharão com produtos
importados, como ocorre, por outro lado, no resto do país, nos estabelecimentos do
estanco. O certo é que o desenvolvimento desta atividade industrial esteve desde o
início condicionada pelas relações com a área do monopólio, que oscilou, depois dos
ensaios de 1875–1879, entre as compras regulares de produtos canários a partir de
1885 —momento em que se constitui o “Grémio de fabricantes de tabaco processado
com folha da Província de Canárias” (22/06/1885), – a redução drástica das mesmas
entre 1906–1922 – e a etapa dos novos contratos que iria até ao começo da Guerra
Civil espanhola.
262 GARCÍA DE TORRES, Juan (1879), Los tabacos de Canarias y otras nebulosidades en la Historia de la
Hacienda Pública en España. Santa Cruz de Tenerife, Imp. de Vicente Bonnet.
263 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2018), “Cultivo, abastecimiento y estanco del tabaco en España
en el tránsito del Antiguo Régimen al Estado Liberal”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (dir.);
FIGUEIRÔA-RÊGO, João (dir.), El tabaco y la esclavitud en la rearticulación imperial ibérica (s. xv-xx).
Nouvelle édition [en ligne]. Évora: Publicações do Cidehus, 2018 (généré le 14 février 2019). Disponível
em: . DOI: 10.4000/books.cidehus.5987.
133
Como referimos, desde o monopólio, a posição face a esta nova opção
industrial, que surgia na sua periferia, oscilou entre uma atitude negativa, contrária ao
desenvolvimento da mesma e uma postura mais complacente, motivada pelas decisões
dos governos vigentes e a capacidade de negociação dos tabaqueiros canários. Não
devemos esquecer, por exemplo, que o contrato entre o governo e a Arrendatária (Lei
de Bases do Monopólio de Tabacos de 22/06/1887), obrigava esta a admitir e vender em
comissão os tabacos processados nas províncias e possessões do Ultramar e Canárias264.
Ao contratista exigia-se que adquirisse, anualmente, pelo menos 6 milhões de kg. de
tabaco em folha das Filipinas, 3 milhões de Cuba, 1,5 de Porto Rico e 0,4 de Canárias.
A indústria canária alcançará um certo desenvolvimento e uma presença
importante no tráfico fraudulento. Depois da Grande Guerra, deve ter representado
uma ameaça para a Companhia Arrendatária de Tabacos, sociedade que, com a
intervenção do Estado, se tinha encarregado da Renda a partir de 1887. Por outro
lado, tentou-se utilizar os produtores canários para contrariar outros interesses,
como os que representava Juan March265, já que, em 1921–1922, decidiria assinar um
contrato com os fabricantes insulares para os deixar entrar na área do monopólio.
Primeiro parcialmente, pois o seu propósito era que as vendas se reduzissem às praças
espanholas do Norte de África, e depois, de modo geral, ao conduzir os seus produtos
para o território peninsular. Face ao que sustentou a historiografia canária — que,
sobre este tema, nos deu uma imagem excessivamente vitimizadora —, os anos da
Ditadura de Primo de Rivera e a Segunda República significaram a primeira expansão
e a autêntica criação da indústria tabaqueira canária, para a qual foi sempre óbvio que
o seu mercado fundamental era o nacional.
Posteriormente à Guerra Civil, a indústria atingirá um enorme desenvolvimento,
consolidando-se como uma especialização regional das Canárias, dentro da economia
nacional, que se manteve até à atualidade.
264 COMÍN COMÍN, Francisco. Y MARTÍN ACEÑA, Pablo (1999), Tabacalera y el estanco del tabaco en
España 1636–1998, Madrid, Fundación Tabacalera, p. 102.
265 GARCÍA CABRERA, Mercedes (2011), Juan March 1880-1962, Madrid, Marcial Pons Historia.
134
2. Do “hábito prazenteiro” e a boa imagem do tabaco até à
sua condenação social
Desde a introdução do chamado “hábito prazenteiro”, pelo historiador do tabaco
Rodríguez Gordillo, os diversos governos de todos os países com monopólios fiscais,
ou no seu caso as empresas, realizaram políticas ativas para incrementar o consumo
do tabaco aumentando deste modo a sua dependência dos impostos da venda deste
produto. Não seria descabido, inclusivamente, sustentar que a grande proliferação de
estudos sobre as virtudes medicinais da planta que acompanharam a extensão do seu
consumo no Velho Mundo foram, em parte, propiciadas pelos poderes públicos.
Os historiadores da cultura e da economia consideraram que é na época da
2ª Revolução Industrial (1870-1930) que o surgimento do cigarro abriu a porta ao
consumo massivo. As empresas implementaram então políticas de comunicação e
marketing que tiveram como objetivo maximizar os benefícios ou, o que é o mesmo,
aumentar as quotas de mercado dos produtores. Terá que esperar-se pelos últimos
anos do século XX para que, a partir do Estado, se inicie uma política conducente à
redução do seu consumo: o tabaco mata.
O “hábito prazenteiro” do tabaco e o seu uso social sem condenações morais pode
dizer-se que se prolonga até aos anos finais do século XX. Ou seja, que os consumidores,
não obstante as referências históricas que possamos encontrar em anos anteriores
sobre as consequências negativas para a saúde, não foram conscientes do perigo que
representava o seu consumo266. A partir destas datas considera-se um problema social267.
No estudo do consumo, uma fonte pouco explorada até agora foi a representação
plástica dos artistas268, perspetiva que nos propomos abordar.
266 Para um ponto de vista histórico sobre estas questões GÁLVEZ, Lina (2006), “Adición, regulación y publicidad
de marcas. El consumo de tabaco en España en el primer tercio del siglo XX”, ALONSO ÁLVAREZ, Luis (2006),
“Pautas de Consumo y cambio tecnológico. La evidencia del tabaco en España 1735-1886”, in Luis ALONSO ÁL-
VAREZ, Lina GÁLVEZ MUÑOZ e Santiago de LUXÁN MELÉNDEZ (ed.), Tabaco e Historia Económica. Estudios
sobre fiscalidad, consumo y empresa, Madrid, Fundación Altadis-Ediciones El Umbral, pp. 367-388 y 246-270.
267 Uma linha frutífera do ramo da economia da saúde está a ser o estudo dos efeitos sociais e económicos
do consumo do tabaco. Veja-se, por exemplo, PINILLA DOMÍNGUEZ, Jaime (2001), “Demanda de consumos
nocivos para la salud: caso particular del consumo de tabaco en Canarias”, in Vector Plus, pp. 12-18.
268 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes; LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2018), Las imágenes
como fuente histórica para el estudio del consumo del tabaco: La pintura flamenca y holandesa del siglo XVII
In: El tabaco y la esclavitud en la rearticulación imperial ibérica (s. xv-xx) [en ligne]. Évora: Publicações do
Cidehus, (généré le 20 septembre 2019). Disponível em: . I
DOI: 10.4000/books.cidehus.6042.
135
3. Aproximação a uma tipologia das representações
plásticas do tabaco nas Canárias
Nesta secção vamos referir-nos, por um lado, aos promotores da introdução do
seu cultivo e elaboração nas Canárias e, por outro, a consumo prazenteiro, através de
uma série de artistas representativos da história da pintura nas ilhas.
3.1. Os promotores: políticos prestigiados, aristocratas,
terratenentes e estudiosos do tabaco
Podemos considerar homens do tabaco os promotores, políticos prestigiados,
aristocratas terratenentes e estudiosos, uma vez que promoveram o cultivo, plantaram-
no nas suas quintas, ou estudaram a sua produção e a sua história. Vamos referir-
nos a diversos personagens, sem pretensão de ser exaustivos, dos quais encontrámos
imagens.
É o caso do general Francisco Morales y Afonso (1783-1845), retratado pelo
pintor cubano Vicente Escobar y Flores (1762-1834) em 1824269, que foi o último
capitão geral da Venezuela antes da independência e comandante geral das Canárias
entre 1827 e 1834. O pintor pôde fazer-lhe o retrato antes de embarcar para o seu novo
destino quando passou por Havana [Figura 30]:
269 Câmara Municipal de Santa Cruz de Tenerife. Foi cedido à câmara pela sua viúva Josefa Bermúdez: óleo
sobre tela de 110 x 80 cm., assinado e datado em Habana no 4 de Março de 1824 por Vicente Escobar. COLA
BENÍTEZ, Luis, “Los otros retratos del Consistorio (Retales de la Historia - 137)”, La Opinión 1/12/2013.
http://amigos25julio.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1383:los-otros-retratos-
del-consistorio-retales-de-la-historia-137&catid=20:artculos-propios-sobre-otros- temas&Itemid=99.
[Consultado em 24/09/2019]. HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (2014): “Contribución al estudio
de la prosopografía del estanco imperial español: galería de retratos de los gobernadores-capitanes
generales de la isla de Cuba”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de, Política y Hacienda del Tabaco en los
Imperios Ibéricos (Siglos XVII-XIX), Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, pp. 378-415.
136
Fig. 30 – General Francisco Morales y Afonso (Carrizal 1783 - Las Palmas 1845), por Vicente
Escobar Flores, 1824, Câmara Municipal de Santa Cruz de Tenerife. Óleo sobre tela, 110 x 80
cm., assinado e datado em Havana, a 4 de março de 1824.
Trata-se de um óleo de meio corpo, em tamanho natural. Ao seu lado vemos um
soldado mulato, que entrega militarmente ao general Morales uma carta, porque este
retrato foi feito durante a estadia deste chefe em Cuba.270
Na carta pode ler-se “Ao General Don Francisco Tomás Morales”. Aprecia-se
igualmente a assinatura do pintor antilhano na margem inferior esquerda (“Vicente
Escobar fecit, Havana 4 de março de 1824”).
270 MORALES PADRÓN, Francisco (1977), “Francisco Tomás Morales “, in Historia General de las Islas
Canarias, Las Palmas de Gran Canaria, Edirca, t.IV, p. 304. FRAGA GONZÁLEZ, Carmen (1992), Arte
hispanoamericano en Canarias (Exposición), Comisión del V Centenario del descubrimiento de América,
Diócesis de Tenerife, Instituto de Estudios hispanoamericanos de Canarias, Ayuntamiento del Puerto
de la Cruz. TARQUIS RODRÍGUEZ, Pedro (2001), Desarrollo del Museo Municipal de Bellas Artes de
Santa Cruz de Tenerife, edição, introdução e notas de GONZALEZ REIMERS, Ana Luisa, Santa Cruz de
Tenerife, pp. 283-287. ABAD RIPOLL, Francisco, Don Francisco Tomás Morales y Afonso, Comandante
General de Canarias (1827-1834), Conferência (Pronunciada a 12 de Novembro de 2014 na Sala de
Conferências do Centro de Historia y Cultura Militar de Canarias, Almeyda, Santa Cruz de Tenerife).)
http://amigos25julio.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1551:don-francisco-
tomas- morales-y-afonso-comandante-general-de-canarias-1827-1834&catid=65:conferencias&Item
id=105. [Consultada em 22/09/2019].
137
Podemos considerar de seguida o terratenente e aristocrata natural de Tenerife
Luis de León-Huerta y González-Grillo, VII Marquês de Villafuerte (1797-1862) [Figura
31]271, que acolheu, como o general Morales, a Real Ordem de 26/1/1829, permitindo-
lhe, como àquele, o cultivo de 40.000 pés. O seu retrato foi realizado em Madrid por
Luis de la Cruz y Ríos, pintor de corte de Fernando VII.
Fig. 31 – Luis de León-Huerta y González-Grillo, VII Marquês de Villafuerte, por Luis de la Cruz y
Ríos. Óleo sobre tela. Coleção López de Ayala, de Garachico (Tenerife).
271 Don Luis de León-Huerta foi Governador Real de Icod em 1829 y 1835, Deputado provincial em 1841,
Presidente da Câmara de Garachico em 1848 e Presidente de la Assembleia provincial das Ilhas Canárias
e Governador Civil interino das mesmas em 1854. http://www.racba.es/index.php/listado-alfabetico/368-
de-leon-huerta-y- gonzalez-grillo-luis-viii-marques-de-villafuerte [Consultado 30/05/2019].
138
Ao referir-se a esta tela escreveu Rumeu de Armas:
Veste fraque abotoado, com calças e meias brancas, sapatos pretos
e como complemento, a cartola, com umas luvas sobre a mesa. A tela
completa-se com uma janela envidraçada, com viva luz e paisagem em
transparência, prateleiras com livros, cortinas e cadeira estilo Carlos IV
forrada de vermelho272.
Outro personagem de interesse é o proprietário Manuel de Lugo que foi retratado
pela sua filha Pilar de Lugo Eduardo (1820-1851), discípula — falecida precocemente
na epidemia de cólera-morbus de 1851— do pintor de Gran Canária, Manuel de León
y Falcón [Figura 32]273.
Fig. 32 – Manuel de Lugo y Herrera Leyva, pela sua filha Pilar de Lugo Eduardo (assinado e datado em
1844). Propriedade particular, Las Palmas de Gran Canaria.
272 RUMEU DE ARMAS, Antonio (1997), Luis de la Cruz y Ríos, Gobierno de Canarias, Litografía Romero,
pp. 130-132. CONTRERAS, Juan, marqués de Lozoya (1945), “Luis de la Cruz y Ríos, pintor de Cámara de
Fernando VII”, in El Museo Canario no 16 p. 11, considera este retrato de feitura inglesa. O seu retrato
encontra-se na Coleção López de Ayala, de Garachico (Tenerife).
273 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (1990), “La mujer y las bellas artes en Las Palmas a
mediados del siglo XIX: Pilar de Lugo Eduardo, una pintora romántica malograda”, in IX Coloquio de
historia canario - americano, t. II, pp. 1414-1442.
139
Este proprietário recebeu sementes de Cuba, em 1850, para semear tabaco
e continuar, assim, os ensaios de cultivos anteriores. Manuel de Lugo tinha feito
plantações — segundo um relatório da Junta de Agricultura de Las Palmas— na quinta
de Agazal e nos Cercados de Montemayor (jurisdição de Gáldar), perto de Guía e no
Molino de Viento e em Huesas, dentro do município de Las Palmas. As circunstâncias
da Cólera-morbus impediram que este último ensaio, imediatamente anterior à
declaração de Portos Francos, tivesse o êxito esperado. Deste modo, o anteriormente
citado Manuel de Lugo, escrevia à Junta dando conta da interrupção do processo:
O seu cultivo, se bem que o principiei com esmero, não o pude
continuar do mesmo modo porque os acontecimentos desgraçados que a
cólera-morbus me trouxe, não mo permitiram, mas no final reuni algumas
plantas de que estou a beneficiar e, a seu tempo, colocarei à disposição de V.
Sª. Também acabei de cortar outras poucas plantas de um tabaco que não é
da Vuelta de Abajo, e cuja semente colhi aqui do que nasce espontaneamente,
e que também quando chegar a ocasião entregarei a V. Sª274.
Mas, sem dúvida que, o político mais influente foi Francisco María de León
y Falcón, comissário régio de Canárias, que esteve à frente da Junta de Agricultura
de Las Palmas e foi um dos personagens chave no fomento do cultivo do tabaco nas
ilhas. O seu retrato, cerca de 1845, foi pintado pelo seu irmão, Manuel Ponce de León y
Falcón275, o pintor de Gran Canária mais relevante do século XIX [Figura 33]276.
274 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de: (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una
perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, pp.29-35.
275 Propriedade da Fundación Caja de Canarias.
276 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (1996), Manuel Ponce de León y Falcón, pintor grancanario
del siglo XIX, Las Palmas de Gran Canaria, Real Sociedad Económica de Amigos del País. Arte en Canarias
[siglos XV-XIX]. Una mirada retrospectiva. Tomo I y Tomo II. Expo, La Regenta, LPGC Junho a Julho de
2001. María de los Reyes Hernández Socorro (Comissária). Governo de Canarias.
140
Fig. 33 – Francisco María de León y Falcón por Manuel Ponce de León, ca.1845. Óleo sobre tela,
89 x 68,5 cm. Fundación La Caja de Canarias, Las Palmas de Gran Canaria.
Contemporâneo do político de Gran Canária foi Pedro Mariano Ramírez Alenza
(1799- 1886), defensor do livre cultivo nas ilhas e grande polemista em torno da
questão dos Portos Francos de 1852, que significaram a saída do monopólio espanhol
do arquipélago canário. Dele, só encontrámos a imagem que reproduz Marcos Guimerá
Peraza no seu estudo clássico sobre o litígio insular [Figura 34]277.
277 GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1987), El Pleito Insular1808-1936, Madrid, Instituto de Estudios de
Administración Local.
141
Nesta discussão entrou também Juan Antonio Cologán y Franchi, VIII Marquês
do Sauzal278, o qual defendeu que para que os ensaios de cultivo tivessem sucesso
deveriam ser realizados na mais completa liberdade, o que se alcançou com o decreto
de Portos Francos [Figura 35]279.
278 GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1992), “Los Cólogan, alcaldes del Puerto de la Cruz de la Orotava (siglos
XVIII Y XIX)”, in Anuario de Estudios Atlánticos, pp. 229-236. Especialmente a estampa VIII. https://dbe.
rah.es/biografias/91805/juan-antonio-cologan-de-franchi-y-ponte [Consultado em 30/05/2019].
279 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una
perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, p. 25.
Fig. 34 – Pedro Mariano Ramírez Alenza, retirado
do livro de GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1987),
El Pleito Insular1808-1936, Madrid, Instituto de
Estudios de Administración Local.
Fig. 35 – Juan Antonio Cologán y Franchi VIII,
Marqués del Sauzal, Retirado de GUIMERÁ
PERAZA, Marcos (1992): “Los Cólogan, alcaldes
del Puerto de la Cruz de la Orotava (siglos XVIII
Y XIX)”, in Anuario de Estudios Atlánticos, lâmina
VIII.
142
A figura de Domingo J. Navarro (1875)280 deve associar-se às de Juan Bautista
Melo (1873) e ao marquês de Guisla Guiselín (1877), já que os três propuseram que a
atividade tabaqueira nas ilhas só poderia ser realizada mediante a criação de sociedades.
O médico de Gran Canária também seria retratado pelo citado pintor Ponce de León281
[Figura 36]. Foi autor de umas memórias de grande interesse para o conhecimento da
sociedade de Gran Canária da sua época282.
Desconhecemos quem foi o autor do retrato de Víctor Pérez González (1827-
1892) [Figuras 37, 38 e 39]283.
280 Memoria sobre los nuevos colores extraídos de la hulla. Lida na Ilustre Sociedade Económica de Amigos
do País de Las Palmas, pelo Censor da misma Exmo. Sr. Dr. D. ...Gran Canaria, Imprenta La Verdad, pp.
20–23. Lida na Ilustre Sociedad Económica de Amigos del País de Las Palmas, pelo Censor da mesma,
Exmo. Sr. D. ... Gran Canária, Imprenta La Verdad, pp. 20-23.
281 Em 1862 apresentou um retrato do médico na Exposição Provincial de 1862 (Memoria...p. 125).
282 DOMINGO J. NAVARRO (1991), Recuerdos de un noventón, Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo
Insular de Gran Canaria.
283 HERNÁNDEZ PÉREZ, Manuel (1992), “Cien años de la muerte del Dr. Víctor Pérez (1827-1892)” in
El Día. GONZÁLEZ LEMUS, Nicolás (1995), Las islas de la ilusión. (Británicos en Tenerife. 1850-1900), Las
Palmas de Gran Canaria, Ediciones del Cabildo Insular de Gran Canaria, pp. 63 e 369; GONZÁLEZ LEMUS,
Nicolás (1998), Viajeros victorianos en Canarias, Las Palmas de Gran Canaria, Ediciones del Cabildo
Insular de Gran Canaria, p. 117. GARCÍA NIETO, V, (1896): “La medicina en Tenerife en el último tercio
del siglo XIX”, in Revista Médica de Canarias (Facsímil), Santa Cruz de Tenerife, Fundación Canaria Salud
y Sanidad, 2001, pp. 48-50. Disponível em: http://dbe.rah.es/biografias/70346/victor-perez-gonzalez.
PÉREZ GARCÍA, Jaime (1985), Fastos biográficos de La Palma. Tenerife, Tomo I, pp. 138-139. HERNÁNDEZ
GONZÁLEZ, Manuel, “Víctor Pérez Un médico palmero que impulsó la botánica canaria”. Disponível em:
http://www.rinconesdelatlantico.com/num2/victor_perez.html. [Consultado em 24/09/2019].
Fig. 36 – Domingo J Navarro.
Óleo de Manuel Ponce de León
(ca. 1858-1860). El Museo Canario
(Las Palmas de Gran Canaria).
143
Fig. 37 – Victor Pérez González (Santa Cruz de La Palma 1827- Puerto de La Cruz 1892). http://www.
palmerosenelmundo.com/index.php/historia/personajes-destacados-de-la-palma.
Fig. 38 – Página extraída da Memoria Histórica
y oficial de la Exposición provincial de Canarias
de Agricultura, Industria y Artes celebrada en las
Casas Consistoriales de la ciudad de Las Palmas de
Gran Canaria en 1862, Gran Canaria, Imprenta de
Tomás B. Matos, 1864.
Fig. 39 – Capa da Memoria.
144
Este médico, que exerceu no Puerto de la Cruz (Tenerife), mandou uma Memória
sobre o cultivo do tabaco nas Ilhas Canárias284 à Exposição Provincial (embora tenha
chegado fora do concurso), celebrada na Câmara Municipal de Las Palmas de Gran
Canária em 1862:
A classe onde houve mais empenho de exposição – podemos ler na
Memoria- foi na do tabaco, em cujo cultivo estima a Província uma nova
fonte de riqueza para o futuro. Todas as ilhas, exceto Gomera e Hierro,
concorreram com afã e entusiasmo; e os vários e multiplicados objetos
apresentados, provam até à evidência que o plantio e laboração do tabaco é
um empreendimento levado a cabo com ardor, com constância e inteligência
pelos primeiros proprietários e lavradores destas ilhas, com cujos elementos
os resultados definitivos, e mais ou menos próximos, não deixarão de ser
favoráveis ao fim proposto285.
Juan de León y Castillo (1834-1912)286, engenheiro ligado à construção do Porto
de La Luz de Las Palmas, esteve muito relacionado, tanto com o renascimento do cultivo
da cana e da produção de açúcar, como com a laboração do tabaco. O engenheiro León
y Castillo, para além de ser agricultor e dono de uma fábrica de tabacos, deixou escrito,
em 1870, um Guia do cultivo do tabaco, saído das oficinas da Imprensa La Verdad (Las
Palmas de Gran Canaria). Dos seus numerosos retratos e fotografias apresentamos,
neste estudo, dois retratos do pincel de Santiago Tejera Quesada, que se encontram no
Museu Canário da capital de Gran Canária [Figuras 40 e 41]287.
284 Memoria sobre el cultivo del tabaco en las Islas Canarias, por el Dr. — apresentada na Exposição de Las
Palmas de Gran Canária no mês de Maio de 1862. Santa Cruz de Tenerife, Imprenta y Litografia de J. N.
Romero, p. 41.
285 Memoria Histórica y oficial de la Exposición provincial de Canarias de Agricultura, Industria y Artes
celebrada en las Casas Consistoriales de la ciudad de Las Palmas de Gran Canaria en 1862, Gran Canaria,
Imprenta de Tomás B. Matos, 1864, p. 35. Nessa exposição apresentou duas obras Benito Pérez Galdós
sob o título La Magdalena (nº 223 de la Memoria) e Boceto sobre un asunto de la historia de Gran Canaria
(nº 224) que mereceram uma menção honrosa (p. 122).
286 MARTÍN CASTILLO, Juan Francisco (1995), “Juan de León y Castillo (1834-1912): ingeniero y
político. Apuntes para una biografía”, in Anuario de Estudios Atlánticos, pp. 369-382.
287 GAVIÑO DE FRANCHY, Carlos (2014), Apuntes para una biografía del pintor Santiago Tejera de
Quesada [1880-1916]. Disponível em: http://lopedeclavijo.blogspot.com/2014/06/santiago-tejera-
quesada_2.html [Consultado em 21/09/2019].
145
Figs. 40 e 41 – Esquerda: Juan de León y Castillo por Santiago Tejera Quesada, Museo Canario
(Las Palmas de Gran Canaria). Direita: Juan de León y Castillo por Santiago Tejera Quesada, Museo
Canario (Las Palmas de Gran Canaria).
2FXOWLYRGRWDEDFRVHU£ķEHQ«ˋFRSDUDWRGRVRVVHFWRUHVGDHFRQRPLD'DU£YLGD
à agricultura de subsistência — devendo ser alternado com leguminosas e milho — e
à criação de gado, escreve no guia citado. O seu rival não era, portanto, o subsector
produtor de alimentos, mas sim a cochinilha. O tabaco, prossegue León y Castillo, tem
a vantagem, para além disso, de necessitar de menos capital e força de trabalho. Na
análise dos custos que se adianta, tendo em conta a experiência cubana e os ensaios
canários, incide-se mais sobre o abonado (71%), do que sobre o fator trabalho (29%).
O preço barato deste último é uma das vantagens comparativas das ilhas. Mas o
SULQFLSDOLQWHUHVVHGHVWDSODQWDYLU£GRODGRGDLQG¼VWULDHGRFRP«UFLRRFXOWLYRWHU£ķ
como principal consequência o desenvolvimento de “uma indústria muito lucrativa”.
Mas, para além disso, equilibrará a balança comercial e aumentará o tráfico portuário,
devido às vantagens comparativas que temos no custo dos fretes relativamente a Cuba,
principal concorrente no mercado nacional.
O seu irmão, Fernando de León y Castillo (1842-1918), que teve uma longa
trajetória como político e juntou à volta da sua pessoa o partido liberal nas Canárias,
pode ser incluído nesta lista de promotores deste ramo da economia local. Entre
1877/1878 e 1878/1879 colocaram-se no mercado peninsular 1.000.000 de cigarros,
146
resultado da pressão da “Liga de Agricultores e Fabricantes de tabaco”, formalizada,
como tal, em Novembro de 1877, que contou com o apoio deste político. Entre a
numerosa iconografia de León y Castillo, escolhemos o retrato que se conserva na
Casa Museu León y Castillo de Telde, da autoria do pintor catalão Mateo Balasch Mateu
(1870-1936) [Figura 42].
Fig. 42 - Fernando de León y Castillo por Mateo Balasch Mateu,
Casa Museo León y Castillo de Telde (Gran Canaria).
Nesta apresentação dos rostos dos homens do tabaco interessa-nos assinalar
Alfonso Gourié Álvarez (1810-1890)288 que, como outros personagens desta história,
acreditaram que a modernização do arquipélago canário viria através do investimento
na cana de açúcar e no tabaco, que tinham a vantagem de poder pôr a funcionar uma
288 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2009), “La imagen
de los hombres del azúcar en Canarias”, in LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de y VIÑA BRITO, Ana
(dirs.), La empresa azucarera en Canarias. Siglos XV-XX, Sevilla, Destilerías Arehucas (Gran Canaria)
-Ayuntamiento de Los Llanos de Aridane (Isla de La Palma), pp. 308-310.
147
potente indústria fabril e que permitiriam aos canários enfrentar a crise da cochinilha.
Gourié apostou, para além disso, na criação de uma sociedade “O Futuro Agrícola
de Canárias 1873–1878”, experiência frustrada – como assinalámos noutro estudo289
— pela falta de realizações no mercado do monopólio espanhol. O historiador de
Gran Canária, Agustín Millares Torres, que participou neste projeto, resumiu-o desta
maneira:
Seduziam então os insulares os ensaios frequentes que para a
aclimatação do tabaco se empreendiam isoladamente ou por meio de
ações. Geralmente acreditava-se que a cobiçada planta encontraria no
Arquipélago um terreno e um clima igual ao de Cuba, que constituiria uma
fonte de riqueza mais lucrativa do que a da cochinilha. Para apoiar com mais
eficácia este cultivo especial, fundou-se em Las Palmas uma sociedade por
ações dedicada exclusivamente a fomentar esta indústria, organizando uma
fábrica e solicitando ao governo a compra daquele produto para o consumo
nacional. A sociedade estabeleceu-se com grande luxo de empregados e
escritórios, detalhes de marcas e contramarcas e promessas de grandes
benefícios para os acionistas. Depois de muitas dificuldades e dilações,
compraram-se (1875) algumas partidas de tabaco elaborado e em folha,
que, levadas a Madrid, foram desfavoravelmente classificadas, porque no
seu desejo de agradar aos sócios vendedores, o diretor da fábrica não se
atreveu a recusar os fardos inutilizáveis. Com esta triste deceção e com o
GHSORU£YHOUHVXOWDGRGDVRSHUD©·HVˋQDQFHLUDVGLVVROYHXVHDDVVRFLD©¥R
não obtendo os indivíduos que a compunham outro benefício para além de
alguns maus lotes de uma indústria desacreditada290.
Deste empresário realizou um austero retrato, o já citado Santiago Tejera
Quesada291 [Figura 43].
289 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una
perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, pp. 176-186.
290 MILLARES TORRES, Agustín (1893–1895, 1977), Historia General de las Islas Canarias, Las Palmas de
Gran Canaria, Edirca, T. V, pp.75-76.
291 HERNÁNDEZ PADRÓN, Alicia (2008), “La rehabilitación de las Casas Consistoriales: un proyecto de
puesta en valor como edificio institucional”, in Programa de la fiesta de San Juan. Excmo. Ayuntamiento
de Arucas y Construcciones CLR, Arucas p. 18. Foi doado pelo artista em Fevereiro de 1905 à Câmara
Municipal para se expor na chamada “sala de atos públicos”.
148
Fig. 43 - Alfonso Gourié Álvarez por Santiago Tejera Quesada, óleo realizado em grisaille (1905)
(Casas Consistoriales de Arucas).
De outro dos grandes publicistas do tabaco, o senador e deputado do partido
conservador Felipe Pérez del Toro, que foi catedrático da Escola Central de Comércio
em Madrid, apenas encontrámos a fotografia que reproduz a Enciclopédia Espasa e a
sua assinatura [Figuras 44 e 45]292.
Fig. 44 - Felipe Pérez del Toro. Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, Barcelona,
José Espasa, cop. 1924, t. 43, p. 698.
292 Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana. %DUFHORQD -RV«ķ (VSDVD FRS W S
Publicou em 1881 El tabaco canario y las pesquerías en África. Madrid, Imprenta y Litografía de La Guirnalda.
Para além disso escreveu um Compendio de Historia general del desarrollo del Comercio y de la Industria (1898).
149
Fig. 45 – Capa do livro de Felipe Pérez del Toro, El tabaco canario y las pesquerías de África.
Devemos mencionar também o senador vitalício293 pelas Canárias, Juan García
de Torres [Figura 46] que foi diretor geral de impostos do rendas estancadas e autor,
em 1879, de um ensaio intitulado Os tabacos de Canárias e outras nebulosidades da
história da Fazenda Pública em Espanha, publicado em Santa Cruz de Tenerife pela
Imprensa de Vicente Bonnet, do qual não conseguimos encontrar uma imagem.
Fig. 46 – Folha de rosto do livro de Juan García de Torres, El tabaco. Consideraciones sobre el pasado,
presente y futuro de esta Renta, Madrid 1875.
293 Para o seu trabalho como senador http://www.senado.es/web/conocersenado/senadohistoria/
senado18341923/senadores/fichasenador/index. html?lang=es_ES&id1=1178 [Consultado em
21/09/2019].
150
Antonio López Botas, advogado que foi presidente da câmara da cidade de Las
Palmas entre 1861-1868 [Figuras 47 y 48]294, solicitou ao governo da nação em 1887
que se implantassem nas Canárias feitorias e sucursais das fábricas nacionais para a
aquisição e venda do tabaco canário, o que traria grandes vantagens aos interesses
do tesouro e redundaria num maior benefício do consumo de tabaco canário, muito
superior e mais barato do que a maior parte do que consomem as fábricas nacionais.
Foi seu retratista o pintor grã-canário Tomás Gómez Bosch295.
Figs. 47 e 48 – Esquerda: Antonio López Botas, retirado de Marcos Guimerá Peraza, “Antonio López
Botas 1808-1888”, in Anuario de Estudios Atlánticos, 35. Direita: Antonio López Botas por Tomás
Gómez Bosch, retirado do livro de BORDES BENÍTEZ, Rosa María (1989), El pintor Tomás Gómez Bosch,
Las Palmas de Gran Canaria, Fundación Mapfre Guanarteme.
Por último, vamos referir-nos ao grande investigador e pioneiro dos estudos
GHWDEDFRHP(VSDQKDQDWXUDOGH/DV3DOPDV-RV«ķ3«UH]9LGDO1986-1922)296, autor
294 GUIMERÁ PERAZA, Marcos (1989), “Antonio López Botas 1808-1888”, in Anuario de Estudios
Atlánticos, 35, pp. 291-362.
295 BORDES BENÍTEZ, Rosa María (1989), El pintor Tomás Gómez Bosch, Las Palmas de Gran Canaria,
Fundación Mapfre Guanarteme. ALEMÁN GÓMEZ, Ángeles; ALLEN Jonathan; BALSALOBRE GARCÍA,
Juana María; BETANCOR QUINTANA, Gabriel; HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y
MONTESDEOCA GARCÍA-SÁENZ, Daniel (2008), Tomás Gómez Bosch. Pintor y fotógrafo, Las Palmas de
Gran Canaria, Ediciones del Cabildo de Gran Canaria.
296 «Los cigarros canarios y los transportes marinos». Mundo tabaquero: revista profesional y técnica
de las rentas y de agricultura / Habla Canarias, año 2, no 10 (Março 1953), pp. 13-14. «Hace un siglo».
151
fundamental, juntamente com o mencionado Juan García de Torres. Pérez Vidal trouxe
à bibliografia do tabaco uma História do cultivo do tabaco em Espanha (1956) e Espanha
na história do tabaco (1959). Dispomos de uma fotografia do autor, da Biblioteca Pérez
Vidal de Santa Cruz de La Palma [Figura 49].
Mundo tabaquero: revista profesional y técnica de las rentas y de agricultura / Habla Canarias, año 2, no
14 (Julho-agosto de 1953), pp. 13-14. Catálogo de la colección de tabaqueras y de utensilios de fumador.
Madrid: Museo del Pueblo Español, Dirección General de Bellas Artes [1956]. 33 p., [1] h.; [16] p. de
lám. (Trabalhos e materiais do Museo del Pueblo Español). Reed.: España en la historia del tabaco
(1959), pp. 135-179. Historia del cultivo del tabaco en España. Prólogo de Horacio Torres de la Serna.
Madrid: Servicio Nacional de Cultivo y Fermentación del Tabaco, 1956. 157 p., [2] h. pleg. de map.
y gráf. Reed.: Habano: revista tabacalera, v. 25, n. 2 (Fevereiro de 1959), pp. 8-10 y 29-32; v. 25, n. 3
(Março de 1959), pp. 20-26; v. 25, n. 5 (Maio de 1959), pp. 20-22 y 30-31; v. 25, n. 6 (Junho de 1959),
pp. 20-23; v. 25, n. 8 (Agosto de 1959), pp. 20-24; v. 25, n. 9 (Setembro de 1959), pp. 20-23 y 27; v. 25,
n. 10 (Outubro de 1959), pp. 20- 22. Rec.: JIMÉNEZ SÁNCHEZ, Sebastián (1956), Falange / Plumas de
las islas (Las Palmas de Gran Canaria, 29 de Dezembro), pp. 4 y 6. MANRIQUE, Gervasio (1957), Revista
de dialectología y tradiciones populares, t. 13, cuaderno 1-2, pp. 219-220. RODRÍGUEZ [PÉREZ], Violeta
Alicia (1958), Revista de historia canaria, año 31, t. 24, n. 123-124 (Julho-Dezembro), pp. 376-378.
Veja-se, para além disso: España en la historia del tabaco (1959), pp. 183-203. “Historia del cultivo
del tabaco en España: resumen”, in Boletín de la Real Sociedad Geográfica, t. 92, no 1-12 (1956), pp.
228-233. Reed.: “Historia del cultivo del tabaco en España”, in Universal tabacos, año 2, no 9 (enero-
febrero 1956), pp. 9-11. Separata: Historia del cultivo del tabaco en España: (resumen). [S. l.: s. n.], 1956
(Madrid: S. Aguirre Torre, impresor). 7 p. (Publicaciones de la Real Sociedad Geográfica. Serie B; 371).
Texto de uma conferência pronunciada na Real Sociedad Geográfica a 12 de Dezembro de 1955. Veja-
se, para além disso: España en la historia del tabaco (1959), pp. 183-203; e na epígrafe Conferencias:
Historia del cultivo del tabaco en España. “La minúscula historia del cigarrillo”, in Habano: revista
tabacalera, v. 26, nº 1 (Janeiro de 1959), pp. 8 y 24. Na nota de rodapé: «A documentação probatória
das afirmações deste artigo e uma mais ampla informação, poderão ser vistas no livro España en la
historia del tabaco, que surgirá brevemente». «El régimen laboral de la industria tabaquera española
durante el siglo XVIII», in Anales de la Asociación Española para el Progreso de las Ciencias, año 24, n.
3 (1959), pp. 635-639. Resumen: XXIV Congreso luso-español para el progreso de las ciencias: 14-20
de noviembre de 1958. Madrid: Asociación Española para el Progreso de las Ciencias, D. L. 1958, pp.
119-120. Veja-se, para além disso: España en la historia del tabaco (1959), pp. 249- 253. España en la
historia del tabaco. 1a ed. Madrid: Centro de Estudios de Etnología Peninsular, 1959. XVIII, 392 p.
(Biblioteca de dialectología y tradiciones populares; 11). Reed.: Actualidad tabaquera: revista mensual
del mundo del tabaco, no 9 (enero de 1965), p. 11; n. 11 (Março de 1965), p. 13; n. 27 (Julho de 1966),
pp. 10-15; n. 29 (Setembro de 1966), pp. 21-23; n. 33 (Janeiro de 1967), pp. 15-21; n. 34 (Fevereiro
de 1967), pp. 18-20; n. 35 (Março de 1967), pp. 21-24; n. 36 (Abril de 1967), pp. 23-24; n. 37 (Maio
de 1967), pp. 25-27; n. 38 (Junho de 1967), pp. 21-23; n. 39 (Julho de 1967), pp. 19-21; n. 40 (Agosto
de 1967), pp. 19-21; n. 41 (Setembro de 1967), pp. 21-24; n. 42 (Outubro de 1967), pp. 18-21; n. 43
(Novembro de 1967), pp. 19-[21]; n. 51 (Julho de 1968), pp. 27-31; n. 52 (Agosto de 1968), pp. 31-35;
n. 53 (Setembro de 1968), pp. 27-33; n. 54 (Outubro de 1968), pp. 27-33; n. 55 (Novembro de 1968), pp.
23-29; n. 56 (Dezembro de 1968), pp. 55-61; n. 57 (Janeiro de 1969), pp. 23-27. Rec.: CARO BAROJA,
Julio (1959), Revista de dialectología y tradiciones populares, t. 15, cuaderno 4, pp. 539-540. CHAVES,
Luís (1961), Revista portuguesa de filologia, v. 11, t. 2, pp. 485-486. Boletín del Instituto Nacional de
Investigaciones Agronómicas, v. 20, n. 43 (Dezembro de 1960), p. 401. De um dos exemplares da sua
obra España en la historia del tabaco, propriedade da família de JPV, deixa-se testemunho de uma
dedicatória autógrafa: «Ainda que tenha escrito este livro, não sou homem de fumos; já sabes». Veja-
se, para além disso: Pfeife und feuerzeug = Pipe and lighter = La pipe et le briquet, n. 5-6 (Maio-Junho,
1967).
152
Fig. 49 – Fotografia do investigador palmero José Pérez Vidal.
3.2. A imagem plástica do “hábito prazenteiro” nas Canárias
Nesta secção vamos debruçar-nos sobre escritores e artistas retratados a fumar,
do artista como fumador e de diversas cenas relacionadas com o “hábito prazenteiro”.
Incluímos óleos, desenhos, caricaturas e alguma fotografia.
3.2.1. Escritores e artistas
Benito Pérez Galdós297 foi retratado em diversas ocasiões, ou com o cigarro na
mão, ou no ato de fumar. A sua imagem de fumador passou também para as caricaturas.
Talvez o quadro mais representativo seja o de Joaquín Sorolla (1894), da Casa Museu
do autor em Las Palmas de Gran Canária [Figura 50], ao que parece com 51 anos de
idade298. Luis Bagaría (1882-1940) representa numa tertúlia de artistas e escritores em
297 ELORZA, Antonio (1988), Luis Bagaría. El humor y la política, Barcelona Anthropos, p. 63. GONZÁLEZ
PADRÓN, Antonio, “Galdós en las artes plásticas”, in actascongreso.casamuseoperezgaldos.com › index.
php › cig › article › view. [Consultado em 23/09/2019].
298 TORRES GONZÁLEZ, Begoña (2005), Sorolla. Madrid: LIBSA. pp. 244-245. O quadro foi adquirido
pelo Cabildo (Governo da ilha) de Gran Canária aos descendentes do autor em 1973.
153
1918 a um Galdós ancião com o seu inevitável cigarro [Figura 51]. Do artista barcelonês
que desenhou o autor de Fortunata e Jacinta, celebrou uma exposição a Fundación
Mapfre de Las Palmas de Gran Canária no Outono de 2018299.
Fig. 50 – Benito Pérez Galdós. Joaquín Sorolla, 1893. Óleo sobre tela, 73 x 98 cm. Casa- Museo Pérez
Galdós. Cabildo de Gran Canaria.
Fig. 51 – Caricatura de Pérez Galdós por Luis Bagaría (1918). Casa Museo Pérez Galdós.
299 Ver:https://www.fundacionmapfreguanarteme.org/guanarteme/exposiciones-conciertos/
exposiciones/2018/dibujos-bagaria-sol.jsp [Consultado em 23/09/2019].
154
Um exemplo de artista fumador é o do pintor surrealista Óscar Domínguez
(1906-1957) que nos deixou, em 1926, um autorretrato assinado na parte inferior
esquerda da tela, quando estava a realizar a sua primeira estada em Paris300. Foi exposto
em O Museu Imaginado. Arte Canário 1930-1990. Expo CAAM, 3/12/1991 – 26/01/1992,
comissariada por Fernando Castro Borrego301. O pintor recém-chegado a Paris, com
apenas 20 anos, representa a sua figura de meio corpo, com sobretudo e chapéu de aba
larga e um sofisticado cachimbo que parece apagado [Figura 52].
Fig. 52 – Autorretrato. Óscar Domínguez, 1926. Óleo sobre tela. Caja Canarias, Tenerife.
O pintor da paisagem da ilha de La Palma, Francisco Concepción Pérez (1929-
2006), uns anos mais tarde, em 1949, autorretrata-se também com cachimbo e de meio
corpo, num óleo dedicado à sua mãe (“À minha mãe carinhosamente Quico”) [Figura
53]302.
300 Autorretrato. Óscar Domínguez, 1926. Óleo sobre tela. Caja Canarias, Tenerife.
301 CASTRO BORREGO, Fernando (1978), Óscar Domínguez y el surrealismo, Madrid, Ediciones Cátedra.
302 Catálogo de la Exposición Antológica de Francisco Concepción, Março-Maio de 2003. Excmo. Cabildo
Insular de La Palma.
155
Fig. 53 – Francisco Concepción, Óleo sobre tela, 1949.
Vicki Penfold (1918-2013), pintora polaca estabelecida em Puerto de la Cruz
(Tenerife), na última parte da sua agitada vida, retratou o casal formado pelo pintor e
crítico de Arte Eduardo Westerdahl y Oramas (1902-1983) e Maud Bonneaud (1921-
1991), em 1981 e 1970, respetivamente. O fundador da Gazeta de Arte (1932- 1936), foi
captado pelo pincel de Penfold numa atitude serena, sentado, com os braços cruzados,
segurando o cachimbo com a mão esquerda e com um fundo de livros. Por seu lado,
Bonneaud, autora de diversos textos para catálogos de arte, é retratada com a mesma
atitude complacente do marido, mas o cigarro substituiu o cachimbo. Podemos apreciar
como nos usos sociais, o cachimbo é identificado com os homens e os cigarros com as
mulheres. Álvaro Ruiz refere-se ao seu vibrante cromatismo ao comentar estas obras303
[Figuras 54 e 55].
303 RUIZ RODRÍGUEZ Álvaro (2006), Vicki Penfold, vol. 45 de la Biblioteca de Artistas Canarios, Tenerife,
Litografía Romero. En 1963 foi acolhida por Oscar Kokoschka, protagonista do expressionismo austríaco,
como aluna da sua “Escola da Visão ou da Vista” no castelo de Salzburgo.
156
Figs. 54 e 55 – Eduardo Westerdahl (1981) e Maud Bonneaud (1970)
por Vicki Penfold (Coleção privada, Santa Cruz de Tenerife).
A própria Vicki Penfold oferece-nos outro retrato de artista, neste caso o pintor
de La Laguna, Pedro González304, no qual, segundo o historiador da Universidade de La
Laguna, a artista combina “a soma das suas virtudes técnicas juntamente com a sua
elevada capacidade intuitiva”305. A composição é muito parecida às obras anteriores,
ainda que Pedro González tenha entre os dedos um cigarro aceso. Parece que os tempos
mudam [Figura 56]. Pedro González deu as boas-vindas, em carta aberta, no jornal La
Tarde (18/09/1964), à artista, quando ela chegou a Tenerife, em 1964, onde residiria o
resto da sua vida306.
304 CASTRO BORREGO (1994), Fernando. P. González. Biblioteca de Artistas Canarios. Gobierno de
Canarias. Islas Canarias.
305 RUIZ RODRÍGUEZ Álvaro, ob. cit.,pp. 86-87.
306 Ibídem, p. 80.
157
Fig. 56 – Pedro González por Vicky Penfold, óleo sobre tela. 75 x 50 cm. 1989.
Finalmente, ainda que tenha sido o primeiro retrato realizado ao chegar à ilha
de Tenerife, devemos mencionar o do jornalista e crítico de arte Julio Tovar (1964), do
qual o seu biógrafo e historiador destaca “as suas excelentes e expressivas mãos com
cigarro” [Figura 57].
158
Fig. 57 – Julio Tovar por Vicky Penfold, óleo sobre tela, 44,5 x 58 cm. 1964.
Outro exemplo significativo é o retrato de Emeterio Gutiérrez Albelo
(1904-1969), poeta e editor do grupo surrealista de Tenerife, a cargo do pintor de
Fuerteventura, Juan Ismael. Esta caricatura é considerada um dos primeiros desenhos
do artista307. Nela define o rosto do seu amigo, de modo simplificado, em consonância
com os versos do poeta [Figura 58].
307 Juan Ismael. La obra dibujada. Los retratos (2007), Exposição Centro de Arte Juan Ismael, do 29 de
Novembro ao 29 de Dezembro de 2007; CICCA e Gabinete Literario do 10 de Janeiro ao 10 de Fevereiro
de 2008. Carlos Eduardo Pinto Trujillo (Comissário). Cabildo de Fuerteventura, Gobierno de Canarias y
Obra Social de La Caja de Canarias, pp.13-14 e 137.
159
Fig. 58 - Emeterio Gutiérrez Albelo, Juan Ismael, 1927. Tinta e aguarela sobre papel, 28 x 22,5 cm.
O retrato e o Soneto de la pipa, foram publicados na revista Hespérides: artes,
ciencias, literatura y deportes em 1926:
Soneto de cachimbo
Suspensa de meus lábios foste como uma namorada,
e hoje rouba-me o cálido eflúvio do teu amor
(com um repreender que me aturde e me oprime)
muito rígido, muito seco e arrogante, o doutor.
E com seus arseniatos e seus hipofosfitos
atira-me de mim, minha alegre, quimérica Istambul.
¡Oh loiro cachimbo inglês, já nos meus sensuais ritos
não entrançarás ao ar tua cabeleira azul!
Por isso, neste ocaso doce e declamatório,
em cândidas lãs, meu lírico amuleto,
aspiro teu acendido coração ideal.
E como num dourado ataúde ilusório,
encerro-te no estojo, tão frágil!
de um soneto atado com a fita da última espiral.
Gutiérrez Albelo
Icod308.
308 Santa Cruz de Tenerife, año 1 - n. o 33, 15 de Agosto de 1926, p. 14.
160
Em 1956 o poeta voltou a ser objeto de representação pelo pintor, com o seu
inseparável cachimbo, num retrato desenhado a tinta sobre papel [Figura 59]309.
Fig. 59 – Emeterio Gutiérrez Albelo por Juan Ismael, 1952. Tinta sobre papel, 23,5 x 17,5 cm.
O dramaturgo e escritor Juan Marrero Bosch (1933-2006)310foi plasmado num
desenho a tinta sobre papel pelo pintor de Gáldar, Antonio Padrón, en 1959311, que
recorda o autorretrato do próprio Padrón (1969).
3.2.2. Retratos de personagens diversos
O primeiro que selecionámos é a caricatura que do empresário Fernando
Franquet Solé, dono de uma prestigiada indústria tabaqueira em Santa Cruz de
309 Ibídem, p. 151.
310 PADRÓN, Jorge (2019), “Juan Marrero Bosch”, in Revista / Literatura Canaria/ Diccionario de la
Literatura en Canarias.
311 Casa-Museo Antonio Padrón. Cabildo de Gran Canaria.
161
Tenerife, traçou o artista Fernando Fresno (1891-1949). O desenho foi realizado numa
estadia nas Canárias a caminho da América, em 1933 [Figura 60]312.
Fig. 60 – Caricatura de Fernando Franquet Solé por Fernando Fresno, 1933,
Museo Canário de Las Palmas.
Um dos grandes caricaturistas das Canárias, Francisco González313, deixou-
nos uma recriação da fábrica de tabacos La Regenta, de Joaquín dos Santos, na qual
aparecem o próprio empresário e Nicolás Socorro, que na altura abriu uma fábrica de
tabacos em Arucas [Figura 61]314. Nicolás pilota a embarcação que simboliza a fábrica
e o seu proprietário, o industrial de origem portuguesa, dos Santos, aparece sentado
na popa a fumar um havano.
312 GÓMEZ-PAMO, Juan (1998), “El cuaderno canario de Fernando Fresno”, in XIII Coloquio de Historia
Canario-Americana, pp. 2975-2978. Este personagem foi ainda um político republicano que se envolveu
na criação do parque natural do Teide. SIMANCAS CRUZ, Moisés (2007), Las áreas protegidas de Canarias,
Santa Cruz de Tenerife, Ideas, pp. 31 e 37.
313 GONZÁLEZ GUERRA, Frank (2003), El humor gráfico en Canarias. Apuntes para una historia (1808-
1998), Las Palmas de Gran Canaria: Ediciones del Cabildo de Gran Canaria.
314 LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de (2006), La opción agrícola e industrial del tabaco en Canarias. Una
perspectiva institucional. Los orígenes, 1827-1936, Las Palmas, ULPGC y PROEXCA, p. 232.
162
Fig. 61 – Recreación de la fábrica de tabacos La Regenta,
de Joaquín dos Santos por Francisco González.
De Francisco González é também a caricatura de Horacio Rojas, funcionário do
Porto de la Luz de Las Palmas de Gran Canária, sentado ao leme a fumar um cachimbo
como se se tratasse de uma chaminé [Figura 62].
Fig. 62 – Caricatura de Horacio Rojas Vera, práctico del Puerto por Francisco González, Aguarela
sobre papel.
163
Igualmente, dentro do género de humor gráfico, inclui-se o retrato que Manuel
Padrón Noble realizou de Antonio Limin Ѻana López (1904-1982) [Figura 63], que foi
presidente do “Cabildo” de Gran Canária. A obra pertence à coleção da Casa de Colón
de Las Palmas de Gran Canária.
Fig. 63 – Antonio LiminѺana López, Caricatura de Manuel Padrón Noble, Tinta sobre papel, 30,5 x 24
cm. Casa de Colón. Cabildo de Gran Canaria.
“A caricatura é a arte de deformar uma imagem para fazer um retrato mais
verdadeiro”, diz o próprio Padrón na entrevista feita por Alfredo Herrera Piqué, e
acrescenta:
Para mim a cor é fundamental. Cada indivíduo tem uma cor e procuro
que a cor reflita a sua personalidade, incluindo a cor dos fundos que hão-de
manifestar o “clima”(...) Todas as caricaturas faço-as sempre em cor315.
315 HERRERA PIQUÉ, Alfredo (1986), “Padrón Noble. la caricatura y la percepción de la personalidad”,
in Aguayro, La Caja de Canarias, n.º 138, pp. 14-15.
164
De Eduardo Millares Sall (Cho Juaa), incorporamos nesta galeria de retratos de
fumadores, as caricaturas de Adolfo Suárez e Fidel Castro, nos momentos iniciais da
Transição Democrática espanhola [Figura 64]. Curiosamente, Fidel fuma um cachimbo,
enquanto que Adolfo Suárez se deleita com um havano.
Fig. 64 – Cho Juáa, Fidel Castro y Adolfo Suárez, 1978, Tinta sobre papel, 23x20 cms. Las Palmas de
Gran Canaria, propriedade particular.
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Sotomayor y Sotomayor — um dos grandes proprietários da ilha de La Palma — do
pintor José Aguiar (1895-1976) [Figura 65] e uma obra de um dos retratistas mais
importantes destes últimos anos, o pintor Alejandro Reino (1935-2018), que nos
deixou uma galeria de umas 400 obras deste género316. Neste caso, consagrado a
Antonio Cuyás [Figura 66]317.
316 Obituario de La Provincia de 4/1/2018. Igualmente la nota que le consagró el CAAM: file:///C:/Users/
User/Downloads/sobreAlejandroReino.pdf. [Consultado em 26/09/209].
317 Rostros de la Isla. El arte del retrato en Canarias 1700-2000 (2002): Cabildos de Gran Canaria y de
Tenerife, p. 219.
165
Fig. 65 – José Miguel Sotomayor y Sotomayor por José Aguiar. Óleo sobre tela, 1922
(Propriedade particular).
Fig. 66 – Antonio Cuyas por Alejandro Reino.
Óleo sobre tela, 200 x 8o cm.
Coleção particular, Las Palmas de Gran Canaria.
166
3.2.3. Manolo Millares e Planas de poesía
São um bom exemplo relacionado com o hábito de fumar, as ilustrações que
Manolo Millares (1926-1972) realizou para Smoking room de Alonso Quesada, em 1949.
A capa tem um desenho intitulado “Síntese do inglês colonial” com um cigarro na
boca318 [Figura 67]. Por outro lado, há que mencionar O homem do cachimbo, que dá o
título ao exemplar de Planas de Poesía, N.ºXIII, de 1951, no qual o artista publica onze
desenhos. Precisamente, o único inominado é o homem do cachimbo. [Figura 68].
3.2.4. Camponeses, pescadores, marinheiros, artesãos e
indianos
Apresentamos uma relação seguramente incompleta, mas representativa, no
caso dos camponeses: Rafael Larena-Avellaneda Rodríguez (1873-1933), Camponês
318 Planas de Poesía IV, Las Palmas de Gran Canaria, Imprenta de Pedro Lezcano.
Fig. 67 – Síntesis del inglés colonial por Manolo
Millares para o livro Smoking room (Cuentos de
los ingleses de la colonia en Canarias) de Alonso
Quesada en 1949.
Fig. 68 – El Hombre de la pipa por Manolo
Millares, en Planas de Poesía, N.º XIII (1951).
167
fumando (ca. 1901)319 [Figura 69]; José Aguiar, Frutos da terra (1924)320 [Figura 70] e
Gomeros (1925) [Figura 71]; Cirilo Suárez, O gigante da colheita (1935) [Figura 72]. Foram
pintados na primeira época de expansão da banana, que é a grande protagonista, antes
da Guerra Civil de 1936.
319 ARROYO FERNÁNDEZ, María Dolores (1992), La pintura contemporánea de paisajes en las Canarias
Orientales, Madrid, Universidad Complutense, pp. 43-44. Foi presidente da Câmara de Las Palmas,
professor de desenho e proprietário rural.
320 ABAD Ángeles (1991), José Aguiar, Gobierno de Canarias, Biblioteca de Artistas Canarios. Gobierno
de Canarias, p. 47.
Fig. 69 - Retrato de Campesino fumando por
Rafael Avellaneda (ca.1901). Óleo sobre tela.
Coleção privada (Las Palmas de Gran Canaria).
Fig. 70 - Frutos de la tierra SRU-RVHķ$JXLDU1924).
Óleo sobre tela. 300 x 277 cm. Museo Municipal
de Bellas Artes de Santa Cruz de Tenerife.
Fig. 71 - GomerosSRU-RVHķ$JXLDU&ROH©¥R
particular, 1925.
Fig. 72 - El gigante de la cosecha por Cirilo
Suárez, 1935. Óleo sobre tela, 208 x 139,5 cm.
Fundación de La Caja de Canarias.
168
Entre os pescadores ou “roncotes”321, podemos encontrar O homem do peixe
(1907)322, de Francisco Suárez León (1865-1934)323 [Figura 73]: a Apresentação Álvarez
realizado por Nicolás Massieu Matos em 1950324 [Figura 74]; Os “roncotes” (1970) de
Felo Monzón325 [Figura 75]; ou Três figuras de Francisco Concepción (1972)326 [Figura
76]. Entrariam na denominação de “roncotes”, as fotografias de Francisco Rojas Farin Ѻa327
[Figuras 77 e 78].
321 “Pescador canário experiente nas lides de pesca que se realizavam na costa de África próxima das
Ilhas. Los roncotes se reunían en el bar de la plaza a contar sus aventuras por la costa de África”. Disponível
em: http://www.academiacanarialengua.org/palabra/roncote/.
322 ALLEN, Jonathan (2003), Catálogo de la Exposición Francisco Suárez León, Pintor de la realidad, Las
Palmas de Gran Canaria, Cabildo de Gran Canaria, Casa de Colón. Estudio monográfico, p. 75.
323 ARROYO FERNÁNDEZ, María Dolores (1992), La pintura contemporánea de paisajes en las Canarias
Orientales, Madrid, Universidad Complutense, pp. 42-43. Foi diretor da Academia Municipal de desenho
e interessou-se pelo Bairro de pescadores de San Cristóbal.
324 Nicolás Massieu y Matos, 1950. Óleo sobre tela, 59 x 48,5 cm. Casa de Colón. Cabildo de Gran Canaria.
325 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y MONZÓN BENÍTEZ Marta (2010), El universo plástico de
Felo Monzón. Expo CICCA de 16 de Setembro a 23 de Outubro de 2010. Obra Social de La Caja de Canarias.
326 Tres figuras. Francisco Concepción, Óleo sobre tela, 1972. Catálogo de la Exposición Antológica,
Março-Maio de 2003. Excmo. Cabildo Insular de La Palma.
327 Francisco Rojas Fariña [fotografías 1958-2003]. Expo, La Regenta y La Granja, 2004. Pedro Almeida
Cabrera (comisario). Gobierno de Canarias.
Fig. 73 - El hombre del pescado, Francisco Suárez
León (1907). Óleo sobre tela, 70 x 51 cm. Coleção
particular.
Fig. 74 - Presentación Álvarez por Nicolás
Massieu y Matos, 1950. Óleo sobre tela, 59 x 48,5
cm. Casa de Colón. Cabildo de Gran Canaria.
169
Fig. 75 – Los Roncotes por Felo Monzón, 1970. Tinta sobre papel, 17 x 26 cm.
Coleção particular, Gran Canaria.
Fig. 76 – Três figuras por Francisco Concepción. Óleo sobre tela, (1972).
170
Felo Monzón, entre os desenhos que realizou na prisão de Gando, em 1937,
deixou-nos Postais enviados do campo de concentração de Gando, entre os quais
aparece um marinheiro com um cigarro na boca, acompanhado de um cãozinho, com
um vulcão, em erupção, ao fundo328 [Figura 79].
Entre a obra do pintor, natural de Las Palmas, Manuel González Méndez (1843-
1909), resgatamos um Velho construtor de carros, que num momento de sossego do seu
trabalho, acendeu um cachimbo329 [Figura 80].
Juan Bautista Fierro Van de Walle deixou-nos um quadro de Os indianos de Las
Palmas (1911), no qual o cabeça de família, como signo de distinção, caminha com um
havano na boca330 [Figura 81].
328 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes y MONZÓN BENÍTEZ Marta (2010), El universo plástico
de Felo Monzón. Expo CICCA de 16 de Setembro a 23 de Outubro de 2010. Obra Social de La Caja de
Canarias, p. 147.
329 ALLOZA MORENO, Manuel (1991), Manuel González Méndez, Gobierno de Canarias, Bibliotecas de
Autores Canarios, p. 92.
330 HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (2001), Arte en Canarias [siglos XV-XIX]. Una mirada
retrospectiva. Tomo I (p. 39) y Tomo II (pp. 245-247). Expo, La Regenta, Las Palmas de Gran canaria,
Junho a Julho de 2001.
Fig. 77 – Francisco Rojas Fariña
[fotografías 1958-2003].
Fig. 78 – Francisco Rojas Farin Ѻa
[fotografías 1958-2003].
171
Fig. 81 – Los indianos por Juan Bautista Fierro Van de Walle, 1911. Desenho a tinta e aguarela, 22 x 29
cm. Museo Insular de La Palma, Santa Cruz de La Palma.
Fig. 79 – Postais enviados do campo de
concentração de Gando, por Felo Monzón, 1937.
Tinta e aguarela sobre papel, 15 x 9,5 cm.
Fig. 80 – Viejo constructor de carros por Manuel
González Méndez. Óleo sobre tela, 231 x 163 cm.
Museo Municipal de Santa Cruz de Tenerife.
172
3.2.5. Imagens várias
Nesta secção incluímos Jane Millares (1928)331 e o seu Tipo Canário (1958)332
[Figura 82]; O Chiringuito da Praia (1974) de Francisco Concepción333 [Figura 83]; dois
atrativos desenhos de Eduardo Millares Sall (1924-1992)334, Cho Juáa, Sem Título (1982)
[Figuras 84 e 85] – entre as muitas vinhetas da sua extensa produção – e o seu guache
sobre papel, Sem título, de um homem fumando um cachimbo (1965) [Figura 86].
Fig. 82 – Tipo canario por Jane Millares, 1958. Cera sobre cartolina, 23 x 17 cm. Coleção da artista.
331 GARCÍA MORALES, Teresa (Comisaria) (2012), Jane Millares Sall, diario de una pintora. Expo San
Martín Centro de Cultura Contemporánea, Las Palmas de Gran Canaria, 14 de junio al 29 de julio de
2012, Cabildo de Gran Canaria, p. 45. GARCÍA MORALES, Teresa (2019), Jane Millares Sall. Madrid, Sílex.
332 Tipo canario. Jane Millares, 1958. Cera sobre cartolina, 23 x 17 cm. Coleção da artista.
333 Catálogo de la Exposición Antológica, marzo-mayo de 2003. Excmo. Cabildo Insular de La Palma.
334 GONZÁLEZ, Franck y HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes (2011), Eduardo Millares Sall. Más
DOO£ķ GH&KR-XD£ Las Palmas de Gran Canaria: Obra Social de la Caja de Canarias, Hermanos Millares
Ley, ed.
173
Fig. 83 – El Chiringuito de la Playa por Francisco Concepción (1974).
Fig. 84 – Cho Juáa, Sin título, 1982, Guache sobre
papel, 65 x 52 cm., propriedade particular, Las
Palmas de Gran Canaria.
Fig. 85 – Cho Juáa, Sin título, 1982, Guache sobre
papel, 64,8 x 52 cm. propriedade particular, Las
Palmas de Gran Canaria.
174
Fig. 86 – Cho Juáa, Sin título, 1965, Guache sobre papel, 917 x 1,181 cm.
São inquietantes as imagens de fumadores criadas por Facundo Fierro: O
olhar de Facundo Fierro aglutina nostalgia e imaginação à volta de La Palma, a ilha por
antonomásia335 [Figura 87].
Fig. 87 – Práctica, Facundo Fierro, gravado a água-tinta, 1987.
Instituto de Bachillerato de Santa Cruz de La Palma.
335 RODRÍGUEZ CONCEPCIÓN, Anelio: ¿Es La Palma? Pinturas de Facundo Fierro. Disponível em: http://
www.cajacanarias.com/microsites/facundo-fierro/ [Consultado em 1/10/2019].
175
La espera del Voyeur, de Hector Vera (2016), está feito com dois pedaços de tela,
unidos à altura das pernas. O fumador está espiando a janela esperando que apareça a
sua presa, enquanto consome um cigarro [Figura 88].
Fig. 88 – La espera del Voyeur, por Héctor Vera (2016).
3.3. A imagem da indústria tabaqueira
A imagem da indústria tabaqueira foi-nos proporcionada pelos folhetos onde
se mostra o cultivo do tabaco [Figuras 89 e 90], as fotografias dos secadores de tabaco
[Figura 91], os postais das fábricas [Figuras 92 e 93], os cartazes de propaganda — como
o de Néstor — [Figura 94], as oficinas onde são elaborados os cigarros e os charutos
[Figuras 95 e 96], as fotografias dos antigos estabelecimentos de venda de tabacos
(tabacarias) [Figura 97], as habilitações [Figuras 98, 99 e 100] ...
176
Figs. 89 e 90 – Diversas Memórias sobre o Cultivo do Tabaco.
Fig. 91 – Secador de tabaco da década de 1880. El Museo Canario (Las Palmas de Gran Canaria).
177
Fig. 92 - DA LUZ PERESTRELLO, JORDAO, 1905-1910, Arquivo da FEDAC.
Fig. 93 – Grande Fábrica de Cigarros Florislen Ѻa (propriedade de Santiago Gutiérrez Martín 1905),
Arquivo da FEDAC (Las Palmas de Gran Canaria).
178
Fig. 94 – Cartaz encomendado a Néstor Martín Fernández de la Torre
pelos industriais tabaqueiros canários (ca. 1922).
Fig. 95 – Cigarreiras da Favorita de Eufemiano Fuentes. Postal ilustrado.
179
Fig. 96 – Francisco Concepción, La Gloria palmera.
Fig. 97 – BAENA, E. FERNANDO, 1926, Arquivo da FEDAC, Las Palmas de Gran Canaria.
180
Fig. 98 – Habilitações palmeras.
Fig. 99 – Habilitações palmeras.
181
Fig. 100 – Habilitações palmeras.
182
Sobre os autores
ATOCHE PEÑA, Pablo – Licenciado em Filosofía e Letras (Divisião de
Geografia e História. Secção de História) e Doutor em Geografia e História (Secção de
História. Área de Pré-História) pela Universidad de La Laguna. É Professor Catedrático
da ULPGC na área de Pré-História e faz parte do Grupo de Investigação G9 – “Historia,
Economía y Sociedad”,onde trabalha em várias linhas, entre elas a denominada “Islas
en la Prehistoria: Bioarqueología, Ecoarqueología y Bioadaptación”. ORCID: 0000-
0001-6608-1585 / ID Autor Scopus: 56613356900.
HERNÁNDEZ SOCORRO, María de los Reyes – Catedrática de Historia del
Arte de la Universidad de Las Palmas. Miembro del Grupo de Investigación G9 Historia,
Economía y Sociedad de la citada Universidad. Pertenece al Seminario Permanente de
Historia del Tabaco (CHAM y Universidad de Las Palmas de Gran Canaria).
LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de – Professor Catedrático de História e
Instituições Económicas da Universidad de Las Palmas de Gran Canaria. Coordenador
Geral do Programa de Doutoramento em Ilhas Atlânticas: História, Património e
Quadro Jurídico-Institucional e do Grupo de Investigação G9 – “Historia, Economía
y Sociedad”. Pertence ao Seminário Permanente de História do Tabaco (CHAM e
Universidad de Las Palmas de Gran Canaria).
MACHADO, Margarida Vaz do Rego – Professora Auxiliar da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores. Doutorada em História
Moderna. Investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades (FCSH – NOVA
/ Universidade dos Açores). Pertence ao Seminário Permanente de História do Tabaco
(CHAM e Universidad de Las Palmas de Gran Canaria).
RAMÍREZ RODRÍGUEZ, Mª. Ángeles – Licenciada em Filosofía e Letras (Divisão
de Geografia e História. Secção de História da Arte) pela Universidad de La Laguna,
faz parte do Grupo de Investigação da ULPGC G9 – “Historia, Economía y Sociedad”,
onde trabalha em várias linhas, entre elas a denominada “Islas en la Prehistoria:
Bioarqueología, Ecoarqueología y Bioadaptación”. ORCID: 0000-0002-2621-7449.
183
SILVA, Susana Serpa – Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade dos Açores. Doutorada em História Contemporânea.
Investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades (FCSH – NOVA /
Universidade dos Açores) e diretora, na Universidade dos Açores, do Doutoramento
em Ilhas Atlânticas: História, Património e Quadro Jurídico-Institucional. ORCID:
0000-0003-1357-4196. Ciencia Vitae ID: DE14-5CAF-87B0.
VIÑA BRITO, Ana – Professora Catedrática de História Medieval. Professora
de História Medieval na Facultad de Humanidades da Universidad de La Laguna –
Canárias. Membro do IEMyR - Instituto de Estudios Medievales y Renacentistas e do
Grupo de Investigação LexHis da mesma Universidade.
184
Por Convénio celebrado a 23 de julho de 2013, a Universidad
de Las Palmas de Gran Canaria (ULPGC), a Universidad de La
Laguna (ULL), a Universidade dos Açores (UAc) e a Universidade
da Madeira (UMa), criaram o ciclo de estudos, por associação,
conducente ao grau de doutor em Ilhas Atlânticas: História,
Património e Quadro Jurídico-Institucional que é oferecido,
respetivamente, pela Escuela de Doctorado da la ULPGC,
pela Escuela de Doctorado y Estudios de Posgrado da ULL,
pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UAc e pela
Faculdade de Artes e Humanidades da UMa. Entre os principais
objetivos deste doutoramento, que conta com três linhas de
especialização (História, Património e Ciências Jurídicas),
destacam-se o desenvolvimento e o aprofundamento de
estudos de excelência, no âmbito de investigação avançada,
sobre as ilhas e os arquipélagos atlânticos (...).
A Comissão Académica do curso decidiu criar a série,
genericamente intitulada, Macaronesia: Dinámicas
Históricas, Sociales y Económicas, que agora se inicia com o
e-book n.º 1, cujo título Povoamento, Tabaco, Açúcar e Arte
na História das Ilhas do Atlântico Médio, e os respetivos
conteúdos, refletem a diversidade de temas abordados [nos
seminários formativos], com enquadramento nos contextos
dos Açores e das Canárias.